A universidade está em pauta. Seja na imprensa convencional, seja na imprensa alternativa ou nos periódicos científicos, tem emergido a discussão sobre o futuro da instituição universitária. Trata-se de um debate não só necessário, mas urgente, visto que, no caso brasileiro, parece que nos encontramos diante do encerramento de um ciclo. Tomara que essa questão entre na agenda do debate eleitoral deste ano! E que, em universidades que estão a viver reformulações internas, como a UFPB, onde atuo profissionalmente, o tema seja apreciado com o rigor técnico exigido. Da minha parte, seja como for, nas condições possíveis e no espaço que dispuser, estarei a afirmar as minhas conhecidas posições sobre o assunto. E não poucas vezes estarei a lançar mão da minha pena (teclado) para expressar o que defendo - sem receio de patrulhamentos. Aí abaixo, você tem um artigo do Prof. Gerhard Malnic (USP) a respeito do tema.
Universidade Kasetsart, em Bangcoc, e as "soluções" pitorescas para enfrentar os desafios universitários atuais: chapéu para evitar cola |
Por Gerhard Malnic
Nos últimos meses, a discussão a respeito da reorganização das
universidades federais tem ocupado as mentes não só dos dirigentes do
Ministério da Educação mas também dos professores, funcionários e alunos das
universidades brasileiras. Até a década dos 60 do século passado, a grande
maioria das universidades brasileiras era constituída pelas universidades
públicas, estaduais e federais. As particulares, basicamente confessionais e
filantrópicas (PUC, Mackenzie), eram minoria. Hoje a maioria dos alunos (75 a
80%) estuda em faculdades particulares, mas boa parte da ciência brasileira
continua a ser feita nas escolas públicas.
Assim, levantamento feito há poucos anos pelo Instituto de Estudos
Avançados da USP (Carvalho da Silva e outros, 2000) mostra que 94,7% da
produção científica do País na forma de trabalhos publicados em revistas
internacionais vêm de universidades públicas, bem como 89,2 % dos doutores
formados no País. Isso mostra ampla predominância da produção dessas
universidades pelo menos na área das ciências básicas. A atual discussão sobre
o papel e o futuro das universidades federais deve levar em conta essa realidade.
É reconhecido em todo o mundo que a função das universidades não é
somente a formação de profissionais de nível superior, mas também a criação de
conhecimento, principalmente porque essa criação mantém os professores
atualizados e capazes tanto de efetuar a transmissão de conhecimento quanto de dar
uma verdadeira formação aos seus alunos. Dessa forma, os alunos podem adquirir
não somente conhecimentos livrescos, mas também uma criatividade que poderão
aplicar, por exemplo, nas atividades profissionais, levando à criação de
inovação científica e também de inovação tecnológica, tão essencial para nosso
desenvolvimento econômico. É claro que este tipo de formação não é prerrogativa
de universidades públicas, pois há várias particulares (caso das confessionais
citadas acima) que têm méritos nessa área, embora sua participação na produção
científica nacional ainda seja, na grande maioria dos casos, incipiente. Também
seria um exagero dizer que todas as universidades públicas apresentam
características de excelência , pois muitas, apresentam ainda muitas
deficiências. Mas as condições necessárias para a criação de verdadeiras
universidades, isto é, regime de tempo integral, pós-graduação, criação de
infra-estrutura adequada para pesquisa (laboratórios, bibliotecas, biotérios,
oficinas especializadas, apoio técnico), e perspectivas adequadas de progressão
na carreira, são encontradas e apoiadas mais amplamente nas universidades
públicas.
A conseqüência dessas considerações é a seguinte: se quisermos manter
neste País universidades que mereçam esse nome temos que apoiar as
universidades públicas em geral, tanto estaduais como federais. Mesmo que elas
sejam caras de manter e responsáveis por só 20 a 30% da formação de
profissionais de nível superior do País? Certamente, mesmo nessas condições,
pois elas concentram setores exponenciais nas áreas de ciência e cultura e
servirão para fecundar os demais setores, particularmente o ensino superior
particular, funcionando como modelos de universidades reais e exemplos a serem
seguidos. Por essa razão, a separação das universidades públicas em
universidades de pesquisa e universidades de ensino, proposta alguns anos
atrás, não faz sentido. No mundo das universidades e demais instituições de
ensino superior, pelo menos as estaduais e federais devem continuar sendo
instituições onde a pesquisa necessita sobreviver ao lado do ensino. Em muitos
estados só há uma dessas universidades, e conheço pessoalmente núcleos que
trabalham muito bem em várias universidades de estados mais pobres, como Bahia,
Pernambuco, Pará , Rio Grande do Norte , Paraíba e Sergipe – certamente há
outros que não conheço –, que mesmo com algumas deficiências de infra-estrutura
podem sobreviver com auxílio de entidades federais de apoio à pesquisa.
Mas não basta só se lamentar e cobrar mais apoio às universidades
públicas. Há nelas algumas limitações e dificuldades já centenárias que devem
ser discutidas abertamente e combatidas com eficiência. Entre elas, estão as
que discuto a seguir.
Uma questão da maior importância para as universidades é a luta pela
autonomia, não só acadêmica, mas também financeira. A vantagem desta autonomia
foi amplamente comprovada pelas universidades estaduais paulistas, às quais foi
outorgada no governo Quercia, na base do que já vinham recebendo do erário do estado
naquele momento, o que era considerado insuficiente para suas necessidades. É bastante óbvio que nunca se chegará a uma
situação considerada plenamente satisfatória ou mesmo ideal em um país com
tantas deficiências como o nosso. Mas a vantagem de poder estabelecer uma
política própria de gestão de pessoal, de salários, de equilíbrio entre gastos
com pessoal, investimentos e manutenção é enorme, considerando a grande
capacidade técnica das universidades no setor administrativo. Só assim será
possível fazer um planejamento a longo prazo, em paralelo à luta por uma
parcela dos meios do erário que possa ser considerada adequada. Além disso,
cada vez mais será necessário que as universidades consigam meios que
extrapolem o Tesouro, tradicionalmente exaurido, e façam isso por sua própria
iniciativa e não por imposição de organismos centrais, que não podem conhecer
adequadamente as condições locais em todo o País.
A própria carreira acadêmica necessita de aperfeiçoamento nas
universidades federais , e isso é algo que elas poderão efetivar com sua
autonomia.
Um concurso como o da livre docência, é claro que filtrado de alguns
aspectos quase que medievais de seu formalismo , poderia ser um concurso que
avaliasse a capacidade de trabalho independente em ciência e cultura, representando
a maioridade intelectual do professor, com base principalmente em seu
currículo, isto é, na sua produção científica e intelectual autônoma. Esses
professores é que poderiam também ter um papel da maior importância na política
universitária, o que é muitas vezes privilégio dos professores titulares ou é
açambarcado por docentes que têm pouca projeção científica ou intelectual e
interessam-se apenas por fazer política
na universidade .
Nosso sistema de pós-graduação tem sido elogiado quanto a sua eficiência,
não só no País mas também no Exterior. Este sistema certamente não é um
problema para a Universidade , particularmente da pública, mas um dos seus
grandes sucessos. Tem conseguido elevar acentuadamente a formação de mestres e
doutores, que precisam ser utilizados tanto nas próprias universidades que os
formam como na indústria e seus centros de pesquisa, infelizmente ainda muito escassos entre nós.
Portanto, o fortalecimento das universidades públicas é essencial para dar um
sentido prático à pós-graduação, afim de melhor aproveitar o excelente
contingente humano que é formado.
Outro sistema essencial para a pesquisa nas Universidades e que pode ser
considerado um sucesso parcial é o de apoio à ciência e tecnologia, de uma
maneira geral. É um sistema que inclui tanto mecanismos federais, como o CNPq,
a Capes, a Finep e outros (Ministério da Saúde, por exemplo), como estaduais,
incluindo aí as FAPs (Fundações de Amparo à Pesquisa dos Estados), das quais a
Fapesp é o brilhante modelo. Discuto aqui esse sistema pois constitui um apoio
fundamental e eficiente das universidades brasileiras, sejam públicas ou
privadas, por oferecer os meios financeiros que permitem executar os mais
diferentes projetos. Tem a grande vantagem de ser independente da política
universitária. Por outro lado, é
necessário reconhecer que muita da insatisfação que surge devido à distribuição
das verbas disponíveis nessas entidades financiadoras se deve principalmente à
escassez de recursos, pela limitação das verbas federais que chegam a elas e
pela ineficiência e pobreza de muitas das FAPs dos Estados. Assim, a competição
pelo apoio à pesquisa se torna feroz, e muitas vezes deixa de fora jovens
recém-doutorados que precisam iniciar vida científica própria, e entram num
círculo vicioso muitas vezes penoso: não recebem apoio porque não estão
produzindo e não podem produzir porque não possuem meios.
Considerando todas estas questões, bem como as vantagens e desvantagens
do sistema das universidades federais e públicas em geral, temos que concluir
que se trata de um sistema que foi construído com muitos sacrifícios,
principalmente de seus professores/pesquisadores, e que já atingiu um grau
considerável de desenvolvimento, apesar da óbvia heterogeneidade entre as
diferentes unidades. Boa ciência tem sido feita em muitos laboratórios. Como já
foi dito, a existência de pesquisa é uma condição “sine qua non” para formar
profissionais eficientes e capazes de criar inovação científica, cultural e
tecnológica, e seria um retrocesso gigantesco por a perder tudo o que foi feito
até hoje.
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