Num trabalho que, sugestivamente, tem
como subtítulo “do excesso de discursos à pobreza das práticas”, António
Nóvoa, ao tratar das formulações educativas e da atuação docente, coloca
em realce algo paradigmático. Nos últimos tempos, assinala, tem-se
insistido, ora na formação inicial, ora na formação continuada.
Mas, prossegue, tanto num caso como no outro, há tendências claras para a
“escolarização” e para a “academização” dos programas de formação de
professores. Assim sendo, e apesar da retórica do “professor reflexivo”,
conclui, os resultados conduzirão, inevitavelmente, a uma “memorização”
dos docentes, reduzindo a percepção do que significa o trabalho
educativo.
Deste modo, não constitui surpresa, portanto, argumento eu, que,
atualmente, existam tanta incompreensão e confusão a respeito dos
contextos de desenvolvimento do trabalho educativo. Se este fenômeno é
mais visível hoje, é por, fundamentalmente, diferente do passado, termos
ingressado no que se denomina, genericamente, de a sociedade da
informação, onde a escola tem sido deslocada como instituição guardiã dos
saberes e agência hegemônica de sua transmissão.
De outra parte, a crise da escola, como problema estrutural, comum a
todos os países centrais e semi-periféricos, como o Brasil, relaciona-se
ao esboroar das suas concepções fundadoras perante a ampliação
(massificação) da oferta educativa.
Seja como for, “pari passu”, ampliam-se os espaços de desenvolvimento do
trabalho educativo, sendo exemplares, a este respeito, as implicações
decorrentes de formulações como pedagogia da gestão, ação pedagógica nas
empresas e em contexto prisional, bem como as ações pressupostas pelos
projetos de educação ambiental.
Isto é, trata-se da configuração de um cenário de labor educativo exógeno à escola.
Frente a este quadro, não só tem pairado incompreensão e confusão sobre
os espaços de realização do trabalho educativo, como, por vezes, enquanto
forma de reação ao que se desconhece, tende-se a limitar tal trabalho ao
âmbito escolar.
Quase sempre isto resulta de uma postura que, na procura de uma excessiva
verticalização da identidade profissional, termina por - referindo uma
vez mais Nóvoa - abonar vias simplificadoras que reduzem o campo de
abrangência do agir educativo.
Assim, ao fim e ao cabo, desconsidera-se o caráter inter/transdisciplinar
das Ciências da Educação, o que significa dizer que a constituição
identitária do trabalho educativo não pode ser concebida de forma tout
court, como uma espécie de identidade de “primeiro grau”, mas requer ter
em conta que o fazer neste campo é múltiplo, sendo ilustrativo disso o
fato de que, enquanto esfera do conhecimento, ele é estruturado por
diferentes disciplinas cujos marcos de referência incidem tanto sobre a
educação escolar como sobre a não-escolar.
Ora, a propósito, a forma como a docência tem sido referida é ilustrativa
da confusão (por vezes, trapalhada mesmo) conceptual que tem pairado nos
discursos a seu respeito. Pelo óbvio, chega a ser até constrangedor
repisar que, requerendo substância (o que não significa substancialismo),
um conceito opera com variáveis, pelo que, quando se fala de docência, é
preciso explicitar o conteúdo que lhe fornece estatuto epistemológico.
Portanto, em princípio, não têm consistência os discursos que falam de
uma “visão ampliada de docência”. Ampliada de onde para onde? Quais
variáveis lhe estruturavam e quais são as novas que foram incorporadas
pelo conceito? Ou seja, qual era a base primária do conceito e, agora,
quais são os novos postulados que ele assumiu? Isto está por ser
esclarecido, e, enquanto não o for, a noção de “docência ampliada” não
poderá ser apresentada (a rigor) de modo conceptual.
Quedar-se-á como noção vazia, propícia à retórica (aos discursos que
muito falam e nada dizem...), mas será imprópria a um projeto educativo
cientificamente orientado. Talvez seja até útil, do ponto de vista
curricular, para “definir” (formalmente) a intervenção dos professores
nos espaços não-escolares, porém nem por isso tal noção deixará de ser
deficitária em seus fundamentos.
No mais, essa “utilidade” expõe-se ao risco de cometer aquele equívoco
para o qual a comunidade da investigação educacional contemporânea tem
chamado a atenção: escolarizar as práticas educativas não-escolares. Uma
desventura. Ao invés disso, far-se-ia melhor começar lembrando que,
classicamente, como conceito, a docência pressupõe ensino, conteúdo
disciplinar, avaliação, averiguação comportamental, normas da polis
estatal, etc., para então se saber para onde se caminha com a noção de
“docência ampliada”.
Contudo, e de resto, a propósito da produção conceptual, cabe deixar
anotado o seguinte: os conceitos não se produzem pelo desdobramento da
razão sobre si mesma. Não é pertinente, portanto, que venham a lume como
desdobramento lógico de um pensamento abstrato das oposições entre
conceitos anteriormente construídos. Eles devem ser formulados como
síntese do pensamento que reproduz um modo de articulação deixando ver a
tecitura através da qual a variedade de relações se hierarquiza e se
unifica num determinado conjunto estrutural. É um processo de produção
teórico-prática.
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