Aí abaixo, a carta que o físico-químico Ilya Prigogine, russo com naturalidade belga, escreveu poucos anos antes do seu falecimento. Como pesquisador, dirigia-se às futuras gerações. Buscou a aproximação das ciências naturais ou exatas (como queira) com as ciências humanas - o que é um "empreendimento" de fôlego. Talvez isso explique algumas incongruências suas no plano da abordagem sócio-histórica. Mas a carta tem o seu valor. A conferir.
Ciência e novas gerações: olhos no futuro |
Por Ilya Prigogine
Escrevo esta carta na mais completa
humildade. Meu trabalho é no domínio da ciência. Não me dá qualquer
qualificação especial para falar sobre o futuro da humanidade. As moléculas
obedecem a ''leis". As decisões humanas dependem das lembranças do passado
e das expectativas para o futuro. A perspectiva sob a qual vejo o problema da
transição da cultura da guerra para uma cultura de paz - para usar a expressão
de Federico Mayor - se obscureceu nos últimos anos, mas continuo otimista.
De
qualquer forma, como poderia um homem da minha geração - nasci em 1917- não ser
otimista? Não vimos o fim de monstros como Hitler e Stalin? Não testemunhamos a
miraculosa vitória das democracias na Segunda Guerra Mundial? No final da
guerra, todos nós acreditávamos que a História recomeçaria do zero, e os
acontecimentos justificaram esse otimismo.
Os marcos
da era incluem a fundação da Organização das Nações Unidas e da Unesco, a
proclamação dos direitos do homem e a descolonização. Em termos mais gerais,
houve o reconhecimento das culturas não européias, do qual derivou uma queda do
eurocentrismo e da suposta desigualdade entre os povos "civilizados e os
''não-civilizados". Houve também uma redução na distância entre as classes
sociais, pelo menos nos países ocidentais.
Esse
progresso foi conquistado sob a ameaça da Guerra Fria. No momento da queda do
Muro de Berlim, começamos a acreditar que enfim seria realizada a transição da
cultura da guerra para a cultura da paz. No entanto, a década que se seguiu não
tomou esse rumo. Testemunhamos a persistência, e até mesmo a ampliação, dos
conflitos locais, quer sejam na África, quer nos Bálcãs. Isso pode ser
considerado, ainda, como um resultado da sobrevivência do passado no presente.
No entanto, além da ameaça nuclear sempre presente, novas sombras apareceram: o
progresso tecnológico agora torna possível guerras travadas premindo botões,
semelhantes de alguma forma a um jogo eletrônico.
Sou uma das
pessoas que ajudaram a formular as políticas científicas da União Européia. A
ciência une os povos. Criou uma linguagem universal. Muitas outras disciplinas,
como a economia e a ecologia, também requerem cooperação internacional. Fico,
por isso, ainda mais atônito quando percebo que os governos estão tentando
criar um exército europeu como expressão da unidade da Europa. Um exército
contra quem? Onde está o inimigo? Por que esse crescimento constante nos
orçamentos militares, quer na Europa, quer nos Estados Unidos? Cabe às futuras
gerações tomar uma posição sobre isso. Na nossa era, e isso será cada vez mais
verdade no futuro, as coisas estão mudando a uma velocidade jamais vista. Vou
usar um exemplo científico.
Quarenta
anos atrás, o número de cientistas interessados na física de estado sólido e na
tecnologia da informação não passava de umas poucas centenas. Era uma
"flutuação", quando comparado às ciências como um todo. Hoje, essas
disciplinas se tornaram tão importantes que têm consequências decisivas para a
história da humanidade.
Crescimento
exponencial foi registrado no número de pesquisadores envolvidos nesse setor da
ciência. E um fenômeno de proporção sem precedentes, que deixou muito para trás
o crescimento do budismo e do cristianismo.
Em minha
mensagem às futuras gerações, gostaria de propor argumentos com o objetivo de
lutar contra os sentimentos de resignação ou impotência. As recentes ciências
da complexidade negam o determinismo; insistem na criatividade em todos os
níveis da natureza. O futuro não é dado.
O grande
historiador francês Fernand Braudel escreveu: ''Eventos são poeira". Isso
é verdade? O que é um evento? Uma analogia com ''bifurcações", estudadas
na física do não equilíbrio, surge imediatamente. Essas bifurcações aparecem em
pontos especiais nos quais a trajetória seguida por um sistema se subdivide em
ramos". Todos os ramos são possíveis, mas só um deles será seguido. No
geral não se vê apenas uma bifurcação. Elas tendem a surgir em sucessão. Isso
significa que, até mesmo nas ciências fundamentais, há um elemento temporal,
narrativo, e isso constitui o "fim da certeza", o título do meu
último livro. O mundo está em construção e todos podemos participar dela.
Metáforas
úteis. Como escreveu Immanuel Wallerstein: ''É possível - possível, mas não
certo - criar ou construir um mundo mais humano e igualitário, melhor ancorado
no racionalismo material". Flutuações do nível microscópico decidem que
ramo emergirá em cada ponto de bifurcação, e portanto que evento acontecerá. O
apelo às ciências da complexidade não significa que estejamos sugerindo que as
ciências humanas sejam "reduzidas" à física. Nossa empreitada não é
de redução, mas de reconciliação. Conceitos introduzidos das ciências da
complexidade podem servir como metáforas muito mais úteis do que o tradicional
apelo a metáforas newtonianas.
As
ciências da complexidade, assim, conduzem a uma metáfora que pode ser aplicada
à sociedade: um evento é a aparição de uma nova estrutura social depois de uma
bifurcação; flutuações são o resultado de ações individuais.
Todo
evento tem uma ''microestrutura''. Tomemos como um exemplo histórico a Revolução
Russa de 1917. O fim do regime czarista poderia ter tomado diferentes formas, e
o ramo seguido resultou de diversos fatores, tais como a falta de previsão do
czar, a impopularidade de sua mulher, a debilidade de Kerensky, a violência de
Lênin. Foi essa microestrutura, essa flutuação, que determinou o desfecho da
crise e, assim, os eventos que a ela se seguiram.
Desse
ponto de vista, a história é uma sucessão de bifurcações. Um exemplo fascinante
de como isso transcorre é a transição da era paleolítica para a neolítica, que
aconteceu praticamente no mesmo período em todo o mundo (esse fato é ainda mais
surpreendente dada a longa duração da era paleolítica). A transição parece ter
sido uma bifurcação ligada a uma exploração mais sistemática dos recursos
minerais e vegetais. Muitos ramos emergiram dessa bifurcação: o período
neolítico chinês, com sua visão cósmica, por exemplo, o neolítico egípcio, com
sua confiança nos deuses, ou o ansioso período neolítico do mundo
pré-colombiano.
Toda
bifurcação tem beneficiários e vítimas. A transição para a era neolítica trouxe
a ascensão de sociedades hierárquicas. A divisão do trabalho implicou em
desigualdade. A escravidão foi estabelecida e continuou a existir até o século
19. Ainda que o faraó tivesse uma pirâmide como tumba, seu povo era enterrado
em valas comuns.
O século
19, da mesma forma que o 20, apresentou uma série de bifurcações. A cada vez
que novos materiais eram descobertos - carvão, petróleo ou novas formas de
energia utilizável -, a sociedade se transformava. Será que não se poderia dizer
que, tomadas como um todo, essas bifurcações conduziram a uma maior
participação da população na cultura e que de lá por diante as desigualdades
entre as classes sociais nascidas na era neolítica começaram a diminuir?
Homem e
natureza. No geral, bifurcações são, a um só tempo, um sinal de instabilidade e um
sinal de vitalidade em uma dada sociedade. Elas expressam também o desejo por
uma sociedade mais justa. Mesmo fora das ciências sociais, o Ocidente preserva
um espetáculo surpreendente de bifurcações sucessivas. A música e a arte, por
exemplo, mudam a cada 50 anos. O homem continuamente explora novas possibilidades,
concebe utopias que podem conduzi-lo a uma relação mais harmoniosa entre homem
e homem e homem e natureza. E esses são temas que ressurgem constantemente nas
pesquisas de opinião sobre o caráter do século 21.
A que
ponto chegamos? Estou convencido de que estamos nos aproximando de uma
bifurcação conectada ao progresso da tecnologia da informação e a tudo que a
ela se associa como a multimídia, robótica e inteligência artificial. Essa é a
"sociedade de rede", com seus sonhos de aldeia global.
Mas qual
será o resultado dessa bifurcação? Em qual de seus ramos nos encontraremos? A
palavra "globalização" cobre uma grande variedade de situações
diferentes? E possível que os imperadores romanos já estivessem sonhando com
globalização, uma cultura única dominando o mundo. A preservação do pluralismo
cultural e o respeito pelo outro exigirá toda a atenção das gerações futuras.
Mas há outros riscos no horizonte.
Cerca de
12 mil espécies de formigas são conhecidas hoje. Suas colônias variam de
algumas centenas a muitos milhões de indivíduos. E interessante notar que o
comportamento das formigas depende do tamanho da colônia. Em colônias pequenas,
a formiga se comporta de forma individualista, procurando comida e a levando de
volta ao ninho. Quando a colônia é grande, porém, a situação muda e a
coordenação de atividades se toma essencial. Estruturas coletivas surgem
espontaneamente, então, como resultado de reações autocatalíticas entre
formigas que produzem trocas de informação medidas quimicamente.
Não é
coincidência que nas grandes colônias de formigas ou térmites os insetos
individuais se tomem cegos. O crescimento populacional transfere a iniciativa
do indivíduo para a coletividade.
Por
analogia, podemos nos perguntar qual será o efeito da sociedade da informação
sobre nossa criatividade individual. Há vantagens óbvias nesse tipo de
sociedade - basta pensar na medicina ou na economia. Mas existe informação e
desinformação. Como diferenciá-las? Claramente, isso requer cada vez mais
conhecimento e um senso crítico desenvolvido. O verdadeiro precisa ser
distinguido do falso,o possível do impossível. O desenvolvimento da informação
significa que estamos legando uma tarefa pesada às futuras gerações. Não
devemos permitir que surjam novas divisões resultando da ''sociedade de
redes" baseada na tecnologia da informação. Mas é preciso igualmente
examinar questões mais fundamentais.
Em sentido
geral será que a bifurcação reduzirá a distância entre os países ricos e os
pobres? A globalização será caracterizada pela paz e democracia ou por
violência, aberta ou disfarçada? Cabe às futuras gerações criar as flutuações
que determinarão o rumo do evento correspondente à chegada da sociedade da
informação.
Minha
mensagem às futuras gerações, portanto, é de que os dados não foram lançados e
que o caminho a ser percorrido depois da bifurcação ainda não foi escolhido.
Estamos em um período de flutuação no qual as ações individuais continuam a ser
essenciais.
Quanto
mais a ciência avança, mais nos espantamos com ela. Fomos da idéia geocêntrica
de um sistema solar para a heliocêntrica, e de lá para a idéia das galáxias e,
por fim, para a dos múltiplos universos. Todos já ouviram falar do Big Bang.
Para a ciência, não existe um evento único, e isso conduziu à idéia de que
múltiplos universos podem existir. Por outro lado, o homem é até agora a única
criatura viva consciente do espantoso universo que o criou e que ele, por sua
vez, pode alterar. A condição humana consiste em aprender a lidar com essa
ambiguidade. Minha esperança é de que as gerações futuras aprendam a conviver
com o espanto e com a ambiguidade.
A cada
ano, nossos químicos produzem milhares de novas substâncias, muitas das quais
derivadas de produtos naturais - um exemplo da criatividade humana no seio da
criatividade natural como um todo. Esse espanto nos leva a respeitar os outros.
Ninguém é dono da verdade absoluta, se é que essa expressão significa alguma
coisa. Acredito que Richard Tarnes esteja certo:
''A paixão
mais profunda da alma ocidental é redescobrir a unidade com as raízes de seu
ser''.
Essa
paixão leva à afirmação prometéica do poder da razão, mas a razão pode também
conduzir à alienação, a uma negação daquilo que dá valor e significado ávida.
Cabe às futuras gerações construir uma nova coerência que incorpore tanto os
valores humanos quanto a ciência, algo que ponha fim às profecias quanto ao
''fim da ciência'', ''fim da história" ou quanto ao advento da
''pós-humanidade''.
Estamos
apenas no começo da ciência, e muito distantes do tempo em que se acreditava
possível descrever todo o universo em termos de algumas poucas leis
fundamentais. Encontramos o complexo e o irreversível no domínio microscópico
(tal como associado às partículas elementares), no domínio macroscópico que nos
cerca e no domínio da astrofísica. Cabe às futuras gerações construir uma nova
ciência que incorpore todos esses aspectos, porque, por enquanto, a ciência
continua em sua infância.
Da mesma
forma, o fim da história poderia ser o fim das bifurcações e a realização das
visões de pesadelo de Orwell ou Huxley quanto a uma sociedade atemporal que
perdeu sua memória. Cabe às futuras gerações manterem-se vigilantes para
garantir que isso jamais aconteça. Um sinal de esperança é o de que o interesse
pela natureza e o desejo de participar da vida cultural jamais foi maior do que
hoje. Não precisamos de nenhum tipo de pós-humanidade. Cabe ao homem tal qual é
hoje, com seus problemas, dores e alegrias, garantir que sobreviva no futuro. A
tarefa é encontrar a estreita via entre a globalização e a preservação do
pluralismo cultural, entre a violência e a política, e entre a cultura da
guerra e a da razão. São responsabilidades pesadas.
Uma carta
às gerações futuras é sempre e necessariamente escrita de uma posição de
incerteza, de uma extrapolação arriscada do passado. No entanto, continuo
otimista. O papel dos pilotos britânicos foi crucial para decidir o desfecho da
Segunda Guerra Mundial. Foi, para repetir uma palavra que usei com frequência
nesse texto, uma "flutuação". Confio em que flutuações como essa
surgirão sempre, para que possamos navegar seguros entre os perigos que hoje
percebemos. É com essa nota de otimismo que eu gostaria de encerrar minha
mensagem.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3001200004.htm
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