Neste espaço, já referi, mais de uma vez, a figura de Louis Althusser, assim como a 'situação emblemática' em que ele se envolveu e terminou os seus dias. Nos últimos tempos, algumas investigações a seu respeito têm vindo a lume, tanto com foco em seu background como em sua tragédia pessoal. De próprio punho, Althusser apresentou as suas razões na autobiografia 'O futuro dura muito tempo'. Da sua parte, a Profa. Marci Dória Passos produziu uma obra ousada sobre o drama do teórico francês: A dor que emudece - travessia clínica de Louis Althusser (Ed. Relume Dumará/Faperj). A seguir, uma recensão do livro.
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Althusser nos tempos de plena produção intelectual |
Por Maria Tavares Cavalcanti
A
escolha de Marci Dória Passos em tomar Louis Althusser como um caso clínico, a
fim de discutir as possibilidades, impasses, desafios e limites de uma (ou da)
psicanálise, é, no mínimo, ousada. O filósofo francês, um dos pensadores mais
reverenciados da segunda metade do século XX, é uma figura complexa, paradoxal,
um "caraparte", como diria Passos.
A intenção ao tentar escrever sobre Althusser
como um caso exemplar, nos diz a autora, é observar, e procurar situar em que
medida a análise pessoal e o conhecimento teórico da psicanálise não previram,
ou preveniram, várias experiências dramáticas e um desfecho trágico na vida do
filósofo francês.
Esta ousadia, no entanto, nos presenteia com
um excelente livro, no qual questões essenciais para a psicanálise
contemporânea e também para a psiquiatria, são abordadas de forma corajosa e
bastante sensata.
É o próprio Althusser quem nos diz, em
consonância com Freud e Lacan, que
"o destino humano adviria de um
dizer" (p.21); aposta que possibilitou o advento da psicanálise e sua
prática. Mas
"como
face ao apelo angustiado de quem sofre, abster-se da vontade de calar a
angústia e suportar que aquilo que produz dor encontre via da elaboração pela
fala? (...) São momentos em que se impõe uma decisão, o que, se produz
desconforto ao analista, não o desobriga do ato. Abrindo mão de corrigir, de
prevenir, de salvar ou adaptar para o bem de determinada sociedade, a clínica
psicanalítica só não deve escusar-se de tratar." (p.28-29)
A clínica psicanalítica só não deve
escusar-se de tratar. Essa me parece ser a frase chave da aposta de Marci Dória
Passos. Frente aos maiores desafios, e entre eles as psicoses, como manter a
aposta na psicanálise? Como permanecer no lugar do analista? Que lugar seria
esse no momento em que se colocam riscos efetivos à vida?
Pinel, considerado o "pai" da
psiquiatria, já nos brindava com algumas indicações precisas: "quanto à
ação com o paciente, Pinel condenava o ativismo terapêutico e o
intervencionismo forçado e intempestivo. Para Pinel, conhecer bem o alienado
era um meio de atingi-lo e tratá-lo" (p.32).
O analista de Althusser o conhecia bem e,
mais do que isso, permaneceu ao seu lado quase por toda a vida, atravessando
com ele numerosas internações — quando lhe fazia visitas diárias — períodos
estes de grande fragmentação e angústia extrema. No entanto, nada disso evitou
a tragédia do assassinato de Hélène por seu cliente.
"As
construções de caso, a partir de pontuações determinadas pelo analista,
recortam aquilo que seria o fantasma fundamental numa direção possível para o
tratamento psicanalítico. São avanços significativos, imprescindíveis para a
transmissão que orientam o trabalho analítico, mas não dão conta do real da
clínica, bem mais complexo e difícil de atravessar. A tentativa de fechar com o
saber a distância entre a prática e a teoria é impossível." (p.38)
No caso de Althusser, tanto ele como seu
analista tinham domínio da teoria analítica e um saber bem construído sobre a
constituição fantasmática do primeiro.
No entanto, como dissemos, o acontecimento
terrível, envolvendo Hélène e Althusser — duas pessoas que, naquele momento, se
tratavam com o mesmo psicanalista — ocorreu, e isto faz com que não possamos
deixar de nos interrogar sobre os limites da psicanálise, do próprio
psicanalista e sobre os efeitos do ato analítico no destino de um sujeito.
Impõe-se, assim, a questão sobre o lugar do
analista na corrente do destino — destino representado pela trama desejante que
envolve o Outro. O analista pode agir como contracorrente, possibilitando o
esvaziamento do Outro e favorecendo o aparecimento do desejo do sujeito. Mas,
se não há desejo fora do campo do Outro, que desejo seria esse? Qual seria o
desejo do analista como operador em momentos radicais?
O que constitui um real irredutível aos
esforços do sujeito e do analista, aquilo de que nenhuma análise dá conta? O
que, na experiência precoce com os pais, tem "voz de oráculo" e se
estabelece como um imperativo superegóico forçando a satisfação? Estaríamos
sempre entre o destino como o inexorável de certas marcas ou também pela
maneira como interpretamos o desejo materno, e os acasos, os fatos contingentes
da vida.
Um ato inconsciente não exclui a
responsabilidade pelas conseqüências daquilo que causa, e o sujeito desse ato
tem responsabilidade sobre o mesmo (p.156-157).
"Mas como é possível que eu tenha matado
Hélène?" era a pergunta que Althusser se fazia sem cessar e a todos que se
aproximavam dele. Lutou muito também pelo direito de defesa, pois julgava muito
pior do que a perda da liberdade a perda da responsabilidade por seu próprios
atos.
Ao final, após muito sofrimento pode escrever
em seu livro (O futuro dura muito tempo) essas palavras:
"(...)
desde então creio ter aprendido o que quer dizer amar: ser capaz de não tomar
essas iniciativas exageradas sobre si, mas de ser atento ao outro, respeitar
seu desejo e seus ritmos, nada pedir, mas aprender a receber e receber cada
presente como uma surpresa da vida, e ser capaz, sem nenhuma pretensão, do
mesmo presente e da mesma surpresa para o outro, sem lhe fazer a menor
violência. Em suma, a simples liberdade. Por que, afinal, Cézanne pintou a
montanha Sainte-Victoire a cada instante? É porque a luz de cada instante é um
presente.
Então,
a vida ainda pode, apesar de seus dramas ser bela. Tenho 67 anos, mas
finalmente sinto-me, eu que não tive juventude, pois não fui amado por mim
mesmo, sinto-me jovem como nunca, ainda que a história deva acabar brevemente.
Sim,
o futuro dura muito tempo." (ALTHUSSER, 1992, p.244 e 245, apud, PASSOS,
2006, p.1690
Todas essas observações foram feitas com o
intuito de que o leitor sinta-se convidado a mergulhar nas reflexões da autora,
recuperando assim o vigor da psicanálise e a riqueza que ela nos oferece em
termos de reflexão teórica e ação prática, mesmo em casos extremamente difíceis
e desafiadores. Há um lugar privilegiado para a psicanálise na clínica das
psicoses e a travessia clínica de Louis Althusser, em seu aparente
"fracasso", revela-se a partir da leitura do livro de Passos numa
fascinante viagem, que permite ao filósofo aos 67 anos escrever: "Então, a
vida ainda pode, apesar de seus dramas, ser bela."
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Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982007000100010