Por Slavoj Žižek
É demasiado fácil marcar pontos no debate sobre a violência por
meio de inversões espirituosas e que poderiam prosseguir indefinidamente –
então vamos acabar com este polêmico diálogo imaginário e arriscar um passo que
conduza diretamente ao “coração das trevas” do conflito do Oriente Médio.
Muitos pensadores políticos conservadores (e não só conservadores), de Blaise
Pascal a Immanuel Kant e Joseph de Maistre, elaboraram a ideia das origens
ilegítimas do poder, a ideia de “crime fundador” sobre o qual os nossos Estados
se baseiam, e é por isso que devemos oferecer ao povo “nobres mentiras” sob a
forma de heroicas narrativas de origem. A respeito dessas ideias, o que muitas
vezes se diz de Israel é bastante verdadeiro: o infortúnio de Israel é ter sido
estabelecido como Estado-nação um ou dois séculos mais tarde do que devia, em
condições nas quais tais crimes fundadores deixaram de ser aceitáveis. A
suprema ironia aqui é o fato de que foi justamente a influência intelectual
judaica que contribuiu para a afirmação dessa inadmissibilidade!
Durante minha última visita a
Israel, fui abordado por um intelectual israelita que, a par das minhas
simpatias palestinas, me perguntou em tom jocoso: “Não tem vergonha de estar
aqui, em Israel, esse Estado ilegal e criminoso? Não tem medo de ver aqui contaminadas
as suas credenciais de esquerda e de se tornar cúmplice do crime?”.
Com toda a honestidade, tenho
de admitir que toda vez que viajo a Israel experimento esse estranho
estremecimento de quem entra num território proibido, de violência ilegítima. Será
que isso significa que sou (não tão) secretamente antissemita? Mas o que
me perturba é precisamente que me descubro num Estado que ainda não apagou a
“violência fundadora” de suas origens “ilegítimas”, recalcando-as para um
passado intemporal. Nesse sentido, aquilo com que o Estado de Israel nos
confronta é simplesmente o passado apagado de todo
e qualquer poder
de Estado.
Por que seremos hoje mais
sensíveis a essa violência? Precisamente porque, num universo global que se
legitima através de uma moralidade global, os Estados soberanos deixaram de
poder eximir-se a juízos de ordem moral, mas são tratados como agentes morais
puníveis por seus crimes, apesar de continuar a ser discutível tanto aquele que
exerce a justiça como o estatuto de quem julga o juiz. A soberania do Estado é
assim severamente constrangida. Este aspecto explica o valor emblemático do
conflito no Oriente Médio: ele nos confronta com a fragilidade e a
permeabilidade da fronteira que separa o poder não estatal “ilegítimo” do poder
estatal “legítimo”.
No caso do Estado de Israel,
suas origens “ilegítimas” ainda não puderam ser elididas. Seus efeitos são hoje
plenamente sentidos. O que nos faz lembrar o lema da Ópera dos três vinténs de Bertolt Brecht: o que é um assalto
a banco comparado com a fundação de um banco? Para dize-lo de outra forma, o
que são os assaltos que violam a lei comparados com os assaltos que têm lugar
no quadro da lei? O que só faz crescer a tentação de propor uma nova variação
em torno deste lema: o que é um ato de terrorismo face a um poder de Estado que
faz a sua guerra contra o terrorismo?
Quando os observadores
ocidentais se perguntam desesperados por que é que os palestinos persistem no
seu apego obstinado à sua terra e se recusam a dissolver a própria identidade num
mar árabe mais vasto, estão exigindo que os palestinos ignorem precisamente
aquilo que constitui a violência fundadora de Estado “ilegítima” por parte de
Israel. Numa demonstração de justiça poética que afirma a ironia da história,
os palestinos devolvem a Israel a sua própria mensagem, sob uma forma invertida
e verdadeira. Existe o apego patológico à terra, implicando um direito de
regresso a ela ao cabo de milhares de anos – uma negação efetiva da
desterritorialização que se alega ser característica do capitalismo global
atual. Mas a mensagem invertida vai mais longe ainda. Imagine se lêssemos a
seguinte declaração nos meios de comunicação atuais:
Nossos inimigos nos chamaram de
terroristas […]. Pessoas que não foram nem nossos amigos nem nossos inimigos
[…] também usaram esse nome latino […]. E, no entanto, nós não fomos
terroristas […]. As origens históricas e linguísticas do termo político
“terror” demonstram que ele não pode ser aplicado a uma guerra revolucionária
de libertação […]. Os combatentes da liberdade têm de usar armas; de outro modo
seriam imediatamente esmagados […]. O que tem a ver com o “terrorismo” uma luta
em defesa da dignidade do homem, contra a opressão e a servidão?
Automaticamente atribuiríamos
esta mensagem a um grupo terrorista islâmico e, consequentemente, o
condenaríamos. Todavia, o autor dessas palavras não é outro senão o
ex-primeiro-ministro de Israel Menachem Begin, durante os anos em que a Haganah
combatia as forças britânicas na Palestina1. É interessante notar
que, durante os anos de luta dos judeus contra o exército britânico na
Palestina, o termo “terrorista” tinha uma conotação positiva. Passemos a outro
exercício mental: imaginemos ler nos jornais contemporâneos uma carta aberta
intitulada “Carta aos terroristas da Palestina”, que contivesse as seguintes
afirmações:
Meus bravos amigos. Podem não
acreditar no que escrevo a vocês, dada a atmosfera turva que hoje se respira.
Mas dou a minha palavra de velho repórter quando afirmo que o que escrevo é
verdade. Os palestinos da América estão do seu lado. Vocês são os nossos
heróis. Vocês são o nosso sorriso. São a pluma que enfeita o nosso chapéu. São
a primeira resposta que faz sentido – para o Novo Mundo. Toda vez que vocês
explodem um arsenal israelita, assaltam uma prisão israelita, fazem ir pelos
ares um trilho de trem israelita, roubam um banco israelita ou combatem com
suas armas e suas bombas os traidores israelitas invasores da sua pátria, os
palestinos da América celebram uma pequena festa em seus corações.
Na realidade, uma carta aberta
muito parecida foi publicada no fim da década de 1940 pela imprensa
estadunidense, assinada por ninguém menos que Ben Hecht, o célebre roteirista
de Hollywood. Limitei-me aqui a substituir a palavra “judeus” por “palestinos”
e “britânicos” por “israelitas”2 quase
encantador vermos a primeira geração dos líderes israelitas confessarem
abertamente o fato de suas reivindicações relativas à terra da Palestina não
poderem basear-se numa noção de justiça universal, de se inscreverem no quadro
de uma simples guerra de conquista travada entre dois grupos, não sendo
possível qualquer tipo de mediação entre eles. Eis o que o primeiro-ministro de
Israel David Ben-Gurion escreveu:
Qualquer pessoa pode se dar
conta do peso dos problemas nas relações entre árabes e judeus. Mas ninguém vê
que não há solução para estes problemas. Não há solução! Estamos diante de um
abismo e ninguém pode ligar seus dois lados […]. Nós, como povo, queremos que
esta terra seja nossa; os árabes, como povo, querem que esta terra seja deles.3
O problema que esta declaração
nos coloca hoje é muito claro: a ignorância de qualquer consideração moral
relativamente aos conflitos étnicos em torno da terra deixou de ser admissível.
É por isso que se nos parece tão profundamente problemático o modo como o
célebre caçador de nazistas Simon Wiesenthal abordou o problema em seu Justica não é
vinganca:
Um dia se compreenderá que é
impossível instaurar um Estado sem afetar os direitos de algumas das pessoas
que a essa altura vivem na região. (Porque onde ninguém viveu antes é
presumivelmente impossível de se habitar.) Teremos de nos contentar com o fato
dessas consequências serem limitadas e afetarem relativamente poucas pessoas.
Tal era a situação na época da fundação de Israel […]. Afinal, existira durante
muito tempo uma população judaica na região, e a população palestina era
relativamente dispersa e tinha alternativas relativamente numerosas perante a
perspectiva de ceder as suas posições.4
O que Wiesenthal advoga aqui
nada menos é do que uma violência fundadora de Estado com rosto humano; uma
violência, portanto, cujos abusos sejam limitados. (No que se refere à
dispersão comparativa dos colonos, a população do território palestino, em
1880, contava 25 mil judeus e 620 mil palestinos.) Todavia, na nossa atual
perspectiva, a afirmação mais interessante do ensaio de Wiesenthal aparece uma
página antes, onde escreve: “O continuamente vitorioso Estado de Israel não
poderá contar eternamente com a simpatia demonstrada às vítimas”5.
Wiesenthal parece querer dizer que hoje, quando o Estado de Israel se tornou
“continuamente vitorioso”, já não tem necessidade de se comportar como uma
vítima, mas pode passar a afirmar plenamente a sua força.
Talvez seja verdade, mas
devemos acrescentar que tal posição de força implica também novas
responsabilidades. O problema atualmente é que o Estado de Israel, apesar de
“continuamente vitorioso”, continua a apoiar-se na imagem dos judeus como
vítimas para legitimar a sua política de potência, bem como para denunciar os
que o criticam como simpatizantes disfarçados do Holocausto. Arthur Koestler, o
grande convertido anticomunista, formulou uma intuição profunda: “Se o poder
corrompe, a formulação inversa também é verdadeira; a perseguição corrompe as
vítimas, embora talvez de formas mais sutis e trágicas”.
Tal é a fraqueza fatal do único
argumento forte em defesa da criação de um Estado-nação judaico após o
Holocausto: ao criarem o seu próprio Estado, os judeus superariam a situação na
qual a sua liberdade dependeria dos Estados da diáspora e da tolerância ou
intolerância das respectivas maiorias nacionais. Embora esta linha de argumentação
seja diferente da religiosa, tem de recorrer à tradição religiosa para
justificar a localização geográfica do novo Estado. De outro modo, estaríamos
na situação descrita pela velha piada em que um louco procura a sua carteira
perdida perto de um poste de luz, ao invés de explorar o canto escuro em que
efetivamente a perdeu, porque na luz é mais fácil de enxergar: foi porque era
mais fácil assim que os judeus ocuparam a terra dos palestinos e não uma outra,
tomada àqueles que lhes haviam causado tanto sofrimento e manifestamente lhes
deviam reparação.
Robert Fisk, jornalista
britânico que vive no Líbano, fez um documentário sobre a crise do Oriente
Médio, em que descreve como os seus
vizinhos árabes, refugiados
palestinos, lhe mostraram a chave da casa que tinham possuído outrora em Haifa,
antes de ela lhes ter sido tirada pelos israelitas. Então ele visitou a família
judia que morava naquela casa e perguntou aos seus membros de onde eles tinham vindo. A resposta foi
Chrzanow, uma pequena cidade próxima de Cracóvia, na Polônia, e mostraram-lhe
então uma fotografia da sua anterior casa polaca, que haviam perdido durante a
guerra. O homem viajou, portanto, até a Polônia e procurou a mulher que então
vivia na casa de Chrzanow. Era uma “repatriada” de Lemberg, atualmente na
Ucrânia Ocidental. Não era difícil adivinhar qual seria o próximo elo da
cadeia. A repatriada fora exilada da sua cidade natal por ocasião da sua
conquista pela União Soviética. Sua casa fora evidentemente ocupada por russos
enviados no pós-guerra pelo governo para a cidade a fim de promover a sua
sovietização.6
E a história continua, é claro:
a família russa provavelmente se mudou de uma casa na Ucrânia Oriental,
destruída pelos alemães durante as grandes batalhas da Frente Leste… É aqui que
entra o Holocausto: a referência ao Holocausto permite aos israelitas
eximirem-se dessa cadeia de substituições. Mas quem evoca o Holocausto nestes
termos, o que faz de fato é manipula-lo, instrumentalizando-o ao serviço de
objetivos políticos momentâneos.
O grande mistério do conflito
israelo-palestino é ter persistido por tanto tempo quando todo mundo a única
solução viável para ele: a retirada dos israelitas da Cisjordânia e de Gaza e a
instauração de um Estado palestino, bem como um compromisso conseguido de uma
maneira ou de outra a propósito de Jerusalém. Sempre que um acordo pareceu
exequível, acabou desaparecendo inexplicavelmente. Quantas vezes não aconteceu
que, precisamente quando parece não faltar mais do que uma formulação adequada
relativa a certas questões menores para se chegar à paz, tudo volta a se
desfazer, revelando a fraqueza da solução negociada? O conflito do Oriente
Médio assumiu a feição de um sintoma neurótico: todo mundo vê a maneira de
vencer o obstáculo, e contudo ninguém quer removê-lo, como se houvesse algum
tipo de benefício libidinal na persistência do beco.
É por isso que a crise do
Oriente Médio é um ponto tão sensível para as políticas pragmáticas que visam
resolver o problema passo a passo, de maneira realista. No caso vertente, o que
é utópico é a própria ideia de que uma abordagem “realista” poderá funcionar
quando a única solução “realista” seria aqui a demaior dimensão: resolver o problema
pela raiz. A velha palavra de ordem de 1968 parece a única aplicável: Soyons realistes,
demandons l’impossible![Sejamos realistas, vamos exigir o
impossível!]. Só um gesto radical e “impossível” no quadro traçado pelas
circunstâncias presentes poderia ser uma saída realista. Talvez a solução que
“todo mundo conhece” como sendo a única viável – a retirada dos israelitas da
Margem Ocidental e de Gaza, a instauração de um Estado palestino – não
funcione, e tenhamos, portanto, de mudar de quadro, mudar as condições do
problema e encarar o horizonte da solução de um só Estado.
Aqui nos sentimos tentados, uma
vez mais, a falar sobre um nó sintomático: no conflito
israelo-palestino, não é verdade que os papéis habituais se encontram de certo
modo invertidos, torcidos como à volta de um nó? Israel – representando
oficialmente a modernidade liberal ocidental na região – é legitimado ao
invocar a sua identidade étnico-religiosa, enquanto os palestinos – acusados de
“fundamentalistas”– legitimam as suas reivindicações em termos de cidadania
secular. (É grande a tentação de arriscar a hipótese de que foi a própria
ocupação israelita dos territórios palestinos que impeliu os palestinos a
perceberem-se como uma nação separada em busca do seu próprio Estado, e não
mais como uma simples parte da massa árabe.)
Temos assim o paradoxo do
Estado de Israel, uma alegada ilha de modernidade liberal e democrática no
Oriente Médio, opondo-se às reclamações árabes por meio de uma afirmação
étnico-religiosa ainda mais “fundamentalista” do seu direito a uma terra santa.
A ironia maior é que, segundo certas pesquisas, os israelitas constituem a
nação mais ateia do mundo: cerca de 70% de sua população não crê em nenhum tipo
de divindade. Sua referência à terra assenta, assim, numa denegação de tipo
fetichista: “Sei muito bem que Deus não existe, mas acredito, apesar de tudo,
que foi Deus quem nos deu a terra do Grande Israel…”. E, como nos ensina a
história do nó górdio, a única maneira de se sair do beco atual não é
desenredar o nó, mas corta-lo. Como? Badiou abordou recentemente o impasse:
“A fundação de um Estado
sionista foi uma realidade composta altamente complexa. Por um lado, foi um
acontecimento que fazia parte de um outro ainda maior: a ascensão dos grandes
projetos revolucionários comunistas e socialistas, a ideia da fundação de uma
sociedade inteiramente nova. Por outro lado, foi um contra-acontecimento, parte
de um contra-acontecimento maior: o colonialismo, a conquista brutal por parte
de gente que vinha da Europa, de uma nova terra onde já vivia um outro povo.
Israel é uma mistura extraordinária de revolução e reação, de emancipação e
opressão. O Estado sionista tem de se tornar o que continha em si de justo e de
novo. Tem de se tornar o menos racial, o menos religioso e o menos nacionalista
dos Estados. O mais universal de todos eles.”7
Embora haja algo de verdadeiro
nessa perspectiva, o problema persiste: será possível desatar de fato o nó
diretamente e simplesmente separar os dois aspectos de Israel, no sentido de
consumar a perspectiva do projeto revolucionário do Estado sionista sem a sua
sombra colonizadora? Estamos como que perante a lendária resposta por meio de
um “Se…” que um político norte-americano deu, na década de 1920, à pergunta
“Apoia a proibição do vinho: sim ou não?”: “Se por vinho você entende a
terrível bebida que arruinou milhares de famílias, fazendo dos homens destroços
que batiam nas mulheres e se esqueciam dos filhos, então sou inteiramente
favorável à proibição. Mas se por vinho você entender a nobre bebida, de gosto
maravilhoso, que torna cada refeição um enorme prazer, então sou contra!”
Talvez precisemos de um pouco
mais: não só do traçado da linha que distingue o bom do mau Israel, mas de um
autêntico ato que transforme as próprias coordenadas da situação presente. O
antigo primeiro-ministro israelita Isaac Rabin deu o primeiro grande passo
nessa direção quando reconheceu a OLP como representante legítima dos
palestinos e, por conseguinte, o único verdadeiro parceiro de negociação.
Quando Rabin anunciou a
inversão da política israelita de “não fazemos negociações com a OLP,
organização terrorista” e pronunciou as simples palavras “vamos deixar esta
comédia de negociarmos com os palestinos sem ligações públicas com a OLP e
começar a falar com os nossos interlocutores reais”, a situação do Oriente
Médio mudou de imediato. Tal é o efeito de umverdadeiro ato político: torna
pensável o impensável. Embora fosse um político trabalhista, Rabin efetuou
assim um gesto que caracteriza os melhores momentos de certos políticos
conservadores: só um De Gaulle podia assegurar a independência da Argélia; só
um conservador como Nixon podia estabelecer relações com a China8.
Que poderia, então, constituir
hoje um ato desse tipo por parte dos
árabes? Fazer o que Edward Norton faz em Clube
da luta, de David Fincher: antes de mais nada, atacarem a si
próprios –
deixarem de atirar todas as culpas para cima dos judeus, como se a expansão
sionista na palestina fosse a origem e a representação simbólica de todas as
desgraças árabes, o que leva à ideia de que a vitória sobre Israel é a condição
imprescindível da autoafirmação árabe. Os palestinos que sustentam que a
libertação do seu território da ocupação israelita dará um novo impulso à
democratização do mundo árabe não estão vendo as coisas direito. Estas são
precisamente ao contrário. Deveríamos começar por denunciar abertamente os
corruptos regimes clericais e militares, da Síria à Arábia Saudita, que se
servem da ocupação israelita para se legitimarem. O paradoxo é que o foco de
toda a sua atenção em Israel é a razão pela qual os árabes estão perdendo a
batalha. O sentido fundamental da jihad no Islã não é a guerra contra o
inimigo exterior, mas o esforço de purificação interior.
Trata-se de uma luta contra as
próprias fraquezas e derrotas. Por isso talvez os muçulmanos devessem proceder
mais ativamente à passagem do sentido mais corrente entre o público ao
verdadeiro sentido da jihad.
Os três principais agentes da Guerra Contra o Terrorismo (os Estados Unidos pós-11 de Setembro,
Israel e os árabes) veem-se a si próprios como vítimas e usam sua condição de
vítimas para legitimar políticas expansionistas. Em certo sentido, o 11 de
Setembro aconteceu no momento certo para justificar o expansionismo militar
norte-americano: agora que nós também somos vítimas, podemos nos defender e
contra-atacar.
A aliança Estados
Unidos/Israel, essa estranha associação entre a nação (desenvolvida) mais
religiosa do mundo insistindo na separação entre a religião e o Estado e o povo
mais irreligioso do mundo cuja existência se baseia na natureza religiosa de
seu Estado, pode assim apresentar-se como um eixo das vítimas.
Então vamos à grande questão:
qual seria hoje o ato ético-politico verdadeiramente radical no Oriente Médio?
Tanto para os israelitas como para os árabes, consistiria no gesto de renúncia
ao controle (político) sobre Jerusalém, isto é, a promoção da transformação da
Cidade Velha de Jerusalém em um lugar extraestatal de culto religioso sob o
controle (temporário) de uma força internacional neutra.
O que os dois lados deveriam
aceitar é que, ao renunciarem ao controle político de Jerusalém, não estão
efetivamente renunciando a nada. Antes, estãoconseguindo a elevação de Jerusalém a um
autêntico lugar sagrado e extrapolítico. O que perderiam seria precisamente e
só o que já, por si próprio, merece ser perdido: a redução da religião a uma
parada em jogo na peça do poder político. Seria um verdadeiro acontecimento no
Oriente Médio a explosão da verdadeira universalidade política no
sentido de São Paulo: “Para nós não existem judeus nem palestinos.”
Ambos os lados teriam de compreender que essa renúncia do Estado-nação etnicamente
“puro” seria uma libertação para eles e não um simples sacrifício que cada um
faria ao outro.
Recordemos a história do
círculo de giz caucasiano em que Bertolt Brecht baseou uma de suas últimas
peças. Em tempos antigos, em algum lugar no Cáucaso, uma mãe biológica e uma
mãe adotiva recorreram a um juiz para que este decidisse a qual delas pertencia
a criança. O juiz desenhou um círculo de giz no chão, pôs o bebê no meio dele e
disse às duas mulheres que cada uma delas agarrasse a criança por um braço; a
criança pertenceria àquela que a conseguisse tirar para fora do círculo. Quando
a mãe real viu que a criança estava se machucando por ser puxada em direções
opostas, a compaixão levou-a a soltar o braço que segurava. Evidentemente, foi
a ela que o juiz deu o filho, alegando que a mulher demonstrara um autêntico
amor maternal. Segundo a mesma lógica, poderíamos imaginar um círculo de giz em
Jerusalém. Aquele que amasse verdadeiramente Jerusalém preferiria perde-la a
vê-la dilacerada pela disputa. Evidentemente, a suprema ironia é aqui o fato de
a pequena história brechtiana ser uma variante do juízo do Rei Salomão que
aparece no Antigo Testamento, que, reconhecendo que não havia maneira justa de
resolver o dilema maternal, propôs a seguinte solução de Estado: a criança
deveria ser cortada em duas, ficando uma metade para cada mãe. A verdadeira
mãe, é claro, desistiu da reivindicação.
O que os judeus e os palestinos
têm em comum é o fato de uma existência diaspórica fazer parte de suas vidas,
parte de sua própria identidade. E se ambos se unissem na base deste aspecto – não na base de
ocuparem, possuírem ou dividirem o mesmo território, mas na de manterem-no
partilhado, aberto como refúgio aos condenados à errância? E se Jerusalém se
transformasse não no lugar de um ou do outro, mas no lugar dos sem-lugar?
Tal solidariedade partilhada é
a única base possível para uma verdadeira reconciliação: para o entendimento de
que, ao combatermos o outro, combatemos o que há de mais vulnerável em nossa
própria vida. É por isso que, com plena consciência da seriedade do conflito e
de suas consequências potenciais, deveríamos insistir mais do que nunca na
ideia de que estamos diante de um falso conflito, de um conflito que
obscurece e mistifica a verdadeira linha de frente.
Notas
1. Menachem Begin, The
Revolt (Nova
York, Dell, 1977), p. 100-1.
2. A carta apareceu como um anúncio de página inteira no New York Post, 14 maio 1947, p. 42.
3. Citado pela revista Time, 24 jul. 2006.
4. Simon Wiesenthal, Justice, Not Vengeance (Londres, Mandarin, 1989), p. 266.
5. Ibidem, p. 265.
6. Norman Davies, Europe at War (Londres, Macmillan, 2006), p. 346 [ed. port.:A Europa em guerra: 1939-1945, Lisboa, Edições 70, 2008].
7. Alain Badiou, “The Question of Democracy”, Lacanian Ink, n. 28, 2o sem. 2006, p. 59.
8. Do mesmo modo, deveríamos elogiar Ehud Barak por sua resposta a Gideon Levy no Ha’aretz. Quando lhe perguntaram o que faria se tivesse nascido palestino, Barak respondeu, com efeito: “Teria aderido a uma organização terrorista”.
2. A carta apareceu como um anúncio de página inteira no New York Post, 14 maio 1947, p. 42.
3. Citado pela revista Time, 24 jul. 2006.
4. Simon Wiesenthal, Justice, Not Vengeance (Londres, Mandarin, 1989), p. 266.
5. Ibidem, p. 265.
6. Norman Davies, Europe at War (Londres, Macmillan, 2006), p. 346 [ed. port.:A Europa em guerra: 1939-1945, Lisboa, Edições 70, 2008].
7. Alain Badiou, “The Question of Democracy”, Lacanian Ink, n. 28, 2o sem. 2006, p. 59.
8. Do mesmo modo, deveríamos elogiar Ehud Barak por sua resposta a Gideon Levy no Ha’aretz. Quando lhe perguntaram o que faria se tivesse nascido palestino, Barak respondeu, com efeito: “Teria aderido a uma organização terrorista”.
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Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2014/07/25/zizek-o-circulo-de-giz-de-jerusalem/
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