Naomar de Almeida Filho, ex-Reitor da UFBA, sobre ele já falei mais de uma vez aqui, realçando que tem procurado aportar uma contribuição significativa no debate sobre a reconfiguração da universidade brasileira. Desta feita, a seguir, reproduzo o último capítulo do seu livro Universidade Nova: Textos Críticos e Esperançosos.
Protopia: universidade nova
Naomar de Almeida Filho
(Capítulo final do
livro Universidade Nova: Textos Críticos
e Esperançosos. Brasília/Salvador, co-edição Editora UnB e EDUFBA, 2007)
Nos textos centrais da última seção deste livro,
critiquei duramente a atual estrutura curricular da educação universitária
brasileira, identificando a origem dos seus modelos de formação nas
universidades européias do século XIX, principalmente nas escolas superiores
francesas e nas instituições lusitanas, herdeiras tardias da universidade
escolástica. As estruturas acadêmicas e institucionais das universidades
brasileiras muito sofreram com a reforma universitária imposta pelo governo
militar no final dos anos 1960, ainda hoje questionada por seus efeitos deletérios
sobre a educação superior. Depois, nos anos 1990, tivemos um período de quase
total desregulamentação da educação superior e abertura de mercado ao setor
privado de ensino.
Resultado: a universidade brasileira terminou
dominada por um poderoso viés profissionalizante, com uma concepção curricular
simplista, fragmentadora e distanciada dos saberes e das práticas de
transformação da sociedade.
Tais fatores tornaram vigente em nosso país uma
arquitetura de formação universitária bastante confusa, talvez sem similar no
mundo, caracterizada por múltiplas titulações, numerosas designações,
produzidas em programas com reduzido grau de articulação. Os programas das
carreiras profissionais mostram-se cada vez mais estreitos, bitolados, com
pouca flexibilidade e criatividade, distanciado das demandas da sociedade, e
longe, mas muito longe mesmo, de cumprir o mandato histórico da Universidade
como formadora da inteligência e da cultura nacional.
Algumas reações a este indesejável cenário têm
acontecido em dois planos.
No plano nacional,
registro o processo de debates entre os dirigentes da rede federal de educação
superior, que culminou com um documento intitulado Proposta da ANDIFES para a reestruturação da educação superior no
Brasil (ANDIFES, 2004). Além de apresentar proposições sobre autonomia,
financiamento e política de recursos humanos para o sistema federal de ensino
superior, este documento explicitava, dentre suas estratégias:
¾
Promover as alterações que se fizerem necessárias no ensino de
Graduação e Pós-Graduação, de modo a garantir aos estudantes a condição de
formação cidadã, com ênfase nos valores éticos e cívicos que devem orientar a
vida numa sociedade justa e democrática.
¾
Revisar os currículos e projetos acadêmicos para flexibilizar e racionalizar
a formação profissional, bem como proporcionar aos estudantes experiências
multi e interdisciplinares, formação humanista e alta capacidade crítica.
Nos planos locais,
destacaria uma proposta rejeitada e dois experimentos em curso. A proposta foi
a do Bacharelado em Humanidades, apresentada por Renato Janine Ribeiro à
Universidade de São Paulo, que alcançou notoriedade não por seus inegáveis
méritos de conteúdo e oportunidade histórica, mas por ter sido rechaçada
justamente pela instituição universitária de maior prestígio nacional (Ribeiro, 2003).
Um dos experimentos
surgiu no setor privado de ensino: o Curso de Administração de Empresas da
Faculdade Pitágoras. A partir de 2004, esse curso passou a ser composto de um
ciclo básico, fortemente concentrado em estudos clássicos inspirados no
programa dos liberal arts colleges dos EUA, com um núcleo propedêutico
antecedendo o ciclo profissional (Moura
Castro, 2002).
O outro experimento é
recente: a inovadora arquitetura curricular da Universidade Federal do ABC,
inaugurada em 2005, na Grande São Paulo. Trata-se de uma universidade
tecnológica, onde os alunos são selecionados para um programa inicial de
Bacharelado em Ciência e Tecnologia, pré-requisito que antecede a formação de
Licenciatura em áreas básicas (Biologia, Física, Matemática, Química e
Computação) e Engenharias.
Apesar dos problemas
acarretados pelo pioneirismo de suas propostas, tais experimentos têm mostrado
inegável viabilidade. Entretanto, para cumprir o desiderato acima apontado,
precisamos de maior abrangência e radicalidade na transformação de todo o
sistema de educação universitária no Brasil. É necessário avançar para além de
experimentos, até porque projetos isolados podem ser facilmente absorvidos como
vanguardismo por um status quo impenetrável e robusto, tolerados
precisamente por demonstrarem a suposta capacidade de inovação de um sistema
que é, de fato, conservador.
* * *
Hoje, a universidade
pública brasileira encontra-se num momento privilegiado, tanto em termos de
conjuntura externa quanto de conjuntura interna, para consolidar, ampliar e
aprofundar processos de transformação já em curso. Disso estou convencido ao
avaliar contexto e condições atuais da nossa Universidade Federal da Bahia.
Os Conselhos
Superiores da UFBA, atendendo a um dos itens da pauta local da greve estudantil
de 2004 (ver Texto 17), já haviam anteriormente deliberado iniciar um processo
de profunda revisão da estrutura, função e compromisso social da nossa
universidade, visando pensar seu futuro enquanto instituição. Durante o ano de
2005, algumas iniciativas foram tomadas nesse sentido, como a apresentação de
estudos preliminares do Plano Diretor que, infelizmente, foram bloqueadas pela
reação de algumas unidades (ver Texto 5).
Quando postulamos a
reeleição para a Reitoria da UFBA, construímos um novo programa de trabalho
realçando o tema da reestruturação curricular. Com toda clareza, declarei a
intenção de buscar fomentar em nossa instituição uma reforma universitária
verdadeira, aquela que deve ocorrer no plano da educação, e não tímidas e
hesitantes proposições de viabilização financeira e rearranjo institucional,
nos planos normativo e administrativo. Em nosso programa, constava um item que,
parafraseando a Escola Nova de Anísio Teixeira, chamamos de Projeto UFBA Nova, com os seguintes tópicos:
¾ abertura de programas de cursos
experimentais e interdisciplinares de graduação, que poderiam ser
não-profissionalizantes ou não-temáticos, com projetos pedagógicos inovadores,
em grandes áreas do conhecimento: Humanidades, Ciências Moleculares,
Tecnologias, Saúde, Meio Ambiente, Artes.
¾ consolidar programas de renovação do
ensino de graduação, por meio de projetos acadêmico-pedagógicos criativos e
consistentes, reduzindo as barreiras entre os níveis de ensino como, por
exemplo, oferta de currículos integrados de graduação e pós-graduação.
¾ incentivar reformas curriculares naqueles
cursos que ainda não apresentaram propostas de atualização do ensino de
graduação.
Empossado em segundo
mandato, já nas primeiras reuniões dos Conselhos Superiores propus retomar e
ampliar as discussões sobre a revisão do Plano de Desenvolvimento
Institucional; ambos os conselhos aprovaram por unanimidade nossa moção. Com
esse intento, uma comissão bicameral, com a participação de dirigentes,
docentes, servidores técnico-administrativos e representantes discentes foi
designada para planejar e organizar o processo de discussão. Em seus trabalhos
preliminares, a Comissão propôs pauta e estratégia de organização, incluindo
cronograma que contemplava a promoção de seminários conceituais e temáticos,
congressos internos nas unidades e uma instância geral de debates. Na pauta
proposta, aprovada pelos Conselhos Superiores, destaca-se o item Arquitetura Acadêmica como uma das
prioridades no processo de repensar a Universidade.
Convidei para dialogar alguns docentes e
pesquisadores, aqueles cujo interesse por temas de vanguarda acadêmica eu
conhecia, em especial sobre questões filosóficas e metodológicas relacionadas à
interdisciplinaridade. Inicialmente, reuníamos representantes de áreas de
conhecimento afins, porém logo começamos a misturar origens institucionais,
epistemológicas e paradigmáticas, em grupos gerais de discussão. Em paralelo, uma equipe técnica da Pró-Reitoria de
Ensino de Graduação, com a colaboração de um grupo de trabalho ad-hoc
designado pela Reitoria, dedicou-se a avaliar aspectos pedagógicos e
operacionais da proposta, bem como seu marco legal.
Enfim, o projeto UFBA Nova começou a tomar forma e deixou de ser uma boa intenção
num documento retórico de política institucional. Em setembro de 2006, foi
apresentado formalmente ao Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão e
ao Conselho Universitário, órgãos máximos de deliberação da UFBA, que
determinaram à nossa equipe levar a proposta às unidades, incluindo-a como
parte do processo de discussão do PDI. Antes de descrevê-lo com algum grau de
detalhamento, preciso ainda contar como o projeto UFBA Nova tornou-se
Universidade Nova.
Nos informes de uma Reunião da ANDIFES,
realizada em Recife como parte das comemorações dos sessenta anos da
Universidade Federal de Pernambuco, comuniquei ao Conselho Pleno o andamento do
nosso projeto. A acolhida foi calorosa, com vários reitores se posicionando
como parceiros em potencial. Apresentamos esboços da proposta à Secretaria de
Ensino Superior do MEC que, de imediato, interessou-se e convidou-nos a uma
oficina de trabalho para colaborar na discussão do projeto da Universidade do
Mercosul. Retornei à ANDIFES, na Pauta regular, para apresentar em maior
detalhe a proposta, já com a nova denominação. Vários colegas reitores de
universidades federais decidiram se engajar em uma rede de discussão e
acompanhamento do projeto, com grupos de trabalho e seminários locais e
nacionais.
Neste texto, apresento uma súmula do projeto Universidade Nova, no seu formato mais
atual, resultante da construção técnica interna e externa à UFBA, porém ainda
preliminar, aberto a contribuições, ampliações e desdobramentos. Além disso,
faço um balanço das discussões com estudantes, docentes e servidores, além de
cidadãos e cidadãs mobilizados pela necessidade de transformação da
universidade, que participaram das mais de cinqüenta apresentações, audiências
públicas, debates, reuniões de trabalho. Isto tudo significou decisiva
ampliação do escopo original da proposta, honrando ainda mais sua inspiração
anisiana, creditada e justificada na seqüência final do texto.
* * *
A proposta hoje
denominada de Universidade Nova aponta para uma transformação radical da
atual arquitetura acadêmica da universidade brasileira, visando superar
desafios e corrigir alguns dos defeitos aqui analisados. As principais
alterações na estrutura curricular postuladas no projeto encontram-se esquematizadas na Figura 4. Em termos de
arquitetura acadêmica, trata-se da implantação de um regime de três ciclos de
educação universitária:
Primeiro Ciclo:
Bacharelados Interdisciplinares (BI), propiciando formação universitária
geral, como pré-requisito para progressão aos ciclos seguintes;
Segundo Ciclo: Formação
profissional em licenciaturas ou carreiras específicas;
Terceiro Ciclo:
Formação acadêmica, científica ou artística, de pós-graduação.
A introdução do regime
de ciclos implicará ajuste da estrutura curricular tanto dos cursos de formação
profissional quanto da pós-graduação. Além disso, novas modalidades de processo
seletivo serão necessárias, tanto para o primeiro ciclo quanto para as opções
de prosseguimento da formação universitária posterior. Pretende-se, dessa
maneira, construir no Brasil um modelo de educação superior compatível, no que
for vantajoso para o contexto nacional, com o Modelo Norte-Americano (de origem
flexneriana) e com o Modelo Unificado Europeu (Processo de Bolonha).
A proposta de implantação dos Bacharelados
Interdisciplinares terá formatação e detalhamento definidos pelas universidades
que aderirem à proposta, dentro da sua autonomia. Não obstante, algumas
proposições iniciais já podem ser sugeridas, consentâneas com idéias que
circulam nos meios acadêmicos, nacionais e internacionais, algumas delas já
concretizadas institucionalmente.
Em termos de estrutura
curricular, o BI compreende três modalidades de componentes curriculares: CT –
Cursos-Tronco; FG – Formação Geral, FE – Formação Específica. A carga curricular do Bacharelado
Interdisciplinar poderá basear-se no conceito de Blocos Curriculares, definidos
como conjunto de módulos (cursos, disciplinas, atividades, programas, trabalhos
orientados) cobertos pelos alunos durante o semestre ou quadrimestre letivo. O BI terá duração de dois a três anos, abrangendo grandes áreas do
conhecimento.
O conceito de Cursos-Tronco provém diretamente de Anísio Teixeira. Define-se como formação obrigatória,
paralela e seqüencial durante todo o programa do BI. No estágio atual de
construção da proposta de estrutura curricular do BI, há dois Cursos-Tronco propostos: (a) Língua
Portuguesa como Instrumento de Comunicação, cobrindo da estrutura da
língua à expressão oral e escrita nas áreas de concentração do BI. (b) Línguas Estrangeiras Modernas (Espanhol,
Francês, Inglês, Alemão, Italiano), visando ao uso instrumental do
idioma estrangeiro selecionado. Alunos com proficiência comprovada serão
dispensados da obrigatoriedade, mas poderão optar por outro idioma.
A Formação Geral compõe-se de componentes curriculares (módulos, cursos, disciplinas, atividades
etc.) de escolha opcional em cada um dos Eixos Temáticos Interdisciplinares (ETI), com forte incentivo à oferta de
blocos integradores. Os Eixos Temáticos
Interdisciplinares compreenderão conteúdos como os seguintes:
•
Cultura Humanística:
Ética, Política & Cidadania; Qualidade de Vida (Esporte, Saúde, Meio
Ambiente, Consciência Ecológica); Formação das Sociedades Contemporâneas (com
foco na sociedade brasileira).
•
Cultura Artística: Estética; Panorama das
Artes (Histórias, Escolas, Estilos); Literatura
(como ler Poesia, Prosa e Drama); Exposição
às Artes (participação em eventos culturais, com créditos); Iniciação Artística (Música, Artes
Plásticas, Teatro, Dança, Cinema).
•
Cultura Científica: Ética,
Epistemologia & Metodologia; Pensamento
Matemático (Lógica, Estatística, Informática); Histórias das Ciências e das Técnicas; Iniciação Científica.
Além desses
componentes, faz parte da Formação Geral, também de modo “optatório”
(obrigatório, mas com escolhas internas garantidas e incentivadas), o
cumprimento de Atividades
Interdisciplinares em Comunidade (AIC), organizadas por tema/problema,
com alunos de diferentes origens e opções de titulação no BI.
A Formação Específica (FE)
compreenderá componentes curriculares totalmente optativos e oferecidos para
todas as opções de BI somente aos alunos da área de conhecimento correspondente
que concluíram a FG, sem distinção de nível, integrando graduação e
pós-graduação. Prevê-se um esquema de tutoria, visando orientar as escolhas de
blocos curriculares de acordo com as aptidões, vocações e competências dos
estudantes. Buscando contribuir para escolhas maduras de carreira profissional,
nessa etapa poderão ser oferecidos módulos de introdução aos cursos profissionais,
a exemplo da “Introdução às Engenharias” e da “Introdução à Psicologia”, ambas
já existentes respectivamente na Escola Politécnica e na Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas da UFBA. Como a prioridade de matrícula nos cursos FE será
dada por desempenho do aluno nos blocos FG e, posteriormente, na própria
Formação Específica, haverá um permanente estímulo ao bom desempenho para
aqueles alunos que pretendem usar o BI como via de entrada à formação
profissional.
A estrutura curricular
dos Bacharelados Interdisciplinares é apresentada graficamente na Figura 5.
Uma vez concluído o BI, o egresso receberá um diploma de bacharel em área geral de conhecimento que lhe dará maior flexibilidade no acesso
ao mundo do trabalho. No
momento, consideramos três hipóteses para o sistema de títulos do Bacharelado
Interdisciplinar (BI).
Em primeiro lugar, temos o BI com entrada e saída (titulação) em quatro
grandes áreas de saberes e práticas: Humanidades, Artes, Tecnologias, Ciências.
Uma variante desta
opção compreende a subdivisão do BI em Ciências: Ciências da Matéria, Ciências
da Vida, Ciências da Saúde, Ciências da Sociedade.
Em segundo lugar, podemos considerar duas
opções de entrada (seleção) e de saída (titulação): Artes & Humanidades;
Ciências & Tecnologias.
Finalmente, haverá a possibilidade de uma
entrada única e geral para o Bacharelado Interdisciplinar, com titulação em
duas opções (Artes & Humanidades; Ciências & Tecnologias) a depender
dos componentes curriculares efetivamente cumpridos.
Em todas essas opções, há a possibilidade de
se definir áreas de concentração, a serem estabelecidas pelas respectivas
comunidades de docentes, pesquisadores e criadores, recuperando e redefinindo o
conceito de ênfase (equivalente ao Major
do MNA), como por exemplo: Artes Visuais, Artes da Performance, Música,
Filosofia, Educação, Letras, Comunicação, Ciências da Energia, Ciências da
Matéria, Ciências da Vida, Ciências da Terra, Ciências da Saúde, Ciências
Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Tecnologias Ambientais, Tecnologias
Construtivas, Tecnologias Industriais, Tecnologias de Informação, Tecnologias
de Gestão etc. Notem que essas denominações são descritivas de áreas de
saberes, práticas e artes, sendo portanto campos de formação, de nenhum modo
definindo profissões, ocupações ou empregos. Normativamente, não farão parte do
título acadêmico e só constarão do suplemento do diploma, junto com a súmula da
trajetória curricular do Bacharel.
Os Bacharelados
Interdisciplinares enfim representam uma alternativa avançada de estudos
superiores que permitirão reunir numa única modalidade de curso de graduação um
conjunto de características que vêm sendo requeridas pelo mundo do trabalho e
pela sociedade contemporânea, com os seguintes efeitos positivos esperados:
¾ alargamento da base dos estudos superiores, permitindo uma ampliação
de conhecimentos e competências cognitivas;
¾ flexibilização curricular com aumento de componentes optativos,
proporcionando aos estudantes a escolha de seus próprios percursos de
aprendizagem;
¾ introdução de dispositivos curriculares que promovam a integração
entre conteúdos disciplinares e níveis de formação;
¾
adiamento de escolhas profissionais precoces que
têm como conseqüência prejuízos individuais e institucionais;
¾
redução das altas taxas
de evasão, em especial do ensino público superior.
Caso desejem, os alunos graduados pelo BI
poderão ter as seguintes opções de prosseguimento de estudos:
a)
Aluna(o)s
vocacionada(o)s para a docência poderão prestar seleção para licenciaturas
específicas (p.ex. do BI em Ciências da Matéria para Licenciatura em
Matemática, Física ou Química), com mais 1 a 2 anos de formação profissional,
que a(o) habilita a lecionar nos níveis básicos de educação;
b)
Aluna(o)s
vocacionada(o)s para carreiras específicas poderão prestar seleção para cursos
profissionais (p.ex. Arquitetura, Enfermagem, Direito, Medicina, Engenharia
etc.), com mais 2 a 5 anos de formação, levando todos os créditos dos cursos do
BI;
c)
Aluna(o)s com
excepcional talento e desempenho, se aprovada(o)s em processos seletivos
específicos, poderão ingressar em programas de pós-graduação, como o mestrado
profissionalizante ou o mestrado acadêmico, podendo prosseguir para o
Doutorado, caso pretendam tornar-se professor(a) ou pesquisador(a).
* * *
Atualmente, o sistema de acesso à universidade
compreende um teste único, geral e padronizado, chamado Vestibular, para
seleção de sujeitos para todas as áreas de formação que tem a universidade, com
diferentes graus de competitividade. É óbvia (quase escandalosa) a
inconsistência lógica de se empregar o mesmo exame-padrão, um inventário
unificado de testes e perguntas, para a identificação de aptidões e
competências relativas a vocações tão distintas quanto o artista e o médico, o
engenheiro e o advogado, o administrador e a dançarino.
O fim do
vestibular não é o objetivo da proposta Universidade
Nova, mas não há alternativa senão romper com o
paradigma do vestibular. O exame
vestibular acabará ou será superado na sua forma hoje existente simplesmente
porque será inútil para o perfil de aluno que estamos buscando para o BI. A
questão tem sido mal interpretada, particularmente pela cobertura às vezes
enviesada dessa questão na imprensa, mas creio que isso ocorre por que a
universidade brasileira criou um pequeno monstro que agora soltou as amarras e
está começando a ditar os rumos da educação superior. O vestibular é um exame feito para excluir candidatos porque a
universidade elitista não teria vagas para todos. Essa é a única razão por que
ele precisa se tornar cada vez mais “difícil”. O que seria apenas uma forma de seleção
de alunos virou uma tirania, e então, não só o ensino básico ajusta-se ao
vestibular, mas também as universidades acabaram tendo que a ele se moldar.
Portanto, será
necessário implantar novas modalidades de processo seletivo, mas ainda não
sabemos o que substituiria o vestibular tradicional. Esse tipo de seleção não é compatível com a Universidade Nova
e, portanto, penso que não terá uso nem sentido em qualquer projeto de
transformação radical da educação superior. Trata-se neste momento de avaliar opções de formas de ingresso e
condições de acesso nas seguintes etapas: a) ingresso de candidatos ao BI; b)
seleção de concluintes dos bacharelados para as carreiras profissionais.
Para entrar no Bacharelado Interdisciplinar,
primeira instância de formação da Universidade
Nova, queremos uma seleção de pessoas que tenham perfil mais aberto, que
desejem experimentar coisas, vivenciar uma formação capaz de ultrapassar a mera
profissionalização, que tenham interesse numa inserção plena na cultura
universitária. Por esse motivo, teremos de buscar ou desenvolver alguma outra
forma de seleção. Podemos considerar duas hipóteses:
Hipótese 1: desenvolver um exame especial para a seleção de alunos para o primeiro
ciclo da formação universitária. Tal exame ou
processo seletivo terá o perfil de um instrumento capaz de identificar
potencial, talento, capacidade interpretativa, competência, habilidade, muito
mais do que memorização, do que informação acumulada.
Hipótese 2: atualização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), com ajuste aos
objetivos de selecionar alunos para a Universidade Nova. Essa hipótese
tem sido avaliada como em princípio viável, reconhecendo-se alguns de seus
defeitos atuais. O ENEM tem a vantagem de não ser um teste baseado no acúmulo
de conhecimentos, mas sim na capacidade de análise, interpretação e expressão.
Trabalha com a seguinte regra: todos os dados ou informações necessários para
resolver qualquer questão, por regra, estão contidos no enunciado. Mas o ENEM,
tal como feito atualmente, tem um problema: grau reduzido de estabilidade,
mudando muito de ano a ano. A idéia é introduzir mais constância e
consistência. Uma das possibilidades em aberto é fazer com que as universidades
que participam do projeto componham o conselho técnico – previsto na
normatização do Enem, mas nunca
implementado – responsável pela qualidade de conteúdo da seleção. Enfim, o ENEM
pode preencher plenamente a finalidade de selecionar para a Universidade Nova porque o aluno que
queremos não é aquele que já sabe cálculo, geografia, física, química,
matemática. É bom que este candidato já saiba tudo isso se quiser fazer
carreira profissional nessas áreas, mas para entrar primeiro no Bacharelado
Interdisciplinar precisa ser um aluno inteligente, competente, estudioso, capaz
de se expressar, que queira se formar no âmbito da cultura universitária.
Para a seleção de concluintes do BI para as
carreiras profissionais, um princípio já pode ser estabelecido: retoma-se a
especificidade da seleção para cada carreira profissional, tal como era antes
da unificação do exame vestibular pela Reforma Universitária de 1968. Avaliamos
a pertinência de permitir ao aluno do BI participar de mais de um processo
seletivo simultaneamente (incluindo licenciaturas como segunda opção às
carreiras profissionais). Três instrumentos de seleção podem ser usados,
isoladamente ou em combinação:
a)
Coeficiente de
Rendimento durante o BI, mediante sistemas coletivos de avaliação do
aproveitamento dos alunos. Pode-se definir um Eixo Temático Profissional dentro
do qual os candidatos demonstrarão seu desempenho;
b)
Avaliação Seriada
durante o BI, compondo um escore cumulativo. Começando no fim do primeiro ano,
essa avaliação pode cobrir conteúdos do Eixo Temático da FG onde se encaixa a
carreira profissional procurada;
c)
Testes de conhecimento
sobre conteúdos ou eixos temáticos dos cursos FE específicos para cada opção de
carreira profissional.
Resta acrescentar que, idealmente, os testes
de seleção para as carreiras profissionais deverão ser de preferência de âmbito
nacional, permitindo maior mobilidade dos estudantes entre instituições
participantes da Universidade Nova.
De todo modo, seleção
para a educação superior é um tema altamente complexo. A universidade
brasileira sempre foi uma instituição de formação das elites nacionais. Com o
aumento da demanda por ensino superior devido aos processos de urbanização e de
modernização do Brasil, acirrou-se a competição por vagas nas universidades
públicas, que são as melhores por qualquer indicador de qualidade. Assim, cada
vez mais se apertou o instrumento de seleção, esse duríssimo filtro chamado
vestibular. O sistema de ensino pré-universidade se ajustou ao filtro,
tornando-se cada vez mais dual e paradoxal: belas teorias educacionais convivendo
com carência de recursos e resultados no sistema público, em contraste com
enorme pobreza conceitual e filosófica no setor privado de ensino básico, não
obstante seus recursos financeiros e tecnológicos e maior eficiência. Porém,
cada vez mais essa eficiência tem-se tornado capacidade de passar no teste do
vestibular.
* * *
Nos debates sobre esta proposta de ruptura com o
paradigma da universidade velha, às vezes me questionam se, na hora de
prosseguir do BI para os demais níveis de formação, não haveria risco de
transferir para o ambiente interno da universidade o processo seletivo que
atualmente é feito pelo vestibular. Respondo que é justamente essa a intenção e
a força da proposta.
No Brasil, até o momento, temos praticado uma grave
omissão ao manter e aperfeiçoar o modelo de ingresso na universidade através do
vestibular. Deixamos que processos sociais, em sua maioria espúrios e
excludentes, predominem sobre o talento das pessoas; permitimos que
desigualdades sufoquem a vocação dos sujeitos que buscam a formação
universitária.
O projeto Universidade Nova defende
claramente que as instituições universitárias assumam essa responsabilidade,
realizando internamente os processos seletivos para o prosseguimento da
formação acadêmica e profissional dos seus estudantes. Não há nenhuma lógica,
política ou acadêmica, que justifique deixarmos que processos seletivos para
ingresso na casa da cultura, das artes e do conhecimento aconteçam fora da
universidade. Ao permitirmos que isso ocorra, como se dá hoje, a seleção
torna-se muito mais social e política do que por mérito, habilidade,
competência, aptidão. Ao trazê-la para dentro da universidade, teremos maior
controle acadêmico sobre qualidade e competência, valores que fazem parte da
universidade. Isso nos leva inevitavelmente ao tema das políticas de ações
afirmativas como estratégia de inclusão social pela educação.
O modelo proposto é, sem dúvida, mais
inclusivo do que os processos seletivos da universidade brasileira atual. A Universidade
Nova vai abrir oportunidades de formação cultural, profissional, científica
ou artística para cidadãos, pobres ou ricos, que tiverem talento, motivação e
vocação, independentemente de classe social, etnia ou gênero.
Primeiro, em todas as hipóteses consideradas, o
exame para o BI será geral, com todos
os candidatos prestando seleção para ingresso à educação superior, em um tronco
único e não dispersos em numerosos eixos profissionais. De imediato, tal
formato diminuirá a competição tradicionalmente concentrada em alguns cursos.
No modelo atual, muitos candidatos, ao não entrarem em um dado curso de
carreira profissional simplesmente ficam excluídos da educação superior.
Segundo, esperamos substancial redução nas taxas de evasão, um dos principais fatores de redução da
eficiência do investimento público em educação, tanto custos diretos na rede
federal de educação superior quanto indiretos em programas de bolsas
de estudo em instituições privadas de ensino. Na Universidade Nova, as escolhas de carreira, profissional ou
acadêmica, serão feitas com maior maturidade e melhor conhecimento do conteúdo
das respectivas formações.
Terceiro, a nova arquitetura
curricular traz enorme potencial de ampliação de vagas, tal como já acontece em
todos os contextos onde a educação universitária se estrutura em ciclos ou
níveis de graduação. Estudos técnicos que têm subsidiado o projeto Universidade
Nova estimam que, no BI, se poderá oferecer até o equivalente ao
dobro das vagas destinadas a cursos profissionais e de pós-graduação. Haverá
uma proporção aluno/docente maior do que a reduzida média do sistema atual: nas
universidades federais, em torno de 10 alunos para cada professor. O projeto prevê também
aumento de vagas nas licenciaturas, dentro de uma estrutura curricular mais
aberta à captação de vocações e aptidões. Com isso, a instituição universitária
poderá contribuir, de modo mais decisivo, para diminuir o déficit educacional
no ensino básico no Brasil.
Além dessas, há outra
razão, não menos importante: para os BIs, os candidatos serão selecionados por
criatividade e talento, qualidades intelectuais e humanas melhor distribuídas
socialmente e menos ligadas à influência da história socioeconômica das
famílias e das pessoas. Se conseguirmos atender no sistema público a demanda
reprimida por educação superior, com sistemas de seleção que não discriminem
por origem social ou étnica, ótimo. Haverá, decerto não para todos os
candidatos, mas para todos os que se apresentarem com motivação e vocação.
Não podemos subestimar o
efeito positivo da ampliação de vagas na educação superior. De certa maneira, até a própria adesão da sociedade aos programas de
ações afirmativas tem sido prejudicada pela sensação de subtração social: vagas
que eram preenchidas por jovens de famílias de classe média teriam sido
subtraídas para serem concedidas às pessoas mais pobres da população. É claro
que isso é importante para um efeito de justiça social, mas será muito mais
correto avançar no sentido da ampliação de vagas na universidade para que os
alunos tenham chances sociais mais importantes do que eles têm no momento.
No longo prazo, se todos
esses mecanismos de inclusão social funcionarem como esperamos, não vamos
precisar de reserva de vagas na Universidade
Nova. Ainda assim, defendo que devemos manter sistemas de compensação
redistribuitiva de vagas (tipo cotas ou bônus para
pobres, negros e índios), monitorando qualquer
grau de exclusão ou discriminação, até que tenhamos verificado serem os mesmos
desnecessários nos ciclos iniciais de formação.
Para a continuidade da
formação nos cursos profissionalizantes, alguns diriam que não seria mais
preciso a salvaguarda de programas de ações afirmativas. Uma vez no BI,
aparentemente as oportunidades estariam igualadas porque todos os alunos teriam
acesso garantido a recursos educacionais e apoio institucional na universidade
de acordo com o seu desempenho nos mesmos padrões de ensino. Sinceramente, não
creio nisso. A estrutura curricular e alguns elementos organizativos introduzem
no BI um viés igualitário (no sentido de melhorar a formação de todos e não de
poucos). Isto pode reduzir, mas não suprimir ou reparar, o efeito de
desigualdades sociais ou étnicas de origem. A desigualdade das bases de
formação educacional entre ricos e pobres neste país é grande demais para que seja
superada em dois ou três anos. Mesmo tornando-se mais eficiente e inclusiva, a
instituição universitária dificilmente compensará o fato de que alguns alunos,
vivendo em ambientes sofisticados e estimulantes, contando com recursos e
suportes adicionais (por exemplo, contratando cursinhos de reforço), podem se
dar ao luxo de apenas estudar, enquanto outros continuarão lidando com
problemas econômicos, vivendo precariamente, sem livros, equipamentos e
recursos pessoais, sendo obrigados a trabalhar em paralelo ao curso
universitário.
O que é possível fazer nesse sentido? De imediato,
devemos reforçar os programas de permanência. A universidade pública brasileira
avança numa concepção ampla de apoio social aos estudantes, com concessão de
bolsas do setor público e do setor privado, principalmente fundações. Essas
bolsas, ainda escassas, dão conta apenas de uma parte do problema. A outra
parte: a universidade precisa se reestruturar para propiciar condições de
aderência dos estudantes aos programas de ensino. Para isso, precisamos
garantir condições de vida e disponibilizar recursos pedagógicos e financeiros
para uma formação profissional plena na universidade pública. Essa formação pode ser potencializada pela
figura do professor
tutor, capacitado
a acompanhar e orientar a vida acadêmica dos estudantes do BI. Além disso, planejamos a
organização curricular dos Bacharelados Interdisciplinares com cursos por
turnos-padrão (matutino, vespertino e noturno) e maior concentração de
atividades no turno noturno, propiciando otimização de instalações,
equipamentos de ensino e condições de permanência. Não queremos remendar
defeitos e problemas da educação superior, em suas velhas modalidades atuais,
mas sim buscar a transformação total e radical dessas estruturas e modalidades.
No limite, a proposta da Universidade Nova
tem como objetivo tornar a instituição
universitária uma máquina de inclusão social pela educação. Também nesse
aspecto, o projeto ressalta a inspiração de Anísio Teixeira, que considerava a
escola pública como “a máquina que prepara as democracias”. E para isso,
precisamos atuar em dois níveis. De um lado, devemos incorporar na
macro-estrutura institucional e acadêmica da universidade o que atualmente, à
falta de melhor termo, chamamos de ações afirmativas. O modelo do BI, modulando
a formação profissional e acadêmica, é um exemplo de ação afirmativa
estruturante. De outro lado, no plano micro-institucional, precisamos
desconstruir práticas pedagógicas redutoras, passivas, de baixo impacto e
ineficientes, ainda vigentes na educação superior, reconstruindo-as como
instrumentos de mobilização e participação dos sujeitos no seu próprio processo
de formação profissional, política, cultural e acadêmica.
Por tudo isso, pelo menos na UFBA, o projeto Universidade Nova significa
continuidade, aprofundamento, ampliação e é uma conseqüência direta do sucesso
do Programa de Ações Afirmativas.
* * *
Naturalmente, todos
esses pontos constituem sugestões, propostas e pontos preliminares, sujeitos a
críticas, discussões e revisões, especialmente do ponto de vista de política
institucional.
Mesmo assim, não podemos
perder o foco do projeto. Não se trata de influir, reparar ou remendar defeitos
e problemas da educação superior, em suas diversas modalidades atualmente
vigentes. O projeto Universidade Nova
busca a transformação total e radical dessas estruturas e modalidades, em
variados aspectos, difíceis de detalhar neste momento e estágio de elaboração
da proposta. Por exemplo: os alunos que concluírem o Bacharelado Interdisciplinar
com excepcional destaque poderão ser recrutados diretamente por programas de
pós-graduação. Isso vai mudar bastante o perfil do alunado de pós-graduação, a
estrutura dos cursos e sua relação com a pesquisa.
Aliás, a formação do
pesquisador na Universidade Nova
ganhará mais autonomia porque poderá se dar em paralelo à formação do
profissional. Em muitas áreas, não faz sentido se requerer primeiro uma
formação em profissões como pré-requisito para a formação do docente e do
pesquisador. Tomemos Bioquímica como exemplo: o aspirante a pesquisador nesse
importante campo não precisará ter-se diplomado como farmacêutico ou médico
para poder entrar no mestrado e depois no doutorado da área. Outro efeito
possível: se o desenho proposto alcançar plena implantação, a definição do
Mestrado Profissional como formação profissional especializada complementar, em
bases compatíveis com modelos internacionalmente vigentes, permitirá superar
uma enorme distorção no sistema brasileiro de educação superior que é o grande business das especializações, mais um
fruto da criatividade nacional.
Sobre as alterações
de estrutura e função da pós-graduação no modelo da Universidade Nova, há muitas questões,
inclusive técnicas e legais, ainda em aberto: Será viável ampliar o escopo da modalidade Mestrado Profissional, como
formação avançada e/ou especializada para as carreiras profissionais? Poderá a
Residência, formação avançada para a área médica, ganhar equivalência ao
Mestrado Profissional? Caberá, em áreas específicas que envolvem treinamento
avançado em serviço, conceber a modalidade Doutorado Profissional?
Contudo, creio que a
proposta realmente permitirá maior integração com a pós-graduação. Corrigiremos alguns
defeitos do modelo atual, herdado da reforma de 1968, quando mantivemos, na
graduação, a Europa do século 19 e na pós-graduação uma imitação do que era
feito nos Estados Unidos. O grau de desarticulação entre os níveis de formação
é intenso e profundo. É praticamente impossível a um aluno de graduação cursar
disciplinas na pós-graduação, mesmo que mostre desempenho para tanto. Ao mesmo
tempo, nenhum estudante da pós-graduação aceita ter cursos num nível de
graduação, considerando isso como mero nivelamento. A estrutura universitária
precisa ser plenamente integrada como o é em outros países do mundo. Trago essa
experiência da minha pós-graduação em universidades estrangeiras, quando
convivi na mesma sala com alunos de graduação, mestrado, doutorado e, em alguns
casos, até colegas cumprindo estágio pós-doutoral ou matriculados em cursos de
extensão.
Resta considerar o tema das reações e resistências
à nova proposta. O primeiro foco de resistência, certamente, é a indústria do
vestibular, um setor privado muito poderoso que opera sobre a lógica da
competitividade. A Universidade Nova,
ao ampliar a oferta, reduz a competição. Certamente, os alunos de escola
privada continuarão tendo acesso à universidade, mas também os de escola
pública. Outro segmento que, aparentemente, pode mostrar resistência são os
próprios docentes das instituições, grupos que têm quatro gerações de
intelectuais formados nessa realidade atual e que não conhecem outra realidade.
Além disso, temos que considerar o setor privado de
ensino superior. A Universidade Nova representará
imenso avanço em termos de matrículas no ensino público. Há uma expectativa de
duplicar a oferta de vagas caso todo o sistema federal adote essa proposta. É
um salto histórico porque a cada ano a representatividade do setor público na
oferta de matrículas vinha caindo. Mas pessoalmente não acho que devamos pensar em termos de oposição e sim
em termos de construção coletiva. O conceito de oposição se aplica quando algo
concreto e definido se busca impor de cima para baixo, como foi a Reforma
Universitária do regime militar, em 1968. Nesse caso, vai ser o oposto. Por
isso sou otimista. Sei que vamos construir em conjunto uma proposta avançada e
progressista e, para isso, tenho a certeza de contar com docentes, servidores,
estudantes e toda a sociedade.
À primeira vista, os
elementos de eficientização do processo de formação universitária podem ser
determinantes para sua adoção em escala ampla pelo sistema federal de educação
superior. Afinal de contas, como se trata de recursos públicos, justifica-se
plenamente a busca obstinada de economicidade na gestão institucional.
Entretanto, a implantação da arquitetura proposta para a Universidade Nova terá seu maior impacto não em termos
financeiros e administrativos, mas justamente nos aspectos filosóficos e
conceituais das funções culturais e sociais da Universidade. Para subsidiar
este argumento, proponho retomar a idéia-base deste livro de que a Universidade
deve ser a casa do talento e da criatividade, o lugar da competência radical
(ver Textos 3 e 6, acima).
O que acontece
quando, submissos e enredados nas tramas da sociedade competitiva e do
pensamento conservador, deixamos sobreviver a universidade da mediocridade e do
conformismo? Quantas inteligências sensíveis têm sido rejeitadas, fagocitadas
ou desviadas de promissoras carreiras científicas ou artísticas por esta velha
universidade? Cada pessoa, rica, negra, índia, de baixa renda, branca,
imigrante, oriental, ou não, tem algum diferencial de talento e capacidade
criativa que cabe à sociedade, por meio dessa “maravilhosa invenção chamada
universidade”, como escreveu Kant, descobrir e cultivar, para o desenvolvimento
econômico, social e cultural da própria sociedade.
A estrutura
curricular da Universidade Nova permitirá a captação de estudantes
vocacionados para certas áreas de formação (como por exemplo, as artes e as
ciências com forte componente lógico) por meio de iniciativas de
esclarecimento, sedução e recrutamento. Docentes, pesquisadores e “atuantes”
(no sentido latouriano) de cada área de conhecimento e setor de inserção profissional
terão maiores chances de lançar suas redes, ainda no momento interdisciplinar
do BI, para pescar os latentes talentos desconhecidos. Assim, sinais de
“competência radical” poderão ser revelados a tempo de direcionar de modo
adequado as carreiras profissionais, científicas e artísticas dos estudantes
universitários.
Ademais, se o
adjetivo interdisciplinar for mesmo levado a sério, teremos modificado
sobremaneira o perfil intelectual dos egressos da educação universitária. Ao
final dos BIs, os alunos deverão ter cursado pelo menos dois terços de
disciplinas não relacionadas às carreiras profissionais oferecidas. Assim, na Universidade
Nova formaremos mais engenheiros expostos à poesia, mais médicos com uma
compreensão ecológica, mais artistas com uma passagem pela filosofia, mais
administradores com formação histórica, mais químicos com estudos clássicos.
Cabe aqui um
esclarecimento, dado que as primeiras reações frente à divulgação de pontos
parciais dessa proposta têm se manifestado frontalmente contra uma rendição à
ALCA-demia ou possível adesão ao Espaço Universitário Comum Europeu. Tais
reações revelam reduzido grau de conhecimento da proposta, pois, como fica
claro neste livro, somos contra a ALCA-demia (ver Texto 29) e temos uma
consciência crítica perante o Processo de Bolonha (ver Textos 26 e 27). O
desconhecimento desses proto-críticos é compreensível dado o fato de que nos
encontramos nas etapas iniciais de construção e detalhamento dos seus aspectos
conceituais e metodológicos.
Na realidade, há
grandes diferenças ideológicas, formais e operacionais entre o BI da
Universidade Nova, o college no modelo norte-americano e o Bachelor
do modelo unificado europeu. Por um lado, a pré-graduação da universidade
norte-americana é mais longa e mais densa, em termos curriculares, do que o BI,
exigindo dedicação exclusiva e, em muitos casos, residência nos campi. Por outro lado, as diversas
versões do primeiro ciclo do Processo de Bolonha (laurea trienale na Itália, license
na França, bachelor na Inglaterra, bakkalaureat na Áustria etc.) têm
estruturas de currículo já bastante especializadas, quase contraditórias com a
essência interdisciplinar do BI. Apesar de, por diversas razões (duração
equivalente, caráter predominantemente público da educação superior, manutenção
de cursos profissionais no segundo ciclo etc.), encontrarmos semelhanças entre
o modelo europeu atual e a proposta da Universidade Nova, as diferenças
de contexto entre os espaços universitários europeu e latino-americano são
grandes o bastante para desaconselhar uma adesão formal ao Processo de Bolonha.
Em suma, ampla
compatibilidade é positiva neste mundo globalizado, mas qualquer submissão será
fatal (como tem sido em todos estes anos de história da educação superior
brasileira) para o cumprimento do mandato humboldtiano da universidade como
lugar de concepção e construção da identidade nacional. Como fica claro pela
leitura dos textos da última seção, portanto, nada mais longe das bases
filosóficas e políticas da Universidade Nova do que supor que se
trataria de uma proposta de incorporação a qualquer um dos modelos hegemônicos
de universidade no cenário internacional.
Isso nos leva à
principal inspiração da proposta Universidade Nova, desde os seus primeiros ensaios. Não
é Harvard, nem Bolonha. Trata-se de uma das mais fecundas fontes do pensamento
progressista sobre a educação na história brasileira: ninguém menos que Anísio
Teixeira.
* * *
Anísio Teixeira,
eminente educador baiano, no decorrer de uma vida de gestor público profícuo e
intelectual criativo, produziu uma obra de inegável consistência filosófica,
política e científica. A partir de perspectivas que designa como “Educação
Democrática” e “Educação Progressiva”, Anísio Teixeira formula conceitos
fundamentais sobre as bases políticas da Educação como direito de todos e dever
do Estado (nas suas palavras: “dever democrático, dever constitucional, dever
imprescritível”). Desenvolvendo um ponto de vista próprio de pedagogia
filosófica, criticando duramente o que chama de “dualismo escolar”, Anísio
valoriza e aprofunda o papel das abordagens dialógica e participativa no
processo educacional e sistematiza a proposta de uma Escola Nova. Nisso,
antecipa em décadas posições posteriormente encontradas em Paulo Freire e seus
discípulos.
Sintonizado com os
debates epistemológicos mais avançados do seu tempo, Anísio antecipa a
emergência de novos paradigmas no panorama da ciência contemporânea, formula
sua concepção da “nova escola pública”. A esse respeito, no livro hoje clássico
Educação não é privilégio, Teixeira
(1957) escreve:
em face dessa
profunda alteração da natureza do conhecimento e do saber (que deixou de ser
atividade de alguns para, em suas aplicações, se fazer necessidade de todos), a
escola não mais poderia ser a instituição segregada e especializada de preparo
de intelectuais ou “escolásticos” e deveria transformar-se na agência de
educação dos trabalhadores comuns, dos trabalhadores qualificados, dos
trabalhadores especializados, em técnicos de toda ordem, e dos trabalhadores da
ciência nos seus aspectos de pesquisa, teoria e tecnologia.
Além de criador de
uma importante obra reflexiva e propositiva sobre a Universidade, Anísio
Teixeira liderou várias iniciativas concretas, como a construção institucional
da UDF e da UnB, frustradas pela repressão política, como vimos acima (Texto
20). Nesse aspecto, no Projeto de Lei que instituiu a Universidade de Brasília,
enviado ao Congresso Nacional em 21 de abril de 1960, tendo Anísio Teixeira
como Presidente da Comissão de Elaboração, encontramos elementos de definição
conceitual plenamente convergentes com a proposta Universidade Nova.
Isso transparece no seguinte excerto do item 12 da Exposição de Motivos:
Propõe-se uma
estrutura nova da formação universitária, para dar-lhe unidade orgânica e
eficiência maior. O aluno que vem do curso médio não ingressará diretamente
nos cursos superiores profissionais. Prosseguirá sua preparação
científica e cultural em Institutos de pesquisa e de ensino, dedicados às
ciências fundamentais. Nesses órgãos universitários, que não pertencem a
nenhuma Faculdade, mas servem a todas elas, o aluno buscará, mediante opção,
conhecimentos básicos indispensáveis ao curso profissional que tiver em vista
prosseguir. (grifos nossos)
Vários escritos de
Anísio sobre a universidade – destaco o livro Ensino Superior no Brasil. Análise e interpretação de sua evolução até
1969 –, compõem uma crítica, confessadamente precoce, da Reforma
Universitária de 1968. Nesse volume, publicado postumamente em 1989, Anísio faz
uma aguda análise da história e da estrutura do sistema brasileiro de educação
superior, acrescentando uma valiosa seção propositiva, que será objeto de nossa
atenção adiante. Premonitório na identificação dos principais problemas
estruturais da universidade brasileira – os dilemas cruciais da identidade
institucional (formar quadros técnicos ou promover ciência & cultura?
educar ou credenciar profissionais?) e o processo de expansão desenfreada, que
se tornou ainda mais sério com a privatização dos anos 1990 –, o seguinte
trecho (Teixeira, 2005, p. 178-9), merece transcrição:
Vacilando entre a
idéia de ensino superior como formação profissional das primeiras escolas do
Império e a da universidade como consolidadora da cultura nacional, manifesta
na década de 1930 e depois na Universidade de Brasília em 1960, o País viveu
todo esse longo período de mais de cem anos a multiplicar vegetativamente
aquelas primeiras escolas profissionais, dentro das precárias condições em que
se criara o primeiro curso médico em 1808, entremeando esse laissez-faire com os assomos ocasionais
de criação da verdadeira universidade. [...] Durante esse longo período
enraíza-se a idéia de um ensino superior superficial, simples reflexo de
cultura estrangeira importada, de ensino oral e de tempo parcial, destinado a
oferecer diplomas suscetíveis de credenciar seus titulares a cargos e
honrarias. O longo hábito de tais escolas deflagra, sob as novas condições do
Brasil moderno, uma expansão explosiva de tais escolas por todo o País. (grifo
no original)
Em diferentes
momentos da sua obra, Anísio Teixeira sintetiza elementos de definição
conceitual importantes para sua proposta de Universidade, por analogia à
concepção, a um só tempo revolucionária e pragmática, da Escola Nova. Conceitos
fundamentais e elementos estruturais previstos na proposta da Universidade Nova já se encontram expostos com clareza na obra anisiana tardia, escrita após a catastrófica repressão militar à
UnB original (SALMERON, 1998). Senão vejamos: os componentes curriculares
gerais e específicos, incluindo o conceito de cursos-tronco, e o caráter
majoritariamente optativo do BI (TEIXEIRA, 2005, p. 302); a articulação entre
os bacharelados curtos, as carreiras profissionais de média duração e as
carreiras longas, incluindo a natureza interdisciplinar (naturalmente sem
utilizar a terminologia atual, que seria criada posteriormente) dos ciclos
iniciais de formação (TEIXEIRA, 1998, p. 144-160); a estrutura modular, não-especializada e,
citando Abraham Flexner (1866-1959), a organização por níveis de formação do sistema de unidades de ensino
e das escolas de pós-graduação (TEIXEIRA, 2005, p. 202).
Examinemos alguns desses pontos em maior detalhe. Na “universidade
reformada” de Anísio, encontra-se a proposta de “colégios universitários”,
unidades de ensino do ciclo de pré-graduação, cuja estrutura curricular
compõe-se de dois níveis de formação: curso básico e curso propedêutico. Por
sua clareza, precisão, pertinência e convergência em relação à proposta dos
Bacharelados Interdisciplinares da Universidade
Nova, vale a pena reproduzir na íntegra a seguinte citação do livro Educação
e Universidade (TEIXEIRA, 1998, p. 154):
Cabe aqui, antes de prosseguir, examinar a designação de ensino básico
que se vem introduzindo em nossa terminologia da reforma. Se ele significa básico
apenas como preparatório para as carreiras profissionais, seria
aceitável. Nesse caso, o básico seria um ensino geral, introdutório ou
propedêutico ao estudo superior no nível acadêmico ou no nível profissional, ou
destinado a uma ampliação da cultura secundária, para os que não desejassem
fazer carreira acadêmica ou profissional. Neste caso, porém, não deveria haver
a insistência que percebo em que ele seja ministrado nos institutos destinados
às carreiras acadêmicas, salvo se eles se destinassem apenas às
carreiras acadêmicas.
Sobre a estrutura curricular da pré-graduação,
escreve Anísio (TEIXEIRA, 1998, p. 154-5):
O curso de cultura geral é diferente de um curso propedêutico e este
curso propedêutico se diversifica pelo ramo de que ele deseja ser propedêutico.
O de cultura geral é uma iniciação, uma introdução a um ramo do saber, com o
objetivo central de alargar a mente do educando, de lhe dar novas vistas da
realidade e de aparelhá-lo com certas idéias necessárias para compreender o
mundo do saber, a sua diversidade, e ajudá-lo a pensar com maior riqueza de
imaginação. Já o curso propedêutico pode alcançar alguns desses efeitos, mas
não pode ser tão desinteressado e tem de levar em conta a aplicação do
conhecimento examinado no campo para que deseja ser propedêutico. O curso geral
em certos casos pode ser propedêutico ao curso de especialização acadêmica, mas
somente como elemento para a escolha do campo a que se vai dedicar.
Na sua proposta de reforma, Anísio (Teixeira,
1998, p. 155-6) demonstra uma clara intenção de introduzir maior eficiência e
competência na função pedagógica do ciclo de pré-graduação (equivalente ao BI
da nossa Universidade Nova) e destaca a finalidade vocacional desse nível de
formação:
Toda essa reforma visaria atender a problemas reais da nossa conjuntura
universitária, conduzindo a melhor divisão de trabalho entre as diferentes
categorias do professor, no sentido de sua competência e da direção do seu
espírito, e a melhor divisão também dos estudantes, oferecendo-lhes no curso
básico, ou melhor, no curso inicial de dois anos (ou três) uma oportunidade
para se examinar e se descobrir e fazer as suas opções, ou de deixar a
universidade por não ser feito para ela, ou de achar que lhe bastam os
conhecimentos adquiridos, ou de escolher uma das carreiras acadêmicas ou uma
das carreiras profissionais.
A reforma universitária proposta por Anísio também já previa que cursos
de formação geral tipo Bacharelados Interdisciplinares abririam uma
possibilidade de acesso universal à educação universitária. Além disso,
indicava, sem hesitação, que as trajetórias de seleção para carreiras
profissionais ou acadêmicas se dariam como opções em um mesmo ciclo de formação
com a “introdução da formação acadêmica ao lado e independente da
profissional”. O seguinte trecho sintetiza soberbamente tais pontos de sintonia
entre a Universidade Nova e a utopia anisiana de universidade (TEIXEIRA, 1998,
pg. 156):
A reforma resolveria, assim, o problema da admissão à universidade,
abrindo os seus portões para acolher a mocidade, que terminara o curso
secundário e alimentava o propósito de continuar os estudos, para um curso
introdutório, de nível superior, destinado a alargar-lhes a cultura geral
recebida no nível secundário, dar-lhes uma cultura propedêutica para as
carreiras acadêmicas ou profissionais ou para treiná-los em carreiras curtas de
tipo técnico. Terminados esses cursos é que iria ele ser selecionado para os
cursos regulares de graduação nas carreiras acadêmicas ou profissionais. Depois
desta formação, nova seleção far-se-ia de imediato ou posteriormente, para a
escola pós-graduada.
Enfim, há inegáveis convergências ideológicas, formais e operacionais
entre a proposta de Anísio Teixeira (com o sistema de colégios universitários
com cursos universitários propedêuticos) e a arquitetura curricular do projeto
Universidade Nova (com o Bacharelado Interdisciplinar). Não obstante, na condição de neófito
estudioso do pensamento anisiano, o que para mim pareceu mais impressionante
foi constatar que se encontra em detalhes, na sua obra, o sistema de três
ciclos de formação (graduação, profissionalização e pós-graduação), antecipando
em quase meio século a arquitetura curricular do Processo de Bolonha.
* * *
Dizem alguns críticos da Universidade Nova que a sociedade brasileira mal está se
recuperando das ações afirmativas nas universidades públicas e já tem que
começar a pensar em algo novo. É função da universidade justamente fazer isso.
O que enfim se espera da universidade? Sabemos que ela foi inventada para estar
à frente da sociedade, para construir a cultura, para ser vanguarda na
história. Quando o projeto Universidade
Nova estiver em curso de implantação, possivelmente vamos ter que abrir
alguma outra vanguarda. O fato de a universidade brasileira, historicamente,
ter abdicado de construir o novo, fez com que a sociedade fosse buscar a
inovação em outras instituições. Justamente por isso, a instituição
universitária foi paulatinamente perdendo seu valor perante a cultura nacional.
Outros críticos se
mostram céticos frente a qualquer possibilidade de mudanças na universidade sem
antes termos resolvido o imenso débito histórico e político do ensino médio e
fundamental. Argumentam que não faz sentido falar de reforma na universidade
enquanto continuarmos com uma educação básica incapaz de efetivamente preparar
seus alunos para prosseguir em sua formação intelectual. Pontificam, sisudos e solenes: precisamos
renovar a escola pública em todos os níveis, depois vamos reformar a
universidade. Penso, a partir de uma lógica oposta, que se trata de uma posição
imobilista e paralisante. Não podemos esperar mais.
Uma reforma
universitária verdadeira, justificada e focada na arquitetura curricular,
poderá contribuir para (e, quem sabe, catalisar) a desejada transformação de
todo o sistema educacional. No momento em que o sistema federal de educação
superior mudar sua arquitetura curricular, redefinindo o conceito de formação
universitária e, por conseqüência, a sistemática de recrutamento de novos estudantes,
estou certo de que haverá um efeito reverso no ensino médio e quiçá também no
ensino fundamental. Como e quando isso ocorrerá, é difícil prever e mesmo
conceber. Mas não tenho dúvidas de que mudanças profundas na educação básica
advirão do projeto Universidade Nova.
Faz parte dos pensamentos esperançosos que, neste
livro, pretendi compartilhar com os eventuais leitores, a reflexão de que agora
estamos mobilizando mais o debate sobre esses temas relevantes e assim ganhamos
visibilidade e auto-afirmação. Por exemplo, colocar o Brasil no cenário
educacional do mundo é responsabilidade da universidade. Para isso, é
imprescindível que, nas relações complexas de trocas internacionais, tenhamos
sistemas educacionais que sejam valorizados e compatíveis com os centros
intelectuais e econômicos do mundo contemporâneo. Não podemos criar e fomentar,
sob o pretexto da autonomia institucional e da soberania nacional, formas de
perpetuação do nosso atraso. É claro que a universidade brasileira conta com
centros de pesquisa de excelência e reconhecimento internacional, mas o avanço
pontual não faz a instituição como um todo ser vanguarda. A universidade
precisa de algo que a unifique nessa direção. E aí entra o projeto Universidade Nova.
Talvez por mera dialética, parece que as
condições de superação do constrangimento histórico de termos uma universidade
arcaica e inerte se acumulam, indicando algum horizonte de transformação.
Primeiro, as mudanças pretendidas pela Reforma
Universitária de 1968 foram completamente digeridas e neutralizadas pelas
forças do tradicionalismo na universidade. De fato, em menos de 10 anos, as
universidades brasileiras que passaram por aquela reforma já haviam recuado,
quase completamente, em relação às alterações de estrutura institucional e de
arquitetura curricular.
Segundo, nem mesmo o deus ex-machina
chamado “mercado de trabalho” parece mais se importar com os padrões de
formação profissional dos egressos da educação universitária. Grandes
corporações, empresas de pequeno e médio porte, instituições públicas
(principalmente do judiciário), simplesmente retreinam todos os profissionais
recrutados para compor seus quadros técnicos e executivos, como se a passagem
pela instituição educacional e a conquista do diploma universitário apenas cumprissem
a função de credenciamento e não de formação profissional.
Por último, os modelos de formação universitária
que inspiraram nossas instituições de educação superior já se encontram
totalmente superados em seus contextos originais. Quando o prazo de consolidação
do Processo de Bolonha for alcançado (a data é 2010), o Brasil corre sério
risco de ser o último país com algum grau de desenvolvimento científico,
tecnológico e industrial a possuir uma arquitetura curricular com padrões e
modelos estabelecidos na Belle Époque. Caso isso ocorra, o País do
Futuro terá enfim cumprido sua sina de ser para sempre o “país dos bacharéis”.
Anísio Teixeira tinha clareza das estratégias necessárias para
realizar a reforma universitária verdadeira, em um espírito plenamente
concordante com as iniciativas do atual movimento pela Universidade Nova. Novamente,
a palavra presciente do mestre Anísio (2005, p. 178-9) nos guia, como se fosse
hoje:
O desafio do presente
é criar ordem e padrões de métodos e ação universitários na galáxia imprecisa,
múltipla e vaga do ensino superior brasileiro, em expansão incoercível.
* * *
O
termo utopia foi inventado por Sir Thomas Morus, em 1516, para nomear a
república ideal, um país que não existe e não pode existir, um lugar
impossível. Vem de u-topos que, literalmente, significa não-lugar. Jorge Luis Borges, num conto triste intitulado Utopía de un hombre que
está cansado, toma Quevedo como epígrafe: “Llamola utopía, voz
griega cuyo significado es no hay tal lugar.” O termo utopia popularizou-se em
todas as línguas modernas como sinônimo de projeto irrealizável. Num momento
recente, tornou-se popular a declaração de que vale a pena lutar por utopias.
Sinceramente, discordo. Acho o utopismo patético e melancólico. Para mim, a luta que vale a pena é por lugares
possíveis.
A Universidade Nova nada tem de
fantasiosa; este projeto não é uma utopia. Trazemos sim uma proposta
provocadora, realista, viável, portanto realizável; seguimos um movimento
assumidamente desejante, mobilizador, histórico (no sentido de operado pela
ação humana). Por tudo isso, proponho chamá-la de protopia. Ao
neologismo se aplica a mesma lógica etimológica do termo utopia. Mas atenção:
no lugar da negação, do vazio, temos o prefixo pro, a favor de, na
direção de, atuante (como em "pro-ativo"). Criamos, aqui, um
movimento a favor de um lugar; movemo-nos em direção a este lugar; neste
movimento, construímos o novo lugar, nossa protopia, a Universidade Nova.
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