terça-feira, 5 de agosto de 2014

Sobre conhecer e conhecimento: intermitências






Por Ivonaldo Leite 


Num texto publicado na década de 1980, sugestivamente intitulado O Quadro Internacional, Celso Furtado, de início, colocou em realce algo nada irrelevante: a aceleração do tempo histórico como característica indelével da civilização industrial. Fazia isso para afirmar que a criação de conhecimento, ou melhor, de conhecimento especializado, assumiu a forma de um processo industrial, de tal modo que só os especialistas não enxergam que a visão que eles propagam da realidade em que estamos imersos é flagrantemente inadequada. 

De fato. Tal processo industrial faz crescer o seu produto de forma exponencial, e transforma o conhecimento em ingrediente de conquista do poder, em suas diversas formas. O impacto de um desmesurado fluxo de informações nos sistemas de decisões e, a fortiori, no tempo histórico é algo que sequer podemos apreciar. Mas o problema situa-se precisamente por aqui. O conhecimento em pedaços. O olhar fragmentado. A perda de visão da totalidade dos processos. Isto é assim por que a produção do conhecimento especializado sobre a sociedade funda-se no espírito analítico o qual, potencializado pelo êxito que alcançou nas ciências da natureza, procura dominar os diversos campos apropriando-se apenas das suas partes, recusando, portanto, uma apreensão/compreensão global da realidade histórica. 

Podemos, dessa forma, entender a razão de ser tão pequena a sensibilidade contemporânea para os problemas específicos de um processo histórico em que está em causa não apenas as heranças culturais da humanidade, mas algo mais concreto, mais material, isto é, a sobrevivência da própria humanidade. Com efeito, não se pode fugir de questões como, por exemplo, o equilíbrio ecológico e a polarização mundial entre sociedades que se permitem um desperdício crescente de recursos e outras em que é alarmante a carência do essencial. Contudo, estas não são questões devidamente alcançadas pelas abordagens regidas metodologicamente por focagens fragmentadas. 

Pensar a sociedade contemporânea em sua totalidade, ou simplesmente tentar uma visão abrangente da condição humana nessa engrenagem que se transformou a civilização industrial (ou pós-industrial), afiguram-se posturas anacrônicas aos promotores da especialização nas ciências humanas. A sujeição ao espírito analítico num contexto de aceleração do tempo histórico faz com que, frequentemente, sejamos prisioneiros de supostas visões que projetam a imagem de uma realidade que já não existe. E, para se evitar mal-entendidos, digamos como as coisas são: não se trata somente de insuficiência na atualização de informação, mas de constrições impostas à apreensão da realidade pela metodologia empregada. Por ser assim, os paradigmas através dos quais os cientistas sociais objetivam transmitir uma visão ampla da realidade social privilegiam, no trabalho de apreensão, o que se supõe ser estável, quer dizer, o que é parametrizável, pondo-se de parte o que é descontinuidade, inovação, criatividade. Ora, a compreensão da realidade social - e nisto o historiador analítico com o seu olhar retrospectivo e prospectivo encontra-se numa posição privilegiada - requer a antevisão do vir a ser que só a imaginação produz. 
Não basta armar-se de instrumentos metodológicos formalizados para alcançar um determinado objetivo. Na engrenagem à qual fomos conduzidos pela civilização industrial, compreender a realidade e fazer o conhecimento avançar, implica em se adotar uma postura que aposte na criatividade e afirme a coragem para se arriscar na busca do incerto. Além disso, as ciências humanas admitem a evidência de que a vida de homens e mulheres é, em grande parte, um processo criativo consciente, o que implica em que se postule o princípio da responsabilidade moral. Daí há que se admitir a necessidade de compromisso ético com determinados valores. 
De resto, cabe assinalar que a ordem histórica da investigação e da elaboração de conceitos é distinta. E não se trata de uma distinção acidental ou derivada da falta de rigor metodológico. Pelo contrário. Ela resulta do fato de que as categorias e teorias são formuladas na prática política e na prática intelectual de um conjunto de pessoas socialmente situadas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário