segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A infância em questão: a 'adultização' das crianças

A sociologia da infância, como já a tenho referido neste espaço, tem aportado um vasto contributo que põe a descoberto os equívocos cometidos no cotidiano das crianças, designadamente em torno de temas como erotização e 'adultização'. Também as 'ciências psi' têm chamado a atenção para a questão. Em síntese: há, na comunidade científica, um amplo consenso rejeitando as posturas que, ao fim e ao cabo, tornam as crianças adultas precoces. Aí abaixo, edição recente do centenário Diário de Pernambuco (Caderno Ciência e Saúde) enfoca a questão, repercutindo uma discussão veiculada na publicação Saúde Plena. A conferir. 



Em 2011, a notícia de um sutiã com enchimento da Disney destinado às crianças de 4 a 6 anos mobilizou protestos na internet contra a adultização e erotização da infância. Por que meninas dessa idade usariam sutiã? Que família compraria um produto como esse? Alguns produtos sequer deveriam existir? Três anos depois e uma busca rápida pela internet mostram que a roupa íntima não só está no mercado como ganhou ares de ‘sofisticação’ com bojo, renda e aro. Detalhe: em alguns sites é possível encontrar a peça para bebês de 2 anos. “Não basta dizer às pessoas que não comprem. Precisamos de produtos adequados nas prateleiras”, resume a educadora para o consumo, coordenadora do Movimento Consciência e Consumo e colaboradora do Movimento Infância Livre de Consumismo, Desirée Ruas.
A psicanalista e psicopedagoga Cristina Silveira reforça que sutiãs - com ou sem bojo - para crianças entre 2 e 7 anos é um acessório completamente inadequado. “Nesse período, a menina não tem desenvolvimento físico, nem competência emocional ou mesmo cognitiva para entender todo o processo que envolve a utilização dessa peça. Um sutiã com bojo é um acessório que remete a um processo de adultização e sedução, assim como a maquiagem e os saltos altos”, afirma. 

Para ela, usar essa peça – e ela repete: “seja com ou sem bojo” - para ir à escola, ao parque ou em atividades rotineiras da criança é muito diferente de quando a criança está brincando de imitar a mãe, por exemplo. “Por volta dos três, quatro anos de idade é comum que as crianças imitem os pais, irmãos, primos ou amigos durante as brincadeiras, o que é normal. Isso acontece por que a criança começa a se identificar, a perceber que as pessoas são diferentes. Para formar a sua identidade, passa então a experimentar novas emoções, sensações, buscando reconhecer aquilo que gosta e o que não gosta. Pode brincar de "mamãe", passar um batom, fingir que está cozinhando ou trabalhando, tentar usar os sapatos da mamãe, mas essa brincadeira é muito diferente de usar um sutiã de bojo em sua vida cotidiana, como se isso fizesse parte de sua infância”, alerta Cristina. 
Desirée Ruas lembra ainda que, se é para a criança brincar de ser gente grande, o que é natural, não precisa da compra de produtos. “Para brincar, a criança não precisa do objeto concreto, afinal, brincadeira de verdade tem a imaginação e a fantasia como principais ingredientes”, acredita. O outro lado perverso desse consumo sem reflexão é, segundo ela, ver famílias criando rotinas de beleza para as filhas que não tem nada de lúdico: “Questões da vida adulta são colocadas para as crianças desde muito cedo, causando dependência desse tipo de consumo, de culto à aparência, já nos primeiros anos de vida”.

Infância vendida
A psicóloga Cristina Silveira diz ainda que a existência de sutiã para crianças exemplifica muito mais um investimento do mercado que achou na infância um filão para lucrar com produtos dessa natureza - sapatos de salto alto, maquiagem e garrafas de refrigerante que imitam champanhe - do que o desejo da criança em usar esses acessórios. “Na sequência, infelizmente, existe a aceitação e permissão de algumas famílias nesse absurdo. Talvez por desconhecimento das consequências que essa adultização pode trazer para vida de uma criança”, pontua. 
Desirée Ruas acredita que a responsabilidade é de todos. “Indústria, famílias, governos, mídia. Cada um tem que assumir o seu papel para contribuir com a proteção e o desenvolvimento saudável das crianças e para a construção de uma sociedade melhor para se viver. Sejam nossos filhos ou não, devemos nos importar com todas as crianças, questionar condutas que são explicitamente comerciais, que exploram a infância visando o lucro e que incentivam um comportamento que não contribui em nada para aquela faixa etária. Infelizmente, encontramos muitas famílias que compram estes produtos para seus filhos... Muitas vezes em momento de impulso, às vezes é a avó ou a tia que dá de presente, ou a criança pede e os pais compram sem refletir. Não se perguntam: minha filha precisa disso? Qual a função deste produto? Qual o significado real e o simbólico desta compra? Cada vez mais as crianças deixam de ser crianças, em meio ao consumismo, a tantos bens e a comportamentos de adultos”, pontua.


O Saúde Plena entrou em contato com as empresas que vendem sutiã para crianças para saber como é a venda da peça e conseguiu retorno de apenas uma. “Artigos como sutiãs e conjuntos infantis representam menos de 10% das vendas, as calcinhas são responsáveis por quase todo movimento no estoque de produtos infantis”, disseram por e-mail. 

Adultização da infância: o que é
Vestir uma criança como um miniadulto tem várias repercussões, mas a adultização não passa apenas pela aparência. “Cada vez mais cedo, elas assumem responsabilidades e disputam posições em determinadas atividades, buscando múltiplas competências. Desprotegidas, recebem de forma direta a influência de uma sociedade que exige seres perfeitos, sentindo o peso das exigências de “gente grande”. Imitam hábitos e costumes dos adultos e, muitas vezes, já nem sentem alegria pela infância”, alerta a psicóloga Cristina Silveira.
A especialista lembra ainda que a criança não tem consciência dessa opressão e se submete a ela pois é considerada natural. “Na verdade, podemos avaliar que essa adultização vem de um processo cultural. Pipocam no comércio artigos para o público infantil que até então somente os adultos consumiam”, diz. Para ela, vestir uma criança e produzí-la como adulto é deslocá-la da fase em que ela deveria estar e jogá-la no universo adulto. “Munir uma criança de sexualidade é dar-lhe uma arma carregada que ela não saberá usar, até porque passa longe da criança o sentido erótico por trás do que ela veste ou usa. Sua maturidade psicológica certamente não acompanhará seu comportamento e sua aparência. Tal fato pode causar transtornos ansiosos e pânico, que podem culminar em depressão. Ou, então, podem repercutir na adolescência, através de comportamentos agressivos e antissociais, ou o contrário, gerando adolescentes inseguros e infantilizados, podendo culminar no uso de drogas. Pulando “fases”, a criança não amadurece psiquicamente o suficiente para lidar com as transformações que virão até alcançar a fase adulta”, alerta.
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Fonte: http://www.diariodepernambuco.com.br/


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