O conflito israel-palestiniano, mais uma vez, agudizou-se (se é que, nos últimos setenta anos, em algum momento, esteve atenuado). A complexidade que envolve a questão não exime as instâncias de gestão da segurança internacional de suas responsabilidades em não levar a cabo um pacto que permita a israelenses e palestinos viverem em paz, em seus Estados (sendo que o palestino ainda não existe). É indisfarçável, da mesma forma, a complacência de determinadas potenciais ocidentais para com Israel, diante dos sucessivos massacres que o país tem cometido contra os palestinos (população civil - crianças, inocentes), mediante ataques a hospitais, escolas, residências, etc., assim como perante a construção do muro da segregação na Cisjordânia. Ora, após o fim da Segunda Guerra, quando os judeus regressaram à Palestina, a mesma resolução da ONU, em 1947, que garantiu a criação do Estado de Israel também assegurava a criação do Estado palestino. Em 1948, o líder judeu David Ben Gurion proclamou a criação do primeiro; quanto aos palestinos, que lá já se encontravam, a história foi (e tem sido) outra. Em três momentos marcantes (1948-1949, 1956 e 1967), com ataques fulminantes, Israel expulsou palestinos e apossou-se dos seus territórios - e o resultado está aí. Até hoje o Estado Palestino não foi criado. Equivalendo-se a tantos absurdos contra os palestinos, temos hoje as "análises" de alguns 'opináticos' nos meios de comunicação que, atolados na ignorância, reproduzem asneiras como dizer que 'não existe povo palestino' (resta saber quem está sofrendo e morrendo com os bombardeios...). Foi o que fez, por exemplo, um articulista na Folha de São Paulo recentemente (artigo disponível aqui: Palestina). Ao que se seguiu uma resposta de Salem H. Nasser (Professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas), intitulado 'O Cadáver da Palestina', o qual reproduzo a seguir.
Soldados israelenses: Palestina sitiada |
Por Salem H. Nasser
Waldir Troncoso Peres, o grande advogado criminalista,
falando um dia sobre teses da defesa –aquelas razões que absolvem ou reduzem a
pena– ofereceu esta frase lapidar: "A função do advogado de defesa é fazer
os jurados esquecerem que existe um cadáver".
Em algo parecido acreditam,
por motivos menos dignos, os que sustentam a inexistência do povo palestino,
como fez [na] Folha Flavio
Bierrenbach (Palestina, 6/7).
Não se trata aqui de responder
àquele artigo que, francamente, contém pouco que mereça resposta e
evidentemente foi escrito por quem não conhece o assunto – ninguém que inclua o
Hizbullah entre os grupos da resistência armada palestina e o veja submetido em
algum momento da história a Yasser Arafat pode se dizer conhecedor.
É a intenção por trás de
advogar a tese que precisa ser exposta.
O artigo parece pedir um
contexto –já que, significativamente, nem sequer são mencionados os últimos
acontecimentos na faixa de Gaza e nos territórios ocupados. Talvez a explicação
esteja em que, em 9 de julho, completaram-se os dez anos do parecer da Corte
Internacional da Justiça, um dos principais órgãos da ONU, no qual 14 dos 15
juízes decidiram que a construção por Israel de um muro em territórios
palestinos ocupados e, antes dele, a própria ocupação violam o princípio de não
aquisição de territórios pela força, os direitos humanos dos palestinos, o
direito humanitário –aplicável a conflitos armados– e, sobretudo, o direito de
autodeterminação do povo palestino. O juiz americano, único a votar contra, não
chegou a negar as violações, mas opôs-se a que a corte se manifestasse.
A efeméride talvez tenha
urgido alguns a negarem a existência dos detentores dos direitos violados.
Certamente, haveria mérito numa discussão acadêmica –como a que faz o
historiador israelense Shlomo Sand em relação ao que chama de a invenção do
povo judeu– sobre a medida em que os povos são de fato coisas inventadas que
deitam suas raízes no mito.
Mas o exercício que fazem os
negacionistas do povo palestino está longe de querer nos informar sobre o mundo
das coisas humanas e sobre as ciências que o explicam.
O que se pretende é nos dizer
que não existem os palestinos habitantes históricos da Palestina –"terra
sem povo"–, que não existe o povo com direito à autodeterminação, que não
existe o povo que habitava as aldeias sobre as quais sentam agora as cidades
israelenses, que não existem os milhões de refugiados, os donos das casas
destruídas, os donos das oliveiras derrubadas, que não existiram os pais dos
órfãos nem existem os órfãos, que não existem as pessoas cercadas pelos muros e
pelo arame farpado e, incidentalmente, que não existe quem esteja nestes dias
sofrendo os bombardeios da aviação israelense.
O exercício nos diz que não há
um cadáver, e é para que esqueçamos o crime. Por não poder, ainda, apagar a
existência concreta das pessoas, o que se tenta fazer, ao negar a qualidade de
"povo", é despir de significado essa existência –sutileza percebida
por Hannah Arendt em "Eichmann em Jerusalém"– permitindo que contra
esses seres humanos se possa tudo, da opressão à morte, passando pelo desterro.
Trata-se de um tipo especial
de racismo, que não se basta com representar a sua vítima como torpe, vil,
traiçoeira e naturalmente orientada para a violência, mas quer despi-la do
direito de definir a sua identidade, negar-lhe o direito de ser, apagá-la da
sua própria história.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/07/1487025-salem-h-nasser-o-cadaver-da-palestina.shtml
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