Por Ivonaldo Leite
Se
há uma contribuição que a comunidade científica dos estudos comparados tem
aportado, no campo da pesquisa educacional, esta é, por certo, a que permite a
construção de quadros de inteligibilidade que, mais do que as semelhanças,
realçam as diferenças entre os sistemas educativos dos diferentes países[1]. Focando-se as diferenças,
abre-se caminho para se chegar às razões de êxitos e fracassos de políticas e
modelos de gestão.
Uma
discussão séria sobre a universidade brasileira, seu presente e futuro, suas perspectivas
e seus desafios, deveria começar exatamente por aí. Pela senda dos estudos
comparados, o que logo levaria a uma indagação simples, mas significativa: por
que o modelo brasileiro de administração universitária não é adotado,
internacionalmente, por praticamente ninguém?[2] Por aqui, adentramos no cerne dos problemas
que as universidades do país vivem hoje.
Problemas
que se configuram na existência “paquidermes burocráticos”, onde as instâncias universitárias, como centros,
departamentos, coordenações, conselhos, etc., vivem, na maior parte das vezes, engessados por uma (improdutiva) rotina autojustificante, não sendo raros os
casos de atrasos de providências (andando a passos de tartaruga pelos canais
burocráticos), de interrupção de
tramitações e até mesmo de desaparecimento de processos. Chega a ser até
desnecessário dizer que isso é um atrativo celeiro para a improbidade
administrativa, a mediocridade e a
indolência. Feitas as contas desse ‘jogo de soma zero’, o resultado é a asfixia
da vida acadêmica, da criatividade intelectual e do genuíno debate plural de
ideias.
Nesse
quadro, o aporte de mais recursos ao ensino superior não necessariamente se
traduz em avanço qualitativo do mesmo. As razões desse aparente paradoxo são as
mais variadas. Diversos são os casos que
ilustram empiricamente tal realidade, tanto no âmbito das universidades
federais como no das estaduais.
A
esse respeito, é revelador, por exemplo, que as universidades estaduais paulistas
estejam, há já algum tempo, emprestando os seus nomes às manchetes que apontam
uma crise no setor. Logo elas que são referências no país, tendo-se que, no
caso da USP, estamos a falar da universidade brasileira com mais elevado reconhecido
acadêmico internacional (representa 25% da pesquisa produzida no Brasil).
Não
se pode afirmar que são negados recursos às estaduais paulistas. Isto por uma
razão bastante objetiva: as suas receitas estão fixadas normativamente, e
correspondem a exatos 9,57% da arrecadação do imposto de circulação de
mercadorias que fica para o estado de São Paulo. Não é pouca coisa, mas a
universidade tem um déficit anual de R$ bilhão.
Nas
universidades federais, na última década, o aporte de recursos não chegou a ser
um problema, além de se ter verificado uma significativa expansão da rede e uma
acentuada contratação de recursos humanos (por vezes, descriteriosa, diga-se). Contudo,
a questão que desde logo sobressai é a do fator qualitativo. Estudos
longitudinais continuam a demonstrar que, após mais de dez anos de uma “onda de
investimento” no ensino superior, no contexto da rede federal, não houve
alteração ascendente significativa, por exemplo, em relação aos níveis de
produção científica. Dados do SIR World Report, ano 2013,
medindo o período 2007-2011, evidenciaram que as estaduais paulistas USP,
Unicamp e Unesp deixaram as federais distante e continuam a liderar a produção
científica nacional.
Outro complicador deve ser agregado à discussão sobre a expansão
do ensino superior brasileiro e a suposta inclusão que estaria a ser feita:
trata-se do aumento do número de analfabetos funcionais nos cursos
universitários. Com uma piscada ao populismo (que desconsidera as deficiências
da escola básica), o discurso do acesso à universidade a “qualquer custo”, em
nome da inclusão, na verdade, pode ter um efeito que não se está a contar: o
adiamento da exclusão, fazendo valer a lógica da reprodução social. Isto é,
alunos passam a ser excluídos não mais ao fim do ensino médio, pois têm acesso
à universidade, mas, sim, ao fim dos estudos na mesma, em decorrência da
inabilitação formativa.
Poderíamos continuar a desfiar o rosário de problemas que
perpassam a expansão do ensino superior brasileiro, onde a gestão dos recursos
financeiros (assim como a construção de prédios) certamente mereceria um
capítulo à parte. Todavia, o que estivemos a assinalar já serve de amostra
suficiente para evidenciar a tese sustentada neste breve texto: a de repensar o
modelo nacional de gestão universitária, prisioneiro do marasmo da burocracia,
que alimenta um paradoxo onde o maior aporte de recursos não resulta na
elevação qualitativa das atividades universitárias.
As
eleições presidenciais deste ano representam um momento privilegiado para fazer
esse debate. Mas, ao observarmos as intervenções tanto de candidatos como de
sindicatos, logo percebemos que o tema está fora da agenda de discussão. Restam
iniciativas pontuais, mas relevantes, como as que, defendendo uma profunda
reforma na estrutura universitária brasileira, propugnam uma configuração
organizativa mais horizontalizada, a ser consubstanciada pelo que tem sido
chamado de universidade nova.
Entretanto, essas iniciativas pontuais – já com
experiências, assinale-se, testadas em
alguns locais – podem contribuir para a formatação de uma agenda alternativa
que, pela pertinência do que vier a propor, paulatinamente comece a pautar a discussão
rumo a uma virada de página na atual estrutura organizativa da universidade
brasileira. E, havendo espaço, cabe insistir nessa perspectiva no contexto das
eleições que terão lugar em outubro próximo.
Tomara
também que, em universidades onde se pretenda discutir ou esteja em curso a apreciação
da sua normatização interna, os coordenadores do processo o dirigiam de um modo
que o referido debate seja considerado. Na UFPB, por exemplo, iniciou-se um
processo de Estatuinte.
Enfim,
a questão fundamental é que a universidade, como instituição republicana, supere
o danoso engessamento a que, de modo geral, tem sido submetida e ultrapasse o ‘deserto
do real’ para o qual foi conduzida.
[1] O ‘método sócio-histórico’ tem sido o principal recurso dos estudos comparados, como pode ser visto em FRANCO, Maria Ciavatta. Quando nós somos o outro: questões teórico-metodológicas sobre os estudos comparados, in Educação e Sociedade, vol 21, nº 72, Campinas, agosto/2000.
[2] Formulo de modo indagativo o que
Vladimir Safatle elaborou de maneira afirmativa, no artigo sugestivamente
intitulado ‘Destruir a universidade’ (Folha de São Paulo, edição de 12/08/2014).
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