sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Um intelectual desassossegado

Faleceu, por estes dias, o historiador Nicolau Sevcenko. Poder-se-á dizer que marcou a historiografia brasileira com trabalhos de significativa originalidade - concorde-se ou não com a sua perspectiva epistemológica. O texto aí abaixo, de um ex-orientando seu, realça a medida do seu trabalho e - vamos lá! - do sentido que há na atividade do professor pesquisador. E do que, no final das contas, fica - depois de tudo encerrado.  



Nicolau Sevcenko: inquietação intelectual


Por Nelson Schapochnik (USP)

Ainda me lembro da primeira aula de Nicolau Sevcenko (1952-2014) na PUC-SP. O ano era 1982 e a contratação dele se deu em função de uma revolta dos alunos contra a inépcia de alguns professores. Foi num misto de expectativas e hesitações que trocamos as primeiras palavras.
Todos aqueles que foram alunos dele devem se lembrar de que em suas aulas, a princípio, ele parecia ratear, enunciando temas, títulos e nomes com vagar e distorcidas expressões faciais que soavam quase como palavras desconexas.
Estimulado por frequentes goles de chá, que ele tomava copiosamente, suas aulas logo se transformavam num verdadeiro turbilhão performático. Imagens, músicas e textos eram mobilizados para compor um painel, invariavelmente erudito, cujo efeito mais imediato era a desorientação. E aí o Nicolau demonstrava a imensa capacidade de reorganização e de promover aproximações sucessivas num verdadeiro engajamento lúdico, em que o emaranhado das diferenças e simultaneidades suplantava a racionalidade unitária e excludente.
Usualmente, ele se valia da rara qualidade de ouvinte atento para converter a questão mais impertinente em matéria para novos debates. Essa postura, avessa a qualquer forma de missionarismo pedagógico ou político, contribuiu para que ele conquistasse novos espaços de atuação e legitimação, na universidade como também na mídia.
Para além das formidáveis teses que escreveu, sua imensa produção ensaística revela um intelectual desassossegado, crítico dos temas e comportamentos que aprisionam e limitam a criatividade. Não por acaso, ao abordar a literatura, as artes, a ecologia, o viver em cidades, a emergência de novas tecnologias, ele operou a partir de uma perspectiva que ressaltava os paradoxos, a sensibilidade, o respeito às individualidades e diferenças ou ainda à multiplicidade das manifestações culturais em todos os níveis. Daí o desdém e o destrato que recebeu de colegas de orientação sectária e dos afortunados da desinteligência.
Nicolau Sevcenko esteve ao meu lado nos momentos mais altissonantes da minha vida e, diante da maior tragédia pessoal que experimentei, ele também foi solidário e atencioso. Além da valiosa e sincera amizade, Nicolau foi meu orientador de iniciação científica, mestrado e doutorado. Em todos esses momentos, ele incentivou a busca de autonomia, o estabelecimento de diálogo e cooperação com outros intelectuais, fomentou leituras randômicas e o rigor na pesquisa.
Nesse momento de ausência bruta e irreversível, recordo de um encontro cujo intuito era receber comentários acerca do relatório final a ser enviado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Inseguro, temeroso, disse a ele que esperava não tê-lo decepcionado. Não me recordo da apreciação sobre o texto. Retive tão somente a maior lição que carrego comigo e que chegou sob a forma de uma resposta enfática: "Schapô, cuida para não se decepcionar com você mesmo".
Isso já faz muito tempo. Hoje, repito versos de Waly Salomão: "Massacro meu medo, mascaro minha dor, já sei sofrer, não preciso de gente que me oriente". Contudo a gratidão, o otimismo em relação ao poder jovem e a crença na liberdade vão perdurar. Obrigado, Nik.
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