quinta-feira, 11 de abril de 2013

Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra

Para contrariar um pouco a imagem tão caricata de África, vale a pena a leitura do moçambiacno Mia Couto, um dos mais criativos escrtores contemporâneos, e um referência da literatura em língua portuguesa. Designamete o seu livro Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra.  Abaixo, uma recensão do mesmo.

 Foto: Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras, mas só há duas nações – a dos vivos e dos mortos.

MIA COUTO

No livro "Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra"

 Fonte: http://www.passeiweb.com/

Na obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Mia Couto transporta-nos para um universo onde sentimos de tal forma o pulsar da África, que chegamos a sentir saudades desse continente, mesmo sem nunca ter estado lá. Este livro mostra a preocupação do autor em preservar algumas tradições moçambicanas, sem referir-se diretamente a questões políticas, mas aflorando os confrontos e conflitos de uma realidade comum a um dos países mais pobres do mundo. Tudo com uma linguagem lúdica, criativa, que não se envergonha nem mesmo de trocadilhos, capaz de fazer lembrar o falar das veredas do sertão de Guimarães Rosa.

Na obra somos levados a visitar os últimos 50 anos da história de Moçambique pela pena de um poeta que escreve em prosa. "Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas." (pág. 18).

É uma história que se situa num período de paz, depois de 16 anos de guerra. O autor viveu, praticamente, quase metade de sua vida sob o fogo cruzado da guerra. Primeiro, de 1972 a 1975, ainda adolescente, como membro da Frelimo, a frente de libertação liderada por Samora Machel. Depois, a guerra com a Rodésia e, em seguida, a guerra civil que destruiu o sonho de uma geração que pensava ser possível criar uma nação próspera, capaz de enfrentar o futuro com dignidade.

Fruto de um tempo de sonhada paz, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra não traz a amargura que se sente em outras obras, de épocas mais duras. Enfim, sem esse viés, não se compreende este livro: Luar-do-Chão encontra-se num estado de abandono, miséria e decadência que deixa claro que o sonho de Samora Machel e seus seguidores ficou longe de se concretizar. A realidade pós-colonial é ainda pior.

No livro, o estudante universitário Mariano volta a sua terra natal para o funeral do avô. Enquanto aguarda pela cerimônia ele é testemunha de estranhas visitações na forma de pessoas e de cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São revelações de um universo dominado por uma espiritualidade que ele vai reaprendendo. À medida que se apercebe desse universo frágil e ameaçado, ele redescobre uma outra história para a sua própria vida e para a da sua terra.

Em Luar-do-Chão, uma misteriosa ilha de acontecimentos fantásticos, ele precisa solucionar um conflito íntimo, semelhante ao dilema da África pós-colonial. Esta Ilha vai representar para o protagonista um reencontro consigo próprio.

Manhã cedo me ergo e vou à deriva. (...) Pretendo apenas visitar o passado. Dirijo-me às encostas onde, em menino, eu pastoreava os rebanhos da família. As cabras ainda ali estão, transmalhadas. Parecem as mesmas esquecidas de morrer. Se afastam, sem pressa, dando passagem. Para elas, todo o homem deve ser pastor. Alguma razão têm. Em Luar-do-Chão não conheço quem não tenha pastoreado cabra. Ao pastoreio devo a habilidade de sonhar. Foi um pastor quem inventou o primeiro sonho. Ali, face ao nada, esperando apenas o tempo, todo o pastor entreteceu fantasias com o fio da solidão. As cabras me atiram para lembranças antigas. (pág. 190)

A pretexto do relato das extraordinárias peripécias que rodeiam o funeral do avô de Mariano, este romance traduz, de uma forma ao mesmo tempo irônica e profundamente poética, a situação de conflito vivida por uma elite ambiciosa e culturalmente distanciada da maioria rural.

Certamente, nos familiarizamos com as personagens de Mia Couto, que poderiam habitar muitas de nossas regiões, com suas rezas e segredos. No entanto, o assalto aos valores desse povoado muito diz, como já citado, sobre a própria história de Moçambique, e mais além, sobre a situação atual do homem moderno em qualquer parte do mundo, exilado de sua coletividade e de suas crenças, errante num universo onde sua existência individual carece de importância. O autor aborda o confronto entre dois universos diferentes: o capitalista e urbano construído em torno das idéias de progresso e modernidade, e o religioso e mítico dominado pelos valores ancestrais da comunidade, cuja independência se apresenta recente.

Esse encontro se expressa nas surpresas e angústias de Mariano (personagem-protagonista), que ao redescobrir a sua comunidade, conhecerá também a sua própria história. Nascido na ilha, mas habitante da cidade, o jovem é obrigado pelas circunstâncias a um novo olhar para as tradições regionais que se impõem soberanas.

Ele irá transitar nos domínios natural e sobrenatural de Luar-do-Chão, onde o sagrado impera no mais banal e cotidiano, e as histórias individuais estão profundamente ligadas aos destinos da coletividade e da ilha. As tradições, descritas com seus ritos e princípios éticos, são construídas de forma a nos dar a dimensão da estreita ligação dos homens à Nyumba-Kaya, a casa, a legítima morada, bela lembrança de uma África originária.

Mariano recebe do avô "pseudomorto" a missão de restaurar a normalidade da vida, por meio da compreensão dos dramas interiores de cada um de seus familiares e do desvendar de segredos antigos. Insere-se o espaço da profundidade psicológica precisa na caracterização dos personagens, símbolos de diversas formas de existência e luta humanas.

As simples mulheres do povoado se mostram pivôs de antigos romances, de tragédias submersas no rio, muitas destinadas a representações míticas e fantásticas, como a bela Nyembeti, que simboliza a própria ilha (ou seria o próprio país, Moçambique). Incapaz de falar e dona de hábitos estranhos à maioria, a jovem é predestinada à exclusão e ao ofício de enterrar os mortos, dada sua familiaridade com o mundo subterrâneo.

Já os homens mostram-se sensíveis diante das transformações e ameaças iminentes da ilha. Por meio deles o autor trabalha o desencanto diante da independência conquistada, da tradição que se imaginara assegurada, misturado ao temor da perda de Nyumba-Kaya, morada absoluta dos vivos e dos antepassados.

Não é à toa que o falecido avô, também Mariano, resiste em morrer. O retorno às origens, trilhado pelo neto, torna-se a verdadeira possibilidade da partida derradeira do avô, rumo a uma nova existência. A morte, nesse exemplo, requer o retorno à vida, a extração da verdade, sob conseqüência de perturbar todos os demais, pois algo deve ser dito. Algo tão importante, capaz de fazer com que a terra envergonhada se feche. Capaz de permitir que a ilha ressentida se mostre exausta e busque a verdade que oculta em seu solo.

Seu retorno é uma imposição da tradição, incumbido que fora para dirigir as cerimônias fúnebres de seu avô Dito Mariano, de quem recebera o mesmo nome e a incumbência. Neto favorito do patriarca de uma família moçambicana da terra, o estudante, ao chegar à ilha, vê-se envolvido então numa teia de intrigas e segredos familiares que imaginava já não existirem.

São intrigas que envolvem seu pai, Fulano Malta, a avó Dulcineusa, os tios Abstinêncio, Ultímio e Admiranga e sua mãe, Mariavilhosa, morta em circunstâncias nebulosas, todos nomes que fazem o leitor brasileiro lembrar de figuras do Nordeste. Marianinho logo descobre que a morte do avô – que teima em não morrer de vez – permanece envolvida por um mistério que escapa à luz da razão – como tudo nessa enigmática Luar-do-Chão, onde os mortos continuam a governar os vivos.

Portanto, o eixo temático deste romance gira em torno desta viagem empreendida pelo protagonista, e resgata, por sua vez, outros itinerários que se dão no curso de rios reais e ficcionais.

Nas águas do rio Madzimi, Mariano parte em busca das suas origens e do seu passado, empreendendo, para tanto, um denso mergulho em suas memórias de menino, evocando com elas as brincadeiras de outrora com o amigo Juca Sabão, às margens desse mesmo rio. A chegada a Luar do Chão, sua terra-natal, se dá em sincronia com a partida do avô, passageiro do "barquito desabandonado" que o conduzirá pelas "águas do tempo" à "outra margem", onde ele se juntará aos seus antepassados, cumprindo, pois, o ciclo de vida acreditado em África.

A viagem de retorno à infância de Mariano e a do avô rumo ao futuro, indicam uma sincronia, visto que este movimento para trás e para frente aponta a chegada a um lugar onde idoso e criança tornam-se pontos limítrofes do mundo visível africano e que, por sua vez, convive harmoniosamente com mundo invisível dos antepassados. A morte, primeiro substantivo nomeado no romance em questão, torna-se, portanto, "o umbigo do mundo", onde estes espaços se entrecruzam e estabelecem um ciclo vital entre si. A ilha é o último espaço de convivência entre avô, neto e família neste lado da margem e a derradeira possibilidade de restauração de uma série de elementos estruturais de que o avô depende para poder, enfim, assumir seu lugar no mundo invisível. Esta premissa nos é inicialmente apresentada na epígrafe do primeiro dos vinte e dois capítulos da obra: "Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações — a dos vivos e a dos mortos". A delimitação de um espaço primordial africano e a importância da consciência do homem da posição que nele ocupa revelam a preocupação constante de Mia Couto: como artesão da palavra, cabe ao poeta a função de pensar o mundo, o homem e a sociedade em sua totalidade e, com isso, fazer com que sua escritura provoque atitudes líricas mas também políticas que perpassem a beleza estética e resultem em ações que os integrem ao seu espaço e cultura.

A desagregação encontrada por Mariano em sua ilha-natal exacerba a fragmentação cultural que Mia Couto se preocupa em denunciar. Esta é claramente evidenciada através dos nomes das personagens, já que a descontrução lingüística empregada por ele denota um processo de revitalização da linguagem através da sua reinvenção, ainda que no romance em questão o autor lance mão de menos neologismos.

Pela modificação das construções e da estrutura das palavras da língua portuguesa, Mia Couto mescla elementos que resgatam a poeticidade em seu sentido lingüístico mais amplo, ressalta imaginário de seu país, preservando constantemente suas marcas culturais.

Por esta razão, o tio mais velho de Mariano, Abstinêncio abstém-se do mundo e da vida, minimizando todo o contato com o mundo externo, tomado por um mutismo que o afasta até mesmo de sua família. O terno negro e a gravata por eles envergados metaforizam um "escuro envergando escuridão" e a gravata cinza "semelha uma corda ao despendurão num poço que é seu peito escavado" por uma dor que ele não deseja claramente reconhecer, o que lhe acarreta a melancolia característica dos que se mantêm descontextualizados.

Fulano da Malta, o pretenso pai de Mariano, tem no nome toda a evidencia de indefinição e da insegurança como progenitor. O nome revela, sobretudo, sua melancolia em não reconhecer, como ex-guerrilheiro, os resultados da guerra por que lutou, o que o faz sentir-se excluído da nação e do mundo e, conseqüentemente, de sua família. O regresso de Mariano implicará, por isso, uma reaprendizagem mútua: a do pai que aprende a ser pai e a do filho que reconhece a pertinência de atos que Fulano outrora cometera e que apenas após este resgate do passado foram por ele compreendidos.

O tio Ultímio, terceiro dos três filhos, é, por sua vez, o que menos percebe a relevância da terra, da família e das tradições como elementos constituintes do homem, uma vez que, como burocrata, "se dá a exibir, alteado e sonoro, pelas ruas da capital, ocupado entre os poderes e seus corredores". A crítica à personagem se exacerba na comicidade da cena de seu automóvel importado atolado nas areias de Luar do Céu, até ali levado para impressionar futuros investidores estrangeiros ávidos por transformar a ilha em rentável investimento turístico, assim como para ressaltar as diferenças que Ultímio crê existir entre ele, sua família e os demais habitantes da localidade.

É, no entanto, outra personagem, a velha Miserinha, quem melhor descreve o quadro inicial da viagem e do cenário sombrio que permeia a ilha e seus moradores, todos metonimizados pela alegoria e vítimas, como o restante do país, da perda de identidade: "Já não vejo brancos nem pretos, tudo para mim são mulatos". O único resquício de cor associada à personagem e à ilha está no lenço de seda multicolorido usado por ela e que representa a última memória das diferentes colorações do mundo, que contrastam, no entanto, com a roupa surrada da personagem, com seu rosto vincado e, sobretudo, com suas retinas fatigadas pelo tempo, as quais vêem os homens acinzentados e marcados por um traço comum: a perda do desejo e da identidade.

Ao longo da narrativa, Mariano se depara, pois, com o insólito causado pela quase morte do avô. Em estado de latência e possível catalepsia, Dito Mariano aguarda o regresso do neto a casa para que se ajustem detalhes cruciais à sua partida. Como espaço catalisador da ação das personagens "Nyumba-Kaya" é a casa que tem seu nome composto pelas palavras que designam este vocábulo em línguas de pontos extremos do país, "para satisfazer familiares do norte e do sul". Destelhada, segundo as tradições fúnebres, para que o luto que ordena o céu se adentre por seus compartimentos, a casa é regada diariamente como uma planta para que as águas não apenas a limpem, mas também a fertilizem e preserve em suas colunas e paredes o saber primordial africano.

Quem a faz molhar é a avó Dulcineusa, doce no nome para compensar a amargura da perda de parte da mão e dos dedos corroídos pela acidez do caju colhido nos tempos coloniais. Em momentos que alternam delírio e lucidez, Dulcineusa revela conflitos do homem diante da confluência de valores sociais, culturais e religiosos que lhe foram impostos ao longo dos anos.

O percurso de Mariano é igualmente permeado por conflitos, dúvidas, descobertas e surpresas ligadas originariamente ao funeral, mas que acabam por revelar novas histórias para o protagonista e para sua terra. Lançando mão de elementos fantásticos, o "avô" comunica-se com o neto por meio de cartas que sua mão moribunda não pode escrever, as quais, por sua vez, surgem misteriosamente ao pé do neto para lhe servir de diretriz sobre cada passo a ser dado na condução das exéquias e na sua posterior liderança da família.

O retorno de Marianinho à ilha para encontrar uma nova forma de salvar a terra, que também é a sua casa, e reconstruir um mundo novo, sem abandonar as tradições, é, de certa maneira, uma parábola da África pós-colonial que precisa juntar seus destroços para seguir adiante e não ficar irremediavelmente para trás na história das nações.

O centro deste retorno é a casa de seus ancestrais na Ilha de Luar-do-Chão, o ponto de partida de sua identificação consigo mesmo dentro daquele universo aparentemente tão distante e tão diferente da cidade, lugar de sua formação, rico em recursos da modernidade, porém infértil para o sustento das tradições.

A relação estabelecida entre a casa e o tempo, declarada pelo próprio título do romance, permeia todas as vertentes da obra, todos os seus personagens e seus espaços.

Uma sucessão temporal de eventos, abrigados pela memória dos rituais da tradição africana, dentro das visões que Marianinho estabelece em suas visitas, se dá pelo contato do que lhe é natural e sobrenatural, um processo, muitas vezes, afastado dos conceitos de lógica e linearidade da verossimilhança.

Esta ruptura com a linearidade do texto, no uso sensível da prosa poética, é um grande marco da escrita de Mia Couto, apropriando-se da construção do fantástico dentro da realidade de seus personagens e da realidade do próprio leitor. O trabalho “artesanal” de seu léxico é um registro de compromisso com a representação estética do mundo. O uso explícito de criações neológicas ultrapassa o registro do que seria uma linguagem regional e oral, representando, nas mãos do escritor, a exposição de um universo contraditório presente nos países colonizados em África que buscam até hoje, após e até pela Independência, sua identidade.

O tempo e a casa selam uma união conjugal dentro do romance. O tempo, em seu caráter masculino, representa os homens da história. Sofre um processo de desmoronamento (particular à casa) para refletir toda a desconstrução dos homens desta família: suas dependências emocionais, suas ambições sempre volúveis, os desenganos vestidos pela guerra do país e desnudos por uma fome de paz interna e externa insaciável em seus corpos e espíritos.

A casa, o feminino, é habitada pelas mulheres. Precisa de defesa, mas mantém-se altiva pela junção dos vivos e dos mortos no ventre de seus corredores. As revelações que direcionam o desenvolvimento do romance são cozidas, conduzidas e muitas vezes protagonizadas pelas mulheres da família.

A morte de Dito Mariano, patriarca dos Malilanes é a morte da “casa pai” e o nascimento da “casa mãe”, responsável pelo abrigo das peças que compõem a identidade de Marianinho mediada pela tradição e pela modernidade de seus valores.

Um dos pontos fulcrais do romance é a recusa da terra em receber o corpo do semidefunto (ou semivivo?) antes do tempo oportuno. A tentativa de antecipar o enterro, liderada por Últímio, não encontra a maior resistência na família, mas sim no solo adubado pela insensatez humana que se cerra completamente na recusa de receber o corpo de Mariano. O chão arenoso em que o automóvel importado atolara resiste, agora, rígido, à pá do coveiro e faz com que seu metal se vergue ensimesmado no terreno desprovido da maciez que a umidade da água outrora lhe concedera.

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