terça-feira, 23 de abril de 2013

Mundo dos professores: Venturas e desventuras da docência

O texto abaixo, escrevi-o há cinco anos. Já não me dava conta desse distanciamento temporal (é isso mesmo: o tempo passa numa velocidade inversamente proporcional a conhecer?). E também praticamente já não o tinha em conta - a ele não teria voltado se não o tivesse visto citado numa base bibliográfica online. Foi publicado pelo Jornal da Ciência/SBPC.



Num trabalho que, sugestivamente, tem como subtítulo “do excesso de discursos à pobreza das práticas”, António Nóvoa, ao tratar das formulações educativas e da atuação docente, coloca em realce algo paradigmático. Nos últimos tempos, assinala, tem-se insistido, ora na formação inicial, ora na formação continuada.
Mas, prossegue, tanto num caso como no outro, há tendências claras para a “escolarização” e para a “academização” dos programas de formação de professores. Assim sendo, e apesar da retórica do “professor reflexivo”, conclui, os resultados conduzirão, inevitavelmente, a uma “memorização” dos docentes, reduzindo a percepção do que significa o trabalho educativo. 
Deste modo, não constitui surpresa, portanto, argumento eu, que, atualmente, existam tanta incompreensão e confusão a respeito dos contextos de desenvolvimento do trabalho educativo. Se este fenômeno é mais visível hoje, é por, fundamentalmente, diferente do passado, termos ingressado no que se denomina, genericamente, de a sociedade da informação, onde a escola tem sido deslocada como instituição guardiã dos saberes e agência hegemônica de sua transmissão.
De outra parte, a crise da escola, como problema estrutural, comum a todos os países centrais e semi-periféricos, como o Brasil, relaciona-se ao esboroar das suas concepções fundadoras perante a ampliação (massificação) da oferta educativa. 
Seja como for, “pari passu”, ampliam-se os espaços de desenvolvimento do trabalho educativo, sendo exemplares, a este respeito, as implicações decorrentes de formulações como pedagogia da gestão, ação pedagógica nas empresas e em contexto prisional, bem como as ações pressupostas pelos projetos de educação ambiental.
Isto é, trata-se da configuração de um cenário de labor educativo exógeno à escola. Frente a este quadro, não só tem pairado incompreensão e confusão sobre os espaços de realização do trabalho educativo, como, por vezes, enquanto forma de reação ao que se desconhece, tende-se a limitar tal trabalho ao âmbito escolar.
Quase sempre isto resulta de uma postura que, na procura de uma excessiva verticalização da identidade profissional, termina por - referindo uma vez mais Nóvoa - abonar vias simplificadoras que reduzem o campo de abrangência do agir educativo.
Assim, ao fim e ao cabo, desconsidera-se o caráter inter/transdisciplinar das Ciências da Educação, o que significa dizer que a constituição identitária do trabalho educativo não pode ser concebida de forma tout court, como uma espécie de identidade de “primeiro grau”, mas requer ter em conta que o fazer neste campo é múltiplo, sendo ilustrativo disso o fato de que, enquanto esfera do conhecimento, ele é estruturado por diferentes disciplinas cujos marcos de referência incidem tanto sobre a educação escolar como sobre a não-escolar.
Ora, a propósito, a forma como a docência tem sido referida é ilustrativa da confusão (por vezes, trapalhada mesmo) conceptual que tem pairado nos discursos a seu respeito. Pelo óbvio, chega a ser até constrangedor repisar que, requerendo substância (o que não significa substancialismo), um conceito opera com variáveis, pelo que, quando se fala de docência, é preciso explicitar o conteúdo que lhe fornece estatuto epistemológico.
Portanto, em princípio, não têm consistência os discursos que falam de uma “visão ampliada de docência”. Ampliada de onde para onde? Quais variáveis lhe estruturavam e quais são as novas que foram incorporadas pelo conceito? Ou seja, qual era a base primária do conceito e, agora, quais são os novos postulados que ele assumiu? Isto está por ser esclarecido, e, enquanto não o for, a noção de “docência ampliada” não poderá ser apresentada (a rigor) de modo conceptual.
Quedar-se-á como noção vazia, propícia à retórica (aos discursos que muito falam e nada dizem...), mas será imprópria a um projeto educativo cientificamente orientado. Talvez seja até útil, do ponto de vista curricular, para “definir” (formalmente) a intervenção dos professores nos espaços não-escolares, porém nem por isso tal noção deixará de ser deficitária em seus fundamentos.
No mais, essa “utilidade” expõe-se ao risco de cometer aquele equívoco para o qual a comunidade da investigação educacional contemporânea tem chamado a atenção: escolarizar as práticas educativas não-escolares. Uma desventura. Ao invés disso, far-se-ia melhor começar lembrando que, classicamente, como conceito, a docência pressupõe ensino, conteúdo disciplinar, avaliação, averiguação comportamental, normas da polis estatal, etc., para então se saber para onde se caminha com a noção de “docência ampliada”.
Contudo, e de resto, a propósito da produção conceptual, cabe deixar anotado o seguinte: os conceitos não se produzem pelo desdobramento da razão sobre si mesma. Não é pertinente, portanto, que venham a lume como desdobramento lógico de um pensamento abstrato das oposições entre conceitos anteriormente construídos. Eles devem ser formulados como síntese do pensamento que reproduz um modo de articulação deixando ver a tecitura através da qual a variedade de relações se hierarquiza e se unifica num determinado conjunto estrutural. É um processo de produção teórico-prática.




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