terça-feira, 22 de julho de 2014

O Cadáver da Palestina

O conflito israel-palestiniano, mais uma vez, agudizou-se (se é que, nos últimos setenta anos, em algum momento, esteve atenuado). A complexidade que envolve a questão não exime as instâncias de gestão da segurança internacional de suas responsabilidades em não levar a cabo um pacto que permita a israelenses e palestinos viverem em paz, em seus Estados (sendo que o palestino ainda não existe). É indisfarçável, da mesma forma, a complacência de determinadas potenciais ocidentais para com Israel, diante dos sucessivos massacres que o país tem cometido contra os palestinos (população civil - crianças, inocentes), mediante ataques a  hospitais, escolas, residências, etc., assim como perante a construção do muro da segregação na Cisjordânia. Ora, após o fim da Segunda Guerra, quando os judeus regressaram à Palestina, a mesma resolução da ONU, em 1947, que garantiu a criação do Estado de Israel também assegurava a criação do Estado palestino. Em 1948, o líder judeu David Ben Gurion proclamou a criação do primeiro; quanto aos palestinos, que lá já se encontravam, a história foi (e tem sido) outra. Em três momentos marcantes (1948-1949, 1956 e 1967), com ataques fulminantes, Israel expulsou palestinos e apossou-se dos seus territórios - e o resultado está aí. Até hoje o Estado Palestino não foi criado. Equivalendo-se a tantos absurdos contra os palestinos, temos hoje as "análises" de alguns 'opináticos' nos meios de comunicação que, atolados na ignorância, reproduzem asneiras como dizer que 'não existe povo palestino' (resta saber quem está sofrendo e morrendo com os bombardeios...). Foi o que fez, por exemplo, um articulista na Folha de São Paulo recentemente (artigo disponível aqui: Palestina). Ao que se seguiu uma resposta de Salem H. Nasser (Professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas), intitulado 'O  Cadáver da Palestina', o qual reproduzo a seguir. 

Soldados israelenses: Palestina sitiada  

Por Salem H. Nasser

Waldir Troncoso Peres, o grande advogado criminalista, falando um dia sobre teses da defesa –aquelas razões que absolvem ou reduzem a pena– ofereceu esta frase lapidar: "A função do advogado de defesa é fazer os jurados esquecerem que existe um cadáver".
Em algo parecido acreditam, por motivos menos dignos, os que sustentam a inexistência do povo palestino, como fez [na] Folha Flavio Bierrenbach (Palestina, 6/7).
Não se trata aqui de responder àquele artigo que, francamente, contém pouco que mereça resposta e evidentemente foi escrito por quem não conhece o assunto – ninguém que inclua o Hizbullah entre os grupos da resistência armada palestina e o veja submetido em algum momento da história a Yasser Arafat pode se dizer conhecedor.
É a intenção por trás de advogar a tese que precisa ser exposta.
O artigo parece pedir um contexto –já que, significativamente, nem sequer são mencionados os últimos acontecimentos na faixa de Gaza e nos territórios ocupados. Talvez a explicação esteja em que, em 9 de julho, completaram-se os dez anos do parecer da Corte Internacional da Justiça, um dos principais órgãos da ONU, no qual 14 dos 15 juízes decidiram que a construção por Israel de um muro em territórios palestinos ocupados e, antes dele, a própria ocupação violam o princípio de não aquisição de territórios pela força, os direitos humanos dos palestinos, o direito humanitário –aplicável a conflitos armados– e, sobretudo, o direito de autodeterminação do povo palestino. O juiz americano, único a votar contra, não chegou a negar as violações, mas opôs-se a que a corte se manifestasse.
A efeméride talvez tenha urgido alguns a negarem a existência dos detentores dos direitos violados. Certamente, haveria mérito numa discussão acadêmica –como a que faz o historiador israelense Shlomo Sand em relação ao que chama de a invenção do povo judeu– sobre a medida em que os povos são de fato coisas inventadas que deitam suas raízes no mito.
Mas o exercício que fazem os negacionistas do povo palestino está longe de querer nos informar sobre o mundo das coisas humanas e sobre as ciências que o explicam.
O que se pretende é nos dizer que não existem os palestinos habitantes históricos da Palestina –"terra sem povo"–, que não existe o povo com direito à autodeterminação, que não existe o povo que habitava as aldeias sobre as quais sentam agora as cidades israelenses, que não existem os milhões de refugiados, os donos das casas destruídas, os donos das oliveiras derrubadas, que não existiram os pais dos órfãos nem existem os órfãos, que não existem as pessoas cercadas pelos muros e pelo arame farpado e, incidentalmente, que não existe quem esteja nestes dias sofrendo os bombardeios da aviação israelense.
O exercício nos diz que não há um cadáver, e é para que esqueçamos o crime. Por não poder, ainda, apagar a existência concreta das pessoas, o que se tenta fazer, ao negar a qualidade de "povo", é despir de significado essa existência –sutileza percebida por Hannah Arendt em "Eichmann em Jerusalém"– permitindo que contra esses seres humanos se possa tudo, da opressão à morte, passando pelo desterro.
Trata-se de um tipo especial de racismo, que não se basta com representar a sua vítima como torpe, vil, traiçoeira e naturalmente orientada para a violência, mas quer despi-la do direito de definir a sua identidade, negar-lhe o direito de ser, apagá-la da sua própria história.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/07/1487025-salem-h-nasser-o-cadaver-da-palestina.shtml



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