quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Universidade e eleições: virar a página, para uma nova agenda

Por Ivonaldo Leite

Se há uma contribuição que a comunidade científica dos estudos comparados tem aportado, no campo da pesquisa educacional, esta é, por certo, a que permite a construção de quadros de inteligibilidade que, mais do que as semelhanças, realçam as diferenças entre os sistemas educativos dos diferentes países[1]. Focando-se as diferenças, abre-se caminho para se chegar às razões de êxitos e fracassos de políticas e modelos de gestão.
  Uma discussão séria sobre a universidade brasileira, seu presente e futuro, suas perspectivas e seus desafios, deveria começar exatamente por aí. Pela senda dos estudos comparados, o que logo levaria a uma indagação simples, mas significativa: por que o modelo brasileiro de administração universitária não é adotado, internacionalmente, por praticamente ninguém?[2]  Por aqui, adentramos no cerne dos problemas que as universidades do país vivem hoje.
Problemas que se configuram na existência “paquidermes burocráticos”, onde as  instâncias universitárias, como centros, departamentos, coordenações, conselhos, etc., vivem, na maior parte das vezes,  engessados por uma (improdutiva)  rotina autojustificante, não sendo raros os casos de atrasos de providências (andando a passos de tartaruga pelos canais burocráticos),  de interrupção de tramitações e até mesmo de desaparecimento de processos. Chega a ser até desnecessário dizer que isso é um atrativo celeiro para a improbidade administrativa,  a mediocridade e a indolência. Feitas as contas desse ‘jogo de soma zero’, o resultado é a asfixia da vida acadêmica, da criatividade intelectual e do genuíno debate plural de ideias.   
Nesse quadro, o aporte de mais recursos ao ensino superior não necessariamente se traduz em avanço qualitativo do mesmo. As razões desse aparente paradoxo são as mais variadas.  Diversos são os casos que ilustram empiricamente tal realidade, tanto no âmbito das universidades federais como no das estaduais.
A esse respeito, é revelador, por exemplo, que as universidades estaduais paulistas estejam, há já algum tempo, emprestando os seus nomes às manchetes que apontam uma crise no setor. Logo elas que são referências no país, tendo-se que, no caso da USP, estamos a falar da universidade brasileira com mais elevado reconhecido acadêmico internacional (representa 25% da pesquisa produzida no Brasil).
Não se pode afirmar que são negados recursos às estaduais paulistas. Isto por uma razão bastante objetiva: as suas receitas estão fixadas normativamente, e correspondem a exatos 9,57% da arrecadação do imposto de circulação de mercadorias que fica para o estado de São Paulo. Não é pouca coisa, mas a universidade tem um déficit anual de R$ bilhão.  
Nas universidades federais, na última década, o aporte de recursos não chegou a ser um problema, além de se ter verificado uma significativa expansão da rede e uma acentuada contratação de recursos humanos (por vezes, descriteriosa, diga-se). Contudo, a questão que desde logo sobressai é a do fator qualitativo. Estudos longitudinais continuam a demonstrar que, após mais de dez anos de uma “onda de investimento” no ensino superior, no contexto da rede federal, não houve alteração ascendente significativa, por exemplo, em relação aos níveis de produção científica. Dados do SIR World Report, ano 2013, medindo o período 2007-2011, evidenciaram que as estaduais paulistas USP, Unicamp e Unesp deixaram as federais distante e continuam a liderar a produção científica nacional.
Outro complicador deve ser agregado à discussão sobre a expansão do ensino superior brasileiro e a suposta inclusão que estaria a ser feita: trata-se do aumento do número de analfabetos funcionais nos cursos universitários. Com uma piscada ao populismo (que desconsidera as deficiências da escola básica), o discurso do acesso à universidade a “qualquer custo”, em nome da inclusão, na verdade, pode ter um efeito que não se está a contar: o adiamento da exclusão, fazendo valer a lógica da reprodução social. Isto é, alunos passam a ser excluídos não mais ao fim do ensino médio, pois têm acesso à universidade, mas, sim, ao fim dos estudos na mesma, em decorrência da inabilitação formativa.   
Poderíamos continuar a desfiar o rosário de problemas que perpassam a expansão do ensino superior brasileiro, onde a gestão dos recursos financeiros (assim como a construção de prédios) certamente mereceria um capítulo à parte. Todavia, o que estivemos a assinalar já serve de amostra suficiente para evidenciar a tese sustentada neste breve texto: a de repensar o modelo nacional de gestão universitária, prisioneiro do marasmo da burocracia, que alimenta um paradoxo onde o maior aporte de recursos não resulta na elevação qualitativa das atividades universitárias.
As eleições presidenciais deste ano representam um momento privilegiado para fazer esse debate. Mas, ao observarmos as intervenções tanto de candidatos como de sindicatos, logo percebemos que o tema está fora da agenda de discussão. Restam iniciativas pontuais, mas relevantes, como as que, defendendo uma profunda reforma na estrutura universitária brasileira, propugnam uma configuração organizativa mais horizontalizada, a ser consubstanciada pelo que tem sido chamado de universidade nova.
 Entretanto, essas iniciativas pontuais – já com experiências, assinale-se,  testadas em alguns locais – podem contribuir para a formatação de uma agenda alternativa que, pela pertinência do que vier a propor, paulatinamente comece a pautar a discussão rumo a uma virada de página na atual estrutura organizativa da universidade brasileira. E, havendo espaço, cabe insistir nessa perspectiva no contexto das eleições que terão lugar em outubro próximo.
Tomara também que, em universidades onde se pretenda discutir ou esteja em curso a apreciação da sua normatização interna, os coordenadores do processo o dirigiam de um modo que o referido debate seja considerado. Na UFPB, por exemplo, iniciou-se um processo de Estatuinte.
Enfim, a questão fundamental é que a universidade, como instituição republicana, supere o danoso engessamento a que, de modo geral, tem sido submetida e ultrapasse o ‘deserto do real’ para o qual foi conduzida.




[1] O ‘método sócio-histórico’ tem sido o principal recurso dos estudos comparados, como pode ser visto em FRANCO, Maria Ciavatta. Quando nós somos o outro: questões teórico-metodológicas sobre os estudos comparados, in  Educação e Sociedade, vol 21, nº 72, Campinas, agosto/2000.  

[2] Formulo de modo indagativo o que Vladimir Safatle elaborou de maneira afirmativa, no artigo sugestivamente intitulado ‘Destruir a universidade’ (Folha de São Paulo, edição de 12/08/2014). 

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