Por Ivonaldo Leite
Num texto publicado na década
de 1980, sugestivamente intitulado O Quadro Internacional, Celso
Furtado, de início, colocou em realce algo nada irrelevante: a aceleração do
tempo histórico como característica indelével da civilização industrial. Fazia
isso para afirmar que a criação de conhecimento, ou melhor, de conhecimento
especializado, assumiu a forma de um processo industrial, de tal modo
que só os especialistas não enxergam que a visão que eles propagam da realidade
em que estamos imersos é flagrantemente inadequada.
De fato. Tal processo industrial faz
crescer o seu produto de forma exponencial, e transforma o conhecimento em
ingrediente de conquista do poder, em suas diversas formas. O impacto de um
desmesurado fluxo de informações nos sistemas de decisões e, a fortiori, no tempo histórico é algo que
sequer podemos apreciar. Mas o problema situa-se precisamente por aqui. O
conhecimento em pedaços. O olhar fragmentado. A perda de visão da totalidade dos
processos. Isto é assim por que a produção do conhecimento especializado sobre
a sociedade funda-se no espírito analítico o qual, potencializado pelo êxito
que alcançou nas ciências da natureza, procura dominar os diversos campos
apropriando-se apenas das suas partes, recusando, portanto, uma
apreensão/compreensão global da realidade histórica.
Podemos, dessa forma, entender a razão de ser tão pequena a sensibilidade
contemporânea para os problemas específicos de um processo histórico em que
está em causa não apenas as heranças culturais da humanidade, mas algo mais
concreto, mais material, isto é, a sobrevivência da própria humanidade. Com
efeito, não se pode fugir de questões como, por exemplo, o equilíbrio ecológico
e a polarização mundial entre sociedades que se permitem um desperdício
crescente de recursos e outras em que é alarmante a carência do essencial.
Contudo, estas não são questões devidamente alcançadas pelas abordagens regidas
metodologicamente por focagens fragmentadas.
Pensar a sociedade contemporânea em sua totalidade, ou simplesmente tentar uma
visão abrangente da condição humana nessa engrenagem que se transformou a civilização
industrial (ou pós-industrial), afiguram-se posturas anacrônicas aos promotores
da especialização nas ciências humanas. A sujeição ao espírito analítico num
contexto de aceleração do tempo histórico faz com que, frequentemente, sejamos
prisioneiros de supostas visões que projetam a imagem de uma realidade que já
não existe. E, para se evitar mal-entendidos, digamos como as coisas são: não
se trata somente de insuficiência na atualização de informação, mas de
constrições impostas à apreensão da realidade pela metodologia empregada. Por
ser assim, os paradigmas através dos quais os cientistas sociais objetivam
transmitir uma visão ampla da realidade social privilegiam, no trabalho de
apreensão, o que se supõe ser estável, quer dizer, o que é parametrizável,
pondo-se de parte o que é descontinuidade, inovação, criatividade. Ora, a
compreensão da realidade social - e nisto o historiador
analítico com o seu olhar retrospectivo e prospectivo encontra-se numa
posição privilegiada - requer a antevisão do vir
a ser que só a imaginação
produz.
Não basta armar-se de instrumentos metodológicos formalizados para alcançar um
determinado objetivo. Na engrenagem à qual fomos conduzidos pela civilização
industrial, compreender a realidade e fazer o conhecimento avançar, implica em
se adotar uma postura que aposte na criatividade e afirme a coragem para se
arriscar na busca do incerto. Além disso, as ciências humanas admitem a
evidência de que a vida de homens e mulheres é, em grande parte, um
processo criativo consciente, o que implica em que se postule o princípio da responsabilidade
moral. Daí há que se admitir
a necessidade de compromisso ético com determinados valores.
De resto, cabe assinalar que a ordem histórica da investigação e da elaboração
de conceitos é distinta. E não se trata de uma distinção acidental ou derivada
da falta de rigor metodológico. Pelo contrário. Ela resulta do fato de que as
categorias e teorias são formuladas na prática política e na prática
intelectual de um conjunto de pessoas socialmente situadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário