Faleceu, por estes dias, o historiador Nicolau Sevcenko. Poder-se-á dizer que marcou a historiografia brasileira com trabalhos de significativa originalidade - concorde-se ou não com a sua perspectiva epistemológica. O texto aí abaixo, de um ex-orientando seu, realça a medida do seu trabalho e - vamos lá! - do sentido que há na atividade do professor pesquisador. E do que, no final das contas, fica - depois de tudo encerrado.
Nicolau Sevcenko: inquietação intelectual |
Por Nelson Schapochnik (USP)
Ainda me lembro da primeira
aula de Nicolau Sevcenko (1952-2014) na PUC-SP. O ano era 1982 e a contratação
dele se deu em função de uma revolta dos alunos contra a inépcia de alguns
professores. Foi num misto de expectativas e hesitações que trocamos as primeiras
palavras.
Todos aqueles
que foram alunos dele devem se lembrar de que em suas aulas, a princípio, ele
parecia ratear, enunciando temas, títulos e nomes com vagar e distorcidas
expressões faciais que soavam quase como palavras desconexas.
Estimulado por
frequentes goles de chá, que ele tomava copiosamente, suas aulas logo se
transformavam num verdadeiro turbilhão performático. Imagens, músicas e textos
eram mobilizados para compor um painel, invariavelmente erudito, cujo efeito
mais imediato era a desorientação. E aí o Nicolau demonstrava a imensa
capacidade de reorganização e de promover aproximações sucessivas num
verdadeiro engajamento lúdico, em que o emaranhado das diferenças e
simultaneidades suplantava a racionalidade unitária e excludente.
Usualmente, ele
se valia da rara qualidade de ouvinte atento para converter a questão mais
impertinente em matéria para novos debates. Essa postura, avessa a qualquer
forma de missionarismo pedagógico ou político, contribuiu para que ele
conquistasse novos espaços de atuação e legitimação, na universidade como
também na mídia.
Para além das
formidáveis teses que escreveu, sua imensa produção ensaística revela um
intelectual desassossegado, crítico dos temas e comportamentos que aprisionam e
limitam a criatividade. Não por acaso, ao abordar a literatura, as artes, a
ecologia, o viver em cidades, a emergência de novas tecnologias, ele operou a
partir de uma perspectiva que ressaltava os paradoxos, a sensibilidade, o
respeito às individualidades e diferenças ou ainda à multiplicidade das
manifestações culturais em todos os níveis. Daí o desdém e o destrato que
recebeu de colegas de orientação sectária e dos afortunados da desinteligência.
Nicolau Sevcenko
esteve ao meu lado nos momentos mais altissonantes da minha vida e, diante da
maior tragédia pessoal que experimentei, ele também foi solidário e atencioso.
Além da valiosa e sincera amizade, Nicolau foi meu orientador de iniciação
científica, mestrado e doutorado. Em todos esses momentos, ele incentivou a
busca de autonomia, o estabelecimento de diálogo e cooperação com outros
intelectuais, fomentou leituras randômicas e o rigor na pesquisa.
Nesse momento de
ausência bruta e irreversível, recordo de um encontro cujo intuito era receber
comentários acerca do relatório final a ser enviado à Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo. Inseguro, temeroso, disse a ele que esperava
não tê-lo decepcionado. Não me recordo da apreciação sobre o texto. Retive tão
somente a maior lição que carrego comigo e que chegou sob a forma de uma
resposta enfática: "Schapô, cuida para não se decepcionar com você
mesmo".
Isso já faz
muito tempo. Hoje, repito versos de Waly Salomão: "Massacro meu medo,
mascaro minha dor, já sei sofrer, não preciso de gente que me oriente".
Contudo a gratidão, o otimismo em relação ao poder jovem e a crença na
liberdade vão perdurar. Obrigado, Nik.
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