Por Georges
Bataille
O homem é essa noite, esse Nada [Néant] vazio, que contém tudo em sua
simplicidade indivisa.
I. A morte
A negatividade do homem
Nas Conferências de 1805-1806, no momento da plena
maturidade do seu pensamento, na época em que escrevia a Fenomenologia do espírito,
Hegel exprimia assim o caráter negro da humanidade:
"O homem é essa noite, esse Nada [Néant] vazio, que
contém tudo em sua simplicidade indivisa: uma variedade de um número infinito
de representações, de imagens, das quais nenhuma lhe vem à mente com clareza,
ou [ainda], que não estão [ali] como realmente-presentes. É a noite, a
interioridade – ou – intimidade da Natureza que existe aqui: – [o]
Eu-pessoal puro. Em representações fantasmagóricas, tudo ao redor está escuro:
surge então uma cabeça ensanguentada aqui; mais adiante outra aparição branca;
e elas desaparecem também de repente. É essa noite que se percebe quando se
olha bem nos olhos de um homem: [mergulha-se o olhar] numa noite que torna-se
terrível; é a noite do mundo que se apresenta [então] a nós".*20
Bem entendido, esse "belo texto", em que se exprime o
romantismo de Hegel, não deve ser entendido em sentido vago. Se Hegel foi
romântico, foi talvez de uma maneira fundamental (ele foi de todo modo romântico para
começar – em sua juventude –, quando era banalmente revolucionário), mas ele
não viu então no romantismo o método pelo qual um espírito desdenhoso
acreditava subordinar o mundo real ao arbitrário de seus sonhos. Alexandre
Kojève, citando-as, diz dessas linhas que elas exprimem a "ideia central e
última da filosofia hegeliana", a saber: "a ideia de que o fundamento
e a fonte da realidade objetiva [Wirklichkeit] e da existência empírica
[Dasein] humanas são o Nada que se manifesta enquanto Ação negativa ou
criativa, livre e consciente de si mesma".
Para dar acesso ao mundo desconcertante de Hegel, acreditei dever
marcar nele, por uma visão sensível, ao mesmo tempo os contrastes violentos e a
unidade última.
Para Kojève, "a filosofia 'dialética' ou antropológica de
Hegel é, em última análise, uma filosofia
da morte (ou o que dá no
mesmo: do ateísmo)".*21
Mas se o homem é "a morte que vive uma vida humana",*22 essa
negatividade do homem, dada na morte pelo fato de que essencialmente a morte do
homem é voluntária (derivando de riscos assumidos sem necessidade, sem razões
biológicas), não é menos o princípio da ação. Para Hegel, com efeito, a Ação é
Negatividade, e a Negatividade, Ação. De um lado, o homem que nega a Natureza –
ao introduzir nela, como um reverso, a anomalia de um "Eu pessoal
puro" – está presente no seio dessa Natureza como uma noite na luz, como
uma intimidade na exterioridade dessas coisas que são em si – como uma fantasmagoria em que nada
se compõe senão para se desfazer, nada aparece senão para desaparecer, nada que
não seja, sem trégua, absorvido no aniquilamento[néantissement]
do tempo e que daí não tire a beleza do sonho. Mas eis o aspecto complementar:
essa negação da Natureza não é apenas dada na consciência, – onde aparece (mas
para desaparecer) o que é em
si – essa negação se
exterioriza e, exteriorizando-se, muda realmente (em si) a realidade da
Natureza. O homem trabalha e combate: transforma o dado ou a natureza: cria, ao
destruí-la, o mundo, um mundo que não existia. Há, de um lado, poesia: a
destruição, surgida e se diluindo, de uma cabeça
ensanguentada; de outro, Ação: o trabalho, a luta. De um lado, o "Nada
[Néant] puro", em que o homem "não difere do Nada a não ser por um certo tempo".*23 Do
outro, um Mundo histórico, em que a Negatividade do homem, esse Nada que o
corrói por dentro, cria o conjunto do real concreto (ao mesmo tempo objeto e
sujeito, mundo real mudado ou não, homem que pensa e muda o mundo).
A filosofia de Hegel é uma filosofia da morte
– ou do ateísmo4
É o caráter essencial – e novo – da filosofia hegeliana descrever
a totalidade do que é. E consequentemente, ao mesmo tempo em que dá conta de
tudo o que aparece aos nossos olhos, dá conta solidariamente do pensamento e da
linguagem que exprimem – revelam – essa aparição.
"A meu ver", diz Hegel, "tudo depende de
exprimirmos e compreendermos a Verdade não (apenas) como substância, mas também
como sujeito."5 (Phénomenologie
de l'esprit, Préface, Traduction de Jean Hyppolite, t.I: 17, 1. 1-4. [GB].)
Em outras palavras, o conhecimento da Natureza é incompleto, ele
só considera e só pode considerar, entidades abstratas, isoladas de um todo, de
uma totalidade indissolúvel, que é só ela concreta. O conhecimento deve ser ao
mesmo tempo antropológico: "além das bases ontológicas da realidade
natural", escreve Kojève, "ela deve buscar as da realidade humana,
que é a única capaz de se revelar a si própria pelo Discurso".*24 Bem
entendido, essa antropologia não considera o Homem à maneira das ciências
modernas, mas como um movimento que é impossível isolar no seio da totalidade.
Em um certo sentido, é antes uma teologia, onde o homem teria tomado o lugar de
Deus.
Mas para Hegel, a realidade humana que ele descreve, no seio e no
centro da totalidade, é muito diferente da realidade da filosofia grega. Sua
antropologia é a da tradição judaico-cristã, que sublinha no Homem a liberdade, a historicidade e a individualidade.
Assim como o homem judaico-cristão, o homem hegeliano é um ser espiritual (isto
é, "dialético"). Contudo, para o mundo judaico-cristão, a "espiritualidade"
só se realiza e só se manifesta plenamente no além, e o Espírito propriamente
dito, o Espírito verdadeiramente "objetivamente real", é Deus:
"um ser infinito e eterno". Segundo Hegel, o ser
"espiritual" ou "dialético" é necessariamente temporal e finito". Isso quer dizer que
apenas a morte assegura a existência de um ser espiritual ou
"dialético" no sentido hegeliano. Se o animal que constitui o ser
natural do homem não morresse, ou melhor, se não tivesse a morte em si como a
fonte de sua angústia, tanto mais forte na medida em que ele a busca, a deseja,
e às vezes busca voluntariamente a morte, não haveria nem homem, nem liberdade,
nem história, nem indivíduo. Em outras palavras, se ele se compraz naquilo que
no entanto lhe dá medo, se ele é o ser, idêntico a si mesmo, que põe o próprio
ser (idêntico) em jogo, o homem é então um Homem em verdade: ele se separa do
animal. Ele não é mais, doravante, como uma pedra, um dado imutável, ele porta
em si a Negatividade; e a
força, a violência da negatividade, o jogam no movimento incessante da
história, que o muda, e que sozinha realiza através do tempo a totalidade do
real concreto. Só a história tem o poder de acabar [achever]6 o que é, de acabá-lo no desenrolar do
tempo. Assim, a ideia de um Deus eterno e imutável não passa, nessa
perspectiva, de um acabamento [achèvement] provisório que sobrevive
enquanto espera algo melhor. Apenas a história realizada/ acabada e o espírito
do Sábio (de Hegel), no qual a história revelou, depois acabou [acheva]
de revelar, o pleno desenvolvimento do ser e da totalidade de seu devir, ocupam
uma situação soberana, que Deus ocupa apenas provisoriamente, como regente.
Aspecto tragicômico da divindade do homem
Essa maneira de ver pode com razão ser tida por cômica. Hegel,
aliás, não falou disso explicitamente. Os textos em que ela se afirmou implicitamente são ambíguos, e a sua extrema
dificuldade acabou por lhes furtar a luz. O próprio Kojève observa prudência.
Ele fala deles sem gravidade, evitando precisar-lhe as consequências. Para
exprimir como convém a situação em que Hegel se enfiou, sem dúvida
involuntariamente, seria preciso o tom, ou pelo menos, sob uma forma contida, o
horror da tragédia. Mas as coisas teriam logo um andamento cômico.
De qualquer maneira, passar pela morte faz de tal modo falta à
figura divina que um mito situado na tradição associou a morte, e a angústia da
morte, ao Deus eterno e único, da esfera judaico-cristã. A morte de Jesus
participa da comédia na medida em que não saberíamos sem arbitrário introduzir
o esquecimento da sua divindade eterna – que lhe pertence – na consciência de
um Deus todo-poderoso e infinito. O mito cristão, exatamente, antecipou o
"saber absoluto" de Hegel, fundando sobre o fato de que nada de
divino (no sentido pré-cristão desagrado) é possível que não seja finito. Mas a consciência vaga
em que o mito (cristão) da morte de Deus se formou, apesar de tudo, diferia da
de Hegel: para adulterar no sentido da totalidade uma figura de Deus que
limitava o infinito, foi possível introduzir, em contradição de um fundamento, um
movimento em direção ao finito.
Hegel pôde – precisou – compor a soma (a Totalidade) dos
movimentos que se produziram na história. Mas o humor, parece, é incompatível
com o trabalho, e com a aplicação exigida pelas coisas. Voltarei a esse
assunto, tudo o que fiz, por enquanto, foi embaralhar as cartas... É difícil
passar de uma humanidade que a grandeza divina humilhou àquela... do Sábio
divinizado, soberano e que infla a sua grandeza a partir da vaidade humana.
Um texto capital
No que precede, uma única exigência se depreende de modo preciso:
não pode haver autenticamente Sabedoria (Saber absoluto, nem geralmente nada
que se aproxime) se o Sábio não se eleva, se ouso dizer, à altura da morte,
qualquer que seja a angústia que ele sofra com isso.
Uma passagem do Prefácio da Fenomenologia
do espírito*25 exprime
com força a necessidade de uma tal atitude. Nenhuma dúvida de que esse texto
admirável, de antemão, tenha "uma importância capital", não somente
para a inteligência de Hegel, mas em todos os sentidos.
"A morte", escreve Hegel "– se quisermos chamar
assim essa irrealidade – é o que há de mais terrível e sustentar a obra da
morte é o que exige a maior força. A beleza impotente odeia o entendimento,
porque ele exige dela aquilo de que ela não é capaz. Ora, a vida do espírito
não é a vida que se apavora diante da morte, e se preserva da destruição, mas a
que suporta a morte e nela se conserva. O espírito só obtém sua verdade ao
encontrar a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência
(prodigiosa) sendo o Positivo que se desvia do Negativo, como quando dizemos de
algo: isso não é nada ou (isso é) falso, e, tendo-o (assim) liquidado, passamos
dali a outra coisa; não, o Espírito só é essa potência na medida em que
contempla o Negativo bem no rosto (e) se instala perto dele. Essa
estadia-prolongada é a força mágica que transpõe o negativo no Ser-dado."
A negação humana da natureza e do ser natural
do homem
Em princípio, eu deveria ter começado mais acima a passagem
citada. Quis não pesar esse texto com as linhas "enigmáticas" que as
precedem. Mas indicarei o sentido de algumas linhas omitidas retomando a
interpretação de Kojève, sem a qual a sequência, a despeito de uma aparência
relativamente clara, poderia nos permanecer inacessível.
Para Hegel, é ao mesmo tempo fundamental e inteiramente digno de
espanto que o entendimento do homem (quer dizer, a linguagem, o discurso) tenha
tido a força (trata-se de uma potência incomparável) de separar da Totalidade
os seus elementos constitutivos. Estes elementos (esta árvore, este pássaro,
esta pedra) são de fato inseparáveis do todo. Eles estão "ligados entre si
por ligações espaciais e temporais, e até materiais, que são
indissolúveis." A separação deles implica a Negatividade humana a respeito
da Natureza, de que falei sem destacar uma consequência decisiva. Esse homem
negando a natureza, de fato, não poderia de maneira nenhuma existir fora dela.
Ele não é apenas um homem negando a Natureza, ele é, em primeiro lugar, um
animal, isto é, a coisa mesma que ele nega: ele não pode portanto negar a
Natureza sem se negar a si próprio. O caráter de totalidade do homem é dado na
expressão bizarra de Kojève: essa totalidade é em primeiro lugar Natureza (ser
natural), é "o animal antropológico" (A Natureza, o animal
indissoluvelmente ligado ao conjunto da Natureza, e que suporta o Homem).
Assim, a Negatividade humana, o desejo eficaz que tem o Homem de negar a
Natureza destruindo-a – reduzindo-a a seus próprios fins: ele faz dela por
exemplo uma ferramenta e a ferramenta será o modelo do objeto isolado da
Natureza – não pode parar diante de si mesmo: enquanto é Natureza, o Homem se
expõe à sua própria Negatividade. Negar a Natureza é negar o animal que serve
de suporte à Negatividade do Homem. Sem dúvida não é o entendimento que quebra
a unidade da Natureza que quer que haja morte de homem, mas a Ação separadora
do entendimento implica a energia monstruosa do pensamento, do "puro Eu
abstrato", que se opõe essencialmente à fusão, ao caráter inseparável dos
elementos – constitutivos do conjunto – que, com firmeza, mantém a separação
entre eles.
É a posição como tal do ser separado do homem, é o seu isolamento
na Natureza, e, consequentemente, o seu isolamento no meio de seus semelhantes,
que o condenam a desaparecer de uma maneira definitiva. O animal, não negando
nada, perdido, sem oferecer oposição, em meio à animalidade global, assim como
a própria animalidade está perdida na Natureza (e na totalidade do que é), não
desaparece verdadeiramente... Sem dúvida, a mosca individual morre, mas estas
moscas aqui são as mesmas do ano passado. As do ano passado estariam mortas?...
É possível, mas nada desapareceu. As moscas permanecem,
iguais a elas mesmas, como o são as ondas do mar. Aparentemente é forçoso ser
assim: um biólogo separa esta mosca aqui do turbilhão, um traço de pincel
basta. Mas ele a separa para
si mesmo, ele não a separa para as moscas. Para se separar dos outros, a
"mosca" precisaria da força monstruosa do entendimento: então ela se
nomearia, fazendo o que em geral a linguagem opera pelo entendimento, que só
ele funda a separação dos elementos, e ao fundá-la se funda sobre ela, no
interior de um mundo formado de entidades separadas e nomeadas. Mas nesse jogo
o animal humano encontra a morte: ele encontra precisamente a morte humana, a
única que amedronta, que horripila, mas amedronta e horripila apenas o homem
absorvido na consciência do seu desaparecimento futuro, enquanto ser separado e
insubstituível; a única verdadeira morte, que supõe a separação e, pelo
discurso que separa, a consciência de ser separado.
"A beleza impotente odeia o
entendimento"
Até aqui o texto de Hegel apresenta uma verdade simples e comum,
– mas enunciada de uma maneira filosófica e, mais do que isso, propriamente
sibilina. Na passagem citada do Prefácio, Hegel ao contrário afirma, e
descreve, um momento pessoal de violência. Hegel, ou seja, o
Sábio, a quem um Saber absoluto confere a satisfação definitiva. Não é uma
violência enfurecida. O que Hegel desencadeia não é a violência da Natureza, é
a energia ou a violência do Entendimento, a Negatividade do Entendimento,
opondo-se à beleza pura do sonho, que não pode agir, que é impotente.
De fato, a beleza do sonho remete ao mundo onde nada está ainda
separado do que está em volta, onde cada elemento, ao contrário dos objetos
abstratos do Entendimento, é dado concretamente, no espaço e no tempo. Mas a
beleza não pode agir. Pode
ser e se conservar. Agindo, ela não seria mais, pois a Ação destruiria antes o
que ela é: a beleza, que não busca nada, que é, que se recusa a se perturbar,
mas que a força do Entendimento perturba. A beleza não tem, aliás, o poder de
responder à requisição do Entendimento, que lhe pede para sustentar,
mantendo-a, a obra da morte humana.
Ela é incapaz disso, no sentido de que ao sustentar essa obra, ela estaria
engajada na Ação. A beleza é soberana, ela é um fim, ou ela não é: é por isso
que ela não é suscetível de agir, ela é em, seu princípio mesmo, impotente e
não pode ceder à negação ativa do Entendimento que muda o mundo e torna-se ele
próprio uma coisa diferente do que é.7
Essa beleza sem consciência de si mesma não pode portanto realmente, mas não pela mesma razão
que a vida que "recua de horror diante da morte e quer se preservar do
aniquilamento", suportar a morte e se conservar nela. Essa beleza que não
age sofre pelo menos quando sente que se parte em pedaços a Totalidade do que é
(do real-concreto), que é profundamente indissolúvel. Ela gostaria ela própria
de permanecer o signo de um acordo do real consigo mesmo. Ela não pode
tornar-se essa Negatividade consciente, desperta nesse dilaceramento, esse
olhar lúcido, absorvido no Negativo. Esta última atitude supõe, antes dela, a
luta violenta ou laboriosa do Homem contra a Natureza, de que ela é a
conclusão. É a luta histórica em que o Homem se constituiu como "Sujeito"
ou como "Eu abstrato" do "Entendimento", como ser separado
e nomeado.
"Quer dizer", precisa Kojève, "que o pensamento e o
discurso, revelador do real, nascem da Ação negadora que realiza o Nada
aniquilando [anéantissant] o Ser: o ser dado do Homem (na Luta) e o ser
dado da Natureza (pelo Trabalho – que resulta aliás do contato real com a morte
na Luta). Quer dizer então que o próprio ser humano não é nada além dessa Ação:
ele é a morte que vive uma vida humana."*26
Insisto sobre a conexão contínua de um aspecto abissal e de um
aspecto coriáceo, terra a terra, dessa filosofia, a única que teve a pretensão
de ser completa. As possibilidades divergentes das figuras humanas opostas ali
se afrontam e se conjugam, a figura do moribundo e a do homem orgulhoso que se
desvia da morte, a figura do senhor e a do homem pregado ao trabalho, a figura
do revolucionário e a do cético, cujo interesse egoísta limita o desejo. Essa
filosofia não é apenas uma filosofia da morte. É também uma filosofia da luta
de classes e do trabalho.
Mas, nos limites deste estudo, não tenho a intenção de enfrentar a
outra vertente, gostaria de aproximar essa doutrina hegeliana da morte daquilo
que sabemos do "sacrifício".
II. O sacrifício
O sacrifício, de um lado, e, de outro, o
olhar de Hegel absorvido pela morte e pelo sacrifício
Não falarei da interpretação do sacrifício dada por Hegel no
capítulo da Fenomenologia consagrado à Religião.8 Ela tem sem dúvida um sentido no
desenvolvimento do capítulo, mas distancia do essencial, e tem, a meu ver, do
ponto de vista da teoria do sacrifício, um interesse menor do que a
representação implícita no texto do Prefácio que continuo a comentar.
Do sacrifício, posso dizer essencialmente, no plano da filosofia
de Hegel, que, em um certo sentido, o Homem revelou e fundou a verdade humana
sacrificando: no sacrifício, ele destruiu o animal9 nele mesmo, deixando subsistir, de si
mesmo e do animal, apenas a verdade não corporal descrita por Hegel, que, do
homem, faz – segundo a expressão de Heidegger – um ser para a morte (Sein
zum Tode), ou – segundo a expressão do próprio Kojève – "a morte que
vive uma vida humana".
Na verdade, o problema de Hegel é dado na ação do sacrifício. No
sacrifício, a morte, de um lado, atinge essencialmente o ser corporal; e é, por
outro lado, no sacrifício que exatamente "a morte vive uma vida humana". Seria até mesmo
preciso dizer que o sacrifício é precisamente a resposta à exigência de Hegel,
de quem retomarei a fórmula:
"O espírito só obtém a sua verdade ao encontrar a si mesmo no
dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência (prodigiosa) sendo o Positivo
que se afasta do Negativo [...] não, o Espírito só é essa potência na medida em
que contempla o Negativo bem no rosto (e) se instala perto dele [...]."
Se levarmos em conta o fato de que a instituição do sacrifício é
praticamente universal, é claro que a Negatividade, encarnada na morte do
homem, não somente não é uma construção arbitrária de Hegel, mas desempenhou um
papel no espírito dos homens mais simples, sem acordes análogos àqueles que as
cerimônias de uma Igreja regulam desde sempre – no entanto de uma maneira
unívoca. É impressionante ver que umaNegatividade comum manteve através da terra um
paralelismo estreito com o desenvolvimento de instituições bastante estáveis,
tendo a mesma forma e os mesmos efeitos.
Que ele viva ou morra, o homem não pode
conhecer imediatamente a morte
Falarei mais adiante de diferenças profundas entre o homem do
sacrifício, que opera na ignorância (na inconsciência) das causas e consequências
do que faz, e o Sábio (Hegel), que se rende às implicações de um Saber absoluto
a seus próprios olhos.
Apesar dessas diferenças, trata-se sempre de manifestar o Negativo
(e sempre, sob uma forma concreta, isto é, no seio da Totalidade, cujos elementos
constitutivos são inseparáveis). A manifestação privilegiada da Negatividade é
a morte, mas a morte na verdade não revela nada. É em princípio o seu ser
natural, animal, cuja morte revela o Homem a si mesmo, mas a revelação nunca
tem lugar. Pois uma vez morto o ser animal que o suporta, o próprio ser humano
deixou de ser. Para que o homem ao final se revele a si mesmo, ele deveria
morrer, mas seria preciso fazê-lo em vida – olhando-se deixar de ser. Em outras
palavras, a própria morte deveria tornar-se consciência (de si), no momento
mesmo em que aniquila o ser consciente. É em um certo sentido o que tem lugar
(que está pelo menos à beira de ter lugar, ou que tem lugar de uma maneira
fugidia, inapreensível), por meio de um subterfúgio. No sacrifício, o sacrificante
se identifica com o animal atingido pela morte. Assim, ele morre vendo-se
morrer, e até mesmo de certo modo, por sua própria vontade, fazendo um só corpo
com a arma do sacrifício. Mas é uma comédia!
Seria em todo o caso uma comédia se existisse algum outro método
que revelasse ao vivente a invasão da morte: esse acabamento do ser finito, que
só a sua Negatividade e apenas ela pode
realizar, que o mata, o termina[finit]
e definitivamente o suprime. Para Hegel, a satisfação não pode ter lugar, o desejo só pode
ser apaziguado na consciência da morte. A satisfação seria de fato contrária ao
que a morte designa, se ela supusesse a exceção da morte, se o ser satisfeito,
não tendo consciência, e plenamente, do que é de uma maneira constitutiva, isto
é, mortal, se ele tivesse mais tarde que ser expulso da satisfação pela morte.
É por isso que a consciência que ele tem de
si deve refletir (e dele ser
um reflexo10)
esse movimento de negatividade que o cria, que justamente faz dele um homem
pela razão de que um dia o matará.
A sua própria negatividade o matará, mas para ele, doravante, nada
mais será: a sua morte é criativa, mas se a consciência da morte – da
maravilhosa magia da morte – não o toca antes de ele morrer, será para ele,
enquanto viver, como se a morte não o devesse atingir, e essa morte por vir não
poderá lhe dar um caráter humano.
Assim, seria preciso, a qualquer preço, que o homem vivesse no momento em que
ele morre realmente, ou que ele vivesse com a impressão de morrer realmente.
O conhecimento da morte não pode deixar de se
valer de um subterfúgio: o espetáculo
Essa dificuldade anuncia a necessidade do espetáculo, ou geralmente, da representação, sem cuja
repetição11poderíamos,
diante da morte, permanecer estrangeiros, ignorantes, como aparentemente o são
os animais. Nada é menos animal, de fato, do que a ficção, mais ou menos
distanciada do real, da morte.
O Homem não vive somente de pão, mas de comédias com as quais se
engana voluntariamente. No Homem, é o animal, é o ser natural, que come. Mas o
Homem assiste ao culto e ao espetáculo. Ou ainda, ele pode ler: portanto a
literatura prolonga nele, na medida em que é soberana, autêntica, a magia
obsedante dos espetáculos, trágicos ou cômicos.
Trata-se, pelo menos na tragédia,12 de identificar-nos com algum
personagem que morre, e de acreditar morrer embora estejamos vivos. Além disso,
a imaginação pura e simples é suficiente, mas ela tem o mesmo sentido que os
subterfúgios clássicos, os espetáculos ou os livros, aos quais a multidão
recorre.
Acordo e desacordo das condutas ingênuas e
sobre a reação lúcida de Hegel
Ao aproximá-la do sacrifício e a partir daí do tema primeiro da representação (da arte, das festas, dos
espetáculos), eu quis mostrar que a reação de Hegel é a conduta humana
fundamental. Não é uma fantasia, uma conduta estranha, é por excelência a
expressão que a tradição repetia ao infinito. Não é Hegel isoladamente, é a
humanidade inteira que, em toda parte e sempre, quis, por um desvio, discernir
o que a morte ao mesmo tempo lhe dava e lhe roubava.
Entre Hegel e o homem do sacrifício subsiste no entanto uma
diferença profunda. Hegel despertou de uma maneira consciente para a representação que ele se deu do
Negativo: ele o situava, lucidamente, em um ponto definido do "discurso
coerente" pelo qual se revelava para ele próprio Essa Totalidade incluindo
o discurso que a revela. Enquanto que o homem do sacrifício, a quem faltou um
conhecimento discursivo do que fazia, só tinha o conhecimento
"sensível", isto é, obscuro, reduzido à emoção ininteligível. É
verdade que o próprio Hegel, além do discurso, e a despeito de si mesmo (em um
"dilaceramento absoluto"), recebeu ainda mais violentamente o choque
da morte. Mais violentamente sobretudo pela razão de que o amplo movimento do
discurso estendia sua envergadura ilimitadamente, isto é, no âmbito da Totalidade
do real. Para Hegel, sem nenhuma dúvida, o fato de permanecer vivo era
simplesmente um agravante. Enquanto que o homem do sacrifício mantém a sua vida
essencialmente. Ele a mantém não somente no sentido de que a vida é necessária
à representação da morte, mas ele pretendia enriquecê-la.
Mas tomando a coisa pelo alto, a comoção [émoi] sensível e querida no sacrifício tinha mais interesse que
a sensibilidade involuntária de Hegel. A comoção [émoi] de que falo
é conhecida, é definível, e é o horror sagrado:
a experiência ao mesmo tempo mais angustiante e mais rica possível, que não se
limita por si mesma ao dilaceramento, que se abre, ao contrário, assim como uma
cortina de teatro, para um além deste mundo, em que o dia que nasce transfigura
todas as coisas e destrói o seu sentido limitado.
Com efeito, se a atitude de Hegel opõe à ingenuidade do sacrifício
a consciência sábia, e a ordenação sem fim de um pensamento discursivo, essa
consciência, essa ordenação, têm ainda um ponto obscuro: não se poderia dizer
que Hegel desconhecesse o "momento" do sacrifício: esse
"momento" está incluído, implicado, em todo o movimento da Fenomenologia – onde é a Negatividade da morte,
na medida em que o homem a assume, que faz um homem do animal humano. Mas não
tendo visto que o sacrifício por si só dava testemunho de todo o movimento da morte,13 a experiência final – e própria ao
Sábio – descrita no Prefácio da Fenomenologia foi antes de mais nada inicial e universal – ele não soube a que ponto tinha
razão – com que exatidão descreveu o movimento íntimo da Negatividade – ele não
separou claramente a morte do sentimento de tristeza a que a experiência
ingênua opõe uma espécie de plataforma giratória de emoções.
A tristeza da morte e o prazer
O caráter unívoco da morte para Hegel inspira justamente a Kojève
o comentário seguinte, que se aplica ainda à mesma passagem do Prefácio:*27 "Sem
dúvida, a ideia da morte não aumenta o bem-estar do Homem; não o torna feliz e não lhe proporciona nenhum
prazer." Kojève perguntou-se de que maneira a satisfação resulta de uma
estadia junto ao Negativo, de um face a face com a morte, ele acreditou dever,
honestamente, rejeitar a satisfação vulgar. O fato de o próprio Hegel dizer do
Espírito, a esse respeito, que ele "só obtém a sua verdade quando se
encontra no dilaceramento absoluto" vai de par, em princípio, com a
Negação de Kojève. Consequentemente, seria até mesmo supérfluo insistir...
Kojève diz simplesmente que a ideia da morte "é a única que pode
satisfazer [o] orgulho [do homem]"... De fato, o desejo de ser
"reconhecido", que Hegel coloca na origem das lutas históricas,
poderia se exprimir em uma atitude intrépida, própria a fazer valer um caráter.
"Só ao ser ou ao se sentir como mortal ou finito, diz Kojève, isto é, ao
existir e ao se sentir existir num universo sem além ou sem Deus, é que o Homem
pode afirmar e fazer reconhecer sua liberdade, sua historicidade e sua
individualidade 'únicas no mundo'".*28 Mas
se Kojève afasta a satisfação vulgar, a felicidade, ele afasta agora o
"dilaceramento absoluto" de que fala Hegel: de fato, um tal
dilaceramento se concilia mal com o desejo de ser reconhecido.
A satisfação e o dilaceramento coincidem entretanto em um ponto,
eles se conciliam com o prazer.
Essa coincidência tem lugar no "sacrifício"; quer dizer, geralmente,
na forma ingênua da vida,
em toda existência no tempo presente, que manifeste o que o Homem é: o que ele
significa de novo no mundo após haver se tornado oHomem, e com a
condição de ter satisfeito as suas necessidades "animais".
De todo o modo, o prazer,
ao menos o prazer dos sentidos, é tal que, a seu respeito, a afirmação de
Kojève dificilmente poderia ser mantida: a ideia da morte contribui, de uma
certa maneira e em certos casos, para multiplicar o prazer dos sentidos. Creio
mesmo que, sob a forma de sujeira, o mundo (ou melhor, a imagística geral) da
morte está na base do erotismo. O sentimento do pecado se liga na consciência
clara à ideia da morte, e do
mesmo modo o sentimento do
pecado se liga ao prazer.14 Não há, de fato, prazer humano sem uma situação irregular, sem a
ruptura de uma proibição, da qual, atualmente, a mais simples – e ao mesmo
tempo, a mais forte – é a da nudez.
Mais do que isso, a posse foi associada, em seu tempo, à imagem do
sacrifício: era um sacrifício de que a mulher era a vítima... Essa associação
da poesia antiga é cheia de sentido: ela remete a um estado preciso da
sensibilidade em que o elemento sacrificial, o sentimento de horror sagrado se
ligou até mesmo, em estado atenuado, ao prazer edulcorado; em que, por outro
lado, o gosto do sacrifício e a emoção que ele liberava nada tinham que
parecesse contrário ao gozo.
É preciso dizer também que o sacrifício era, como a tragédia, o
elemento de uma festa: ele anunciava uma alegria deletéria, cega, e todo o
perigo dessa alegria, mas este é justamente o princípio da alegria humana: ela excede e ameaça de
morte aqueles que carrega em seu movimento.
A angústia alegre, a alegria angustiada
À associação da morte ao prazer, que não é dada, pelo menos não é
imediatamente dada na consciência, opõe-se evidentemente a tristeza da morte,
sempre como pano de fundo da consciência. Em princípio,conscientemente,
a humanidade "recua de horror diante da morte". Em seu princípio, os
efeitos destruidores da Negatividade têm a Natureza por objeto. Mas se a
Negatividade do Homem o leva colocar-se diante do perigo, se ele faz de si
mesmo, pelo menos do animal, do ser natural que ele é, o objeto de sua negação
destruidora, sua condição banal é a inconsciência em que se encontra em relação
à causa e aos efeitos de seus movimentos. Ora, foi essencial para Hegel tomar consciência da Negatividade como tal, capturar-lhe
o horror, nesse caso o horror da morte, sustentando e olhando a obra da morte
bem no rosto.
Hegel, dessa maneira, opõe-se menos àqueles que "recuam"
do que àqueles que dizem: "não é nada". Ele parece se distanciar mais
daqueles que reagem alegremente.
Insisto, querendo fazer destacar, o mais claramente possível, para
além da sua semelhança, a oposição entre a atitude ingênua e a Sabedoria – absoluta – de Hegel. Não estou certo, de fato,
de que, entre as duas atitudes, a menos absoluta seja a mais ingênua.
Citarei um exemplo paradoxal de reação alegre diante da obra da
morte.
O costume irlandês e galês do "wake" é pouco
conhecido, mas ainda podia ser observado no fim do século passado. É o assunto
da última obra de Joyce,15 Finnegan's Wake,16 é o velório de Finnegan (mas a leitura
desse romance célebre causa no mínimo mal-estar). No país de Gales, dispunha-se
o caixão aberto, em pé, no
lugar de honra da casa. O morto era vestido com suas mais belas roupas, coberto
com a cartola. Sua família convidava todos os amigos, que tanto mais honravam
àquele que os havia deixado quanto mais tempo dançassem e bebessem
desbragadamente à sua saúde. Trata-se da morte de um outro, mas em tais casos, a
morte do outro é sempre a imagem de sua própria morte. Ninguém poderia se
regozijar assim a não ser com uma condição; o morto, que é um outro, estando
supostamente de acordo, o morto que o beberrão será na sua hora não terá um
sentido diferente do primeiro.
Essa reação paradoxal poderia responder ao anseio de negar a existência da morte. Anseio
lógico? Creio que não é nada disso. No México, em nossos dias, é comum encarar
a morte no mesmo plano que o divertimento: vê-se nela, nas festas,
fantoches-esqueletos, açucareiros-esqueletos, carrosséis de cavalos-esqueletos,
mas a esse costume se liga um culto intenso dos mortos, uma obsessão visível
com a morte.17
Não se trata, se encaro a morte alegremente, de dizer de minha
parte, desviando-me do que me amedronta: "não é nada" ou "é
falso". Ao contrário, a alegria, ligada à obra da morte, me dá angústia,
ela é acentuada pela minha angústia e exaspera essa angústia em contrapartida:
finalmente, a angústia alegre, a alegria angustiada me proporcionam, num
quente-frio, o "absoluto dilaceramento", onde é a minha alegria que
acaba de me dilacerar, mas onde o abatimento acompanharia a alegria se eu não
estivesse dilacerado até o fim, sem medida.
Gostaria de tornar sensível uma oposição precisa: de um lado a
atitude de Hegel é menos inteira que a da humanidade ingênua, mas isso só faz
sentido se virmos, reciprocamente, a atitude ingênua impotente em manter-se sem
subterfúgios.
O discurso dá fins úteis ao sacrifício
"a posteriori" ["après coup"]
Liguei o sentido do sacrifício à conduta do Homem uma vez
satisfeitas as suas necessidades de animal: o Homem difere do ser natural que
ele também é: o gesto de sacrifício é o que ele é humanamente, e o espetáculo
do sacrifício torna portanto a sua humanidade manifesta. Liberado da
necessidade animal, o homem é soberano: faz o que lhe apraz, a seu bel prazer.
Ele pode fazer enfim nessas condições um gesto rigorosamente autônomo. Enquanto
tivesse que satisfazer necessidades animais, ele precisava agir com vistas a um fim (ele devia
prover-se de alimentos, proteger-se do frio). Isso supõe uma servidão, uma
sequência de atos subordinados ao resultado final: a satisfação natural,
animal, sem a qual o Homem propriamente dito, o Homem soberano, não poderia subsistir.
Mas a inteligência, o pensamento
discursivo do Homem se
desenvolveram em função do trabalho servil. Só a palavra sagrada, poética,
limitada ao plano da beleza impotente, conservava o poder de manifestar a plena
soberania. O sacrifício só é portanto uma maneira de ser soberana, autônoma, na medida em que o
discursosignificativo não
o informa. Na medida em que o discurso o informa, o que é soberano é dado em termos deservidão. De
fato, o que é soberano,
por definição, não serve.
Mas o simples discurso deve responder à questão colocada pelo pensamento
discursivo no tocante ao sentido que cada coisa deve ter no plano da utilidade.
Em princípio, ela está ali para servir a tal ou qual fim. Assim, a simples
manifestação do liame do Homem com o aniquilamento, a pura revelação do Homem a
si mesmo (no momento em que a morte fixa a sua atenção) passa da soberania ao
primado dos fins servis. O mito, associado ao rito, teve inicialmente a beleza
impotente da poesia, mas o discurso em torno do sacrifício deslizou para a
interpretação vulgar, interessada. A partir de efeitos ingenuamente imaginados
no plano da poesia, como o apaziguamento de um deus, ou a pureza dos seres, o
discurso significativo deu como fim da operação a abundância da chuva ou a
felicidade da cidade. A volumosa obra de Frazer, que evoca as mais impotentes formas de soberanias e, segundo a
aparência, as menos propícias à felicidade, tende a reduzir geralmente o sentido
do ato ritual aos mesmos fins do trabalho nos campos, fazendo do sacrifício um
rito agrário. Hoje, essa tese do Ramo
de ouro está desacreditada,
mas ela pareceu sensata na medida em que os próprios povos que sacrificavam
inscreveram o sacrifício soberano no âmbito de uma linguagem de lavradores. De
fato, de uma maneira bastante arbitrária, que nunca justificou o crédito de uma
razão rigorosa, esses povos tentaram, e tiveram que se esforçar para submeter o
sacrifício às leis da ação, às quais eles próprios estavam submetidos, ou se
esforçavam por se submeter.
Impotência do sábio em alcançar a soberania a
partir do discurso
Assim, a soberania do sacrifício também não é absoluta. Ela não o
é na medida em que a instituição mantém em um mundo da atividade eficaz uma
forma cujo sentido é ser, ao contrário, soberana. Um deslizamento não pode
deixar de se produzir, em proveito da servidão.
Se a atitude do Sábio (de Hegel) não é soberana, por sua vez, as
coisas se passam no mínimo no sentido contrário: Hegel não se distanciou da
soberania autêntica e, se não pôde encontrá-la, aproximou-se dela o mais que
podia. O que o separou dela seria mesmo insensível, se não pudéssemos entrever
uma imagem mais rica através dessas alterações de sentido, que atingem o
sacrifício e o reduziram do estado de fim ao de simplesmeio. O que, do
lado do Sábio, é a chave de um rigor menor é o fato, não de que o discurso
engaje a sua soberania em um quadro que não pode lhe convir e o atrofie, mas
precisamente o fato contrário: a soberania na atitude de Hegel procede de um
movimento que o discurso revela e que, no espírito do Sábio,
nunca é separado de sua revelação. Ela não pode portanto ser plenamente soberana: o Sábio de fato não
pode deixar de subordiná-la ao fim de uma Sabedoria supondo o acabamento [achèvement]
do discurso. Apenas a Sabedoriaserá a
plena autonomia, a soberania do ser... Ela o seria ao menos se pudéssemos encontrar a
soberania buscando-a: de fato, se a busco, faço o projeto de ser –
soberanamente: mas o projeto de ser – soberanamente supõe um ser
servil! O que assegura no entanto a soberania do momento descrito é o
"dilaceramento absoluto" de que fala Hegel, a ruptura, por um tempo,
do discurso. Mas mesmo essa ruptura não é soberana. É em um certo sentido um acidente
na ascensão. Embora ambas as soberanias, a ingênua e a sábia, sejam as da
morte, fora a diferença de um declínio no nascimento (da lenta alteração à
manifestação imperfeita), elas diferem ainda nesse ponto preciso: do lado de
Hegel, trata-se justamente de um acidente. Não é um acaso, uma má sorte, que
seriam desprovidos de sentido. O dilaceramento, ao contrário, é pleno de
sentido. ("O espírito só obtém sua verdade, diz Hegel (mas sou eu
que sublinho), quando se encontra no dilaceramento absoluto.") Mas esse sentido
é infeliz. Foi o que limitou e empobreceu a revelação que o Sábio tirou de uma
estadia nos lugares em que reina a morte. Ele acolheu a soberania como um peso,
e o largou...
Teria eu a intenção de minimizar a atitude de Hegel? Mas é o
contrário que é verdadeiro! Quis mostrar o incomparável alcance de seu
procedimento. Eu não devia, para esse fim, velar a parte fraca (e mesmo
inevitável) do fracasso.
Para mim, é sobretudo a excepcional segurança desse procedimento
que se destaca de minhas aproximações. Se ele fracassou, não se pode dizer que
foi o resultado de um erro. O próprio sentido do fracasso difere do do erro que
o causou: apenas o erro é talvez fortuito. É geralmente, como de um movimento
autêntico e grave de sentido, que se deve falar do "fracasso" de
Hegel.
Na verdade, o homem está sempre perseguindo uma soberania
autêntica. Essa soberania, segundo a aparência, ele a teve em certo sentido
inicialmente, mas sem nenhuma dúvida, não poderia então ser de maneira consciente, de modo que em um
certo sentido ele não a teve, ela lhe escapou. Veremos que ele perseguiu de
várias maneiras o que se lhe esquivava sempre. O essencial sendo que não se
pode atingi-lo conscientemente e buscá-lo, pois a busca o distancia. Mas posso
acreditar que nunca nada nos é dado senão dessa maneira equívoca.
Tradução de João Camillo Penna
(UFRJ)
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Referências I
*20 (Citado por
KOJÈVE, Alexandre. Introdução
à leitura de Hegel. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro:
Contraponto/Eduerj, 2002: 536. [ Links ])
*24 (Op. cit.:
498.)
*25 (Trad.
Hyppolite, t.1: 29. Citada por Kojève, op. cit.: 505-506.)
*26 (KOJÈVE, op. cit.:
513.)
*27 (KOJÈVE, op.
cit.: 514. As palavras são sublinhadas pelo autor.)
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Referências II
1 Excerto de um estudo sobre o pensamento, fundamentalmente
hegeliano, de Alexandre Kojève. Esse pensamento quer ser, na medida em que é
possível, o pensamento de Hegel tal qual um espírito atual, sabendo o que Hegel
não sabia (conhecendo, por exemplo, os acontecimentos após 1917, assim como a
filosofia de Heidegger), poderia contê-lo e desenvolvê-lo. A originalidade e a
coragem, é preciso dizê-lo, de Alexandre Kojève é ter percebido a
impossibilidade de ir mais longe, a necessidade, consequentemente, de renunciar
a fazer uma filosofia original, e daí, o recomeço interminável que é a
confissão da vaidade do pensamento.
2 "Hegel, a morte e o sacrifício", Deucalion, n° 5 ("Études
hégéliennes"), n. 40 de Étre
et penser, Cahiers de philosophie, Neuchâtel, outubro, 1955: 21-43.
No mesmo número, Deucalion publica "La critique des
fondements de la dialectique hégélienne", redigido por Bataille em
colaboração com Raymond Queneau para La
critique sociale (n° 5,
março, 1932).
3 Trecho cotejado com o original de Kojève e com a tradução
brasileira, ligeiramente modificada. Adotei ao longo de todo o texto o mesmo
procedimento. (N. do T.)
4 Neste parágrafo, e no parágrafo
seguinte, retomo sob uma outra forma o que diz Alexandre Kojève. Mas não
somente sob uma outra forma; devo essencialmente desenvolver a segunda parte
dessa frase, difícil, à primeira vista, de ser compreendida em seu caráter
concreto: "O ser ou o aniquilamento [néantissement] do 'Sujeito' é
o aniquilamento [anéantissement] temporalizante do Ser, que deve ser antes de ser aniquilado: o ser do 'Sujeito'
tem necessariamente um começo. E sendo aniquilamento [néantissement]
(temporal) do nada [néant] no Ser, sendo nada que aniquila [néantit]
(enquanto Tempo), o 'Sujeito' é essencialmente negação de si mesmo: ele tem
necessariamente um fim." Em particular, segui para isso (como já o fiz no
parágrafo precedente) a parte daIntrodução à leitura de Hegel que responde às partes 2 e 3 do
presente estudo, a saber: Apêndice II, "A ideia da morte na filosofia de
Hegel": 495-536.
5 Preferi não utilizar a tradução
brasileira da Fenomenologia do
espírito, por ela se distanciar muito da tradução utilizada por Bataille,
de Jean Hyppolite, que permaneceu por muito tempo a tradução canônica de Hegel
na França. (N. do T.)
6 "Achever", "achèvement",
traduz o verbo "vollenden" e derivados em alemão. Em
português, deve ser traduzido por "acabar" no sentido de "realizar".
Optei por traduzi-lo em geral por "acabar". Observe-se, no entanto,
que "acabar" contém em português uma equivocidade (destruir e completar),
aliás perfeitamente dialética, uma equivocidade bem ao gosto de Hegel, que não
existe nem em alemão, nem em francês. (N. do T.)
7 Aqui a minha interpretação difere um
pouco da de Kojève (op.cit.: 512). Kojève diz simplesmente que a "beleza
impotente é incapaz de dobrar-se às exigências do Entendimento. O esteta, o
romântico, o místico fogem da ideia da morte e falam do próprio Nada como de
algo que existe."
(Ênfase de Bataille. [N. T.]) Em particular, ele define assim o místico
admiravelmente. Mas a mesma ambiguidade se encontra no filósofo (em Hegel, em
Heidegger), ao menos ao final. Na verdade, Kojève me parece estar enganado ao
não considerar, para além do misticismo clássico, um "misticismo
consciente", que tem consciência de fazer um Ser do Nada, ao definir, além
de tudo, esse impasse como o de uma Negatividade que não teria mais campo de
Ação (no fim da história). O místico ateu,consciente de si, consciente
de dever morrer e de desaparecer, viveria, como Hegel o diz evidentemente de si mesmo,
"no dilaceramento absoluto"; mas, para ele, não se trata de um
período: em oposição a Hegel, ele não encontraria uma saída, "contemplando
o Negativo bem no rosto", mas não podendo jamais transpô-lo em Ser,
recusando-se a fazê-lo e mantendo-se na ambiguidade.
8 Fenomenologia, capítulo
VIII: A Religião, B: A Religião estética, a) A obra de arte abstrata (tomo II:
235-236). Nessas duas páginas, Hegel mostra o desaparecimento da essência objetiva, mas sem
desenvolver-lhe o alcance. Na segunda página, Hegel se limita a considerações
próprias à "religião estética" (a religião dos Gregos).
9 Contudo, embora o sacrifício do animal
pareça anterior ao do homem, nada prova que a escolha do animal significa o
desejo inconsciente de se opor ao animal enquanto tal, é somente ao ser
corporal, ao ser dado, que o homem se opõe. Ele se opõe, aliás, também à
planta.
10 Bataille utiliza aqui dois verbos,
"réfléchir" e "refléter", "refletir"
e "produzir um reflexo" físico, que são normalmente traduzidos em
português por "refletir". Uso "e ser um reflexo" ("refléter")
para dar uma ideia do duplo sentido. (N. do T.)
11 "Répétition" tem em
francês o duplo sentido de "repetição" e de "ensaio" no
sentido teatral do termo. (N. do T.)
13 Talvez por falta de uma experiência
religiosa católica. Imagino o catolicismo mais próximo da experiência pagã.
Quero dizer, de uma experiência religiosa universal de que a Reforma se
distancia. Talvez apenas uma piedade católica profunda pudesse haver
introduzido o sentimento íntimo sem o qual a fenomenologia do sacrifício seria
impossível. Os conhecimentos modernos, bem mais extensos que os do tempo de
Hegel, contribuíram seguramente para a solução desse enigma fundamental (por
que, sem razão plausível, a humanidade
em geral "sacrificou"?),
mas creio seriamente que uma descrição fenomenológica correta teria
inevitavelmente que apoiar-se no mínimo sobre um período católico.
– Mas de qualquer maneira, Hegel, hostil ao ser sem fazer, – ao que é simplesmente, e
não é Ação, –
interessava-se mais pela morte militar; foi através dela que ele percebeu o
tema do sacrifício (mas ele emprega a própria palavra em um sentido moral):
"A condição-de-soldado", diz ele, nas Conferências de 1805-1806, "e a guerra são
o sacrifício objetivamente real do Eu-pessoal, o perigo de morte para o
particular, – essa contemplação de sua Negatividade abstrata imediata..."
(Œuvres, XX: 261-262, citada por Kojève: 522.) O sacrifício religioso não deixa
de ter, do próprio ponto de vista de Hegel, uma significação essencial.
15 Sobre o assunto desse livro obscuro,
ver E. Jolas, Élucidation du
monomythe de James Joyce (Critique,
julho 1948: 579-595).
16 O título do romance de James Joyce é Finnegans Wake, sem o sinal
diacrítico, e não Finnegan's
Wake, como Bataille o grafa. Finnegan's
Wake, com o apóstrofe possessivo inglês é, no entanto, o título da
divertidíssima balada celta do século XIX, a que o título de Joyce remete. A
balada relata o velório do irlandês Tim Finnegan, que nasceu "para o amor
da bebida", e uma manhã, bastante alto ("rather full"), cai de
uma escada, e quebra o crânio. Segue-se o velório, sua mulher coloca o corpo do
marido na cama, dispondo uma garrafa de whisky na cabeça e um barril de cerveja
preta nos pés do morto. Os amigos aparecem, o almoço é servido, os
convivas bebem, ocorre muita algazarra. Os convivas brigam, até que um pouco de
whisky se espalha sobre o corpo do morto, e os "espíritos" da bebida
o devolvem à vida. Ele salta da cama "como um troiano" gritando:
"pensaram que eu estava morto". O carregador de tijolos, Finnegan,
aparece no capítulo introdutório de Finnegans
Wake. É um personagem menor do romance. O episódio que segue de perto
o relato da balada celta. Como o personagem da balada, Finnegan cai de uma
escada e morre. Segue-se o velório, e a ressureição após o cadáver ser banhado
de whisky . É a esse episódio que Bataille se refere. (N. do T.)
17 Isso se destacava no documentário que Eisenstein
retirou de seu trabalho para um filme longo: Tempestade
sobre o México. O essencial incidia sobre as bizarrices de que falo.
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