Vergílio Ferreira, já sabemos, é presença frequente neste espaço. Aí, abaixo, mais um conto seu, chamado A Carta - o 'Abro de novo a varanda para a noite' "pinça" alguns dos "sentidos" do conto.
Vergílio Ferreira: 'O tempo que passa não passa depressa; o que passa depressa é o tempo que passou' |
Por Vergílio Ferreira
Eis
que te procuro agora como nunca, te espero agora como nunca. Se tu visses… A
casa fica no meio das oliveiras e de um quintal de verdura. O tempo não passa
por ela distraído, e demora-se sempre um pouco. Quando é pela primavera, há
flores nas macieiras e pintainhos novos pelo pátio. E quando é o Verão, há as
manhãs solenes, e quando é o Outono, o ouro das colheitas. Lembro essas manhãs
e o brilho fresco da água pelas noites sufocantes de Julho, e o frémito da
terra na hora do recomeço. Meu pai, quando parti, disse-me:
— Volta.
Minha mãe olhava-me em
silêncio, dorida, e todavia serena como se detivesse o fio do meu destino, ou
soubesse, da sua carne, que tudo estava certo com a vida: o nascer, o partir, o
morrer.
— Volta — repetiu ainda meu pai.
Eis que volto, enfim, nesta
tarde de Inverno, e o ciclo se fechou. Abro as portas da casa deserta, abro as
janelas e a varanda. No quintal as ervas crescem com as sombras, as oliveiras
têm a cor escura do céu. Em baixo, no chão húmido ao pé da loja, há restos de
ferragem enferrujada: um sacho sem cabo, um aro de pipa, um regador. Meu pai
amava a terra. Lembro-me de o ajudar a podar o pequeno corrimão de videiras, de
lhe ir encher o regador para o cebolo novo. Minha mãe olhava-nos da varanda e
os três sabíamos uns dos outros no silêncio dos corações. Pensei, sofri, lutei.
Mas de tudo o que aconteceu é como se nada me tivesse acontecido. Alguém me
incumbiu do que fiz, muito antes de eu nascer, quando outros homens, outra
gente, acabavam a tarefa que eu havia de começar. Essa tarefa deixo-a aos que
vierem depois. De tudo, ficou-me apenas esta voz humilde que ouço, que ouço.
— Se voltares — tu o dizias.
Aqui estou. Acendo lenha no
fogão e as chamas crescem como uma memória antiga. Silêncio bom. Como outrora.
Como quando nada tínhamos já a dizer, e estávamos cheios, todavia, da presença
um do outro. Estendo as minhas mãos ao calor, e olho, e escuto. O lume enche-as
de sangue, acende-as por dentro como brasas. Tu dizias:
— Ninguém conhece as suas mãos.
Só talvez as dos outros. É bom ter as tuas aqui, com os dedos todos submissos.
Estranhas noites estas de
Inverno, sem um rumor. Só os cães ladram das quintas. Discutem pela noite fora
até adormecerem. Ouço um já rouco, lá nos confins da noite, agora a falar
sozinho, decerto para ter a última palavra. Houve um cão outrora cá em casa.
Numa manhã de chuva, achámo-lo à porta da cozinha, todo ensopado, a tiritar.
Minha mãe não gostava de cães.
— Sujam tudo, roem tudo.
Enxuguei-o, dei-lhe pão,
pus-lhe um nome. Minha mãe resignou-se. Os caçadores levavam-no à caça porque
tinha bom faro. Um dia, não sei como, mataram-no com um tiro. Era um cão
perdigueiro. Tinha um olhar humano.
A chama apaga-se, a pirâmide de
carvões desmorona-se. Os cães adormecem enfim, sob o grande céu de estrelas.
Não há lua. Nem vento. Só as estrelas vibram no céu negro de veludo. Se tu
viesses. Eu te imagino, desde o fundo do meu cansaço, silenciosa e grave como
esta hora final, como um apelo obscuro vindo do abismo do tempo. Um halo de
sombra coroa o teu olhar, a tua presença é quente como o fluido da ternura.
Tudo em vão, tudo em vão. Ou não bem isso, não bem isso. Alguma coisa me ficara
esperando talvez, desde antes e antes, qualquer coisa que eu trazia do lado de
lá da vida. Eis que a encontro e me fala e floresce no sangue e procuro
reconhecê-la na tua face. Aqui ao pé do fogão há uma cadeira de braços. Minha
mãe sentava-se nela, meu pai nesta em que escrevo. Pelas noites de vento,
olhavam o lume, deixavam-se adormecer… Tu dizias:
— É bom terem já dito tudo e
reconhecerem-se ainda.
Abro de novo a varanda para a
noite, o ar gela-me a face como um espelho. Ao fundo do quintal havia uma
figueira grande. Minha mãe franjeava xailes e cintas para fora. E eu atava as
cintas e balouçava-me na figueira.
— Ah, tu acabas por deitar a
figueira abaixo. E já rompeste duas cintas.
Numa noite brava de Inverno, a
figueira caiu. E minha mãe dizia sempre, daí em diante, que fora de eu me
balouçar…
Tanta coisa aconteceu e eu
recordo e eu recupero não talvez na lembrança, não talvez, mas num apelo
indistinto e longínquo e angustiante como o silêncio desta noite. Olho ainda o
frémito das estrelas sobre a aridez fria da terra. E penso: «Qualquer coisa vai
acontecer de misterioso e grande, qualquer coisa miraculosa se anuncia como a
vinda de um Deus.»
— Sim, a esperança é talvez a
melhor parte da vida.
Tu o dizias. Eis que porém a
minha esperança tem agora a cor do cansaço e da resignação. E de tudo o que
pensei e quis que brotasse da terra, de tudo o que foi novo e me comoveu, da
agitação do meu sangue, do clamor com que fiquei rouco, da fúria, do choro, da
alegria, de tudo o que me deu a conhecer os meus dentes, os meus ossos, as
minhas pobres vísceras — a forma que se desenha e que me envolve agora tem o
volume quente do seio da piedade. Se amanhã quando me erguesse e pensasse que
havia ainda um dia árido a vencer, e outra noite, e outro dia, e quantos dias e
quantas noites o tempo guarda para mim, eu de manhã te encontrasse preparando o
fogão e o aroma da casa, e te sentasses nesta cadeira ao lado, e os dois nos
esquecêssemos de falar, até um dia, até um dia, e nos deixássemos enfim
adormecer…
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Fonte: Ferreira, Vergílio, Contos, Lisboa: Bertrand Editora, 2008.
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