sexta-feira, 12 de abril de 2013

Infelicianeidade

A esfera política brasileira, ressalvada as devidas exceções, que existem e devem ser ressaltadas, parece viver num mundo à parte. Mundo que só faz aumentar a cisão entre representantes e representados, pondo em causa a democracia representativa. Que o Congresso Nacional tem sido palco de 'movimentações' nada republicanas, disso já sabemos há muito. Mas, nos últimos tempos, a situação tem superado todos os limites. A última é a do Pastor Feliciano. E já não falo nem na necessidade de se garantir o caráter laico do Estado - cada vez mais uma ficção no Brasil. O que causa espécie é alguém com as posições (e as práticas) que tem o deputado-pastor Feliciano chegar à Presidência da Comissão de Direitos. Dizer que o 'Pai', o 'Filho' e o 'Espírito Santo' foram os responsáveis pelo tiros em John Lennon, fazer o comércio da fé e reclamar de fiel da sua Igreja que fornece o cartão mas não entrega a senha, afirmar que os africanos descendem do diabo... enfim, a lista de absurdos é interminável. Contudo, lá está o Feliciano, aboletado na Presidência da Comissão de Direitos Humanos. E esta é a questão: ele lá não chegou sozinho. Foi conduzido por seus pares. Estes, como o deputado-pastor, também devem ser questionados. A situação é tão absurda que até religiosos de bom senso se têm voltado contra ela - com o faz o frade dominicano Frei Betto, conforme o texto abaixo, sugestivamente intitulado Infelicianeidade (publicado no Jornal Folha de São Paulo, edição para assinante (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/103375-infelicianeidade.shtml)

Frei Betto


Vocábulos nascem de expressões populares. Assim como nomes próprios trazem significados que deitam raízes em suas respectivas etimologias. Feliciano é nome de origem latina, derivado de felix, feliz. Nem sempre, contudo, uma pessoa chamada Modesto deixa de ser arrogante, e conheço uma Anabela que é de uma feiura de fazer dó.
Estamos todos nós, defensores dos direitos humanos, às voltas com um pepino federal. Nossos servidores na Câmara dos Deputados, aqueles cujos altos salários são pagos pelo nosso bolso, cometeram o equívoco de eleger o deputado e pastor Marco Feliciano para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias.
O pastor deputado, filiado ao PSC-SP, escreveu em seu Twitter: "Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato". Em outra mensagem, postou: "Entre meus inimigos na net (sic) estão satanistas, homoafetivos, macumbeiros...".
Em processo aberto no Supremo Tribunal Federal, Feliciano é acusado de induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou religião --crime sujeito à prisão de um a três anos, além de multa. Em sua defesa, Feliciano afirma: "Citando a Bíblia (...) africanos descendem de Cão (sic) (ou Cam), filho de Noé. E, como cristãos, cremos em bênçãos e, portanto, não podemos ignorar as maldições".
Que deus é esse que amaldiçoa seus próprios filhos? Essa suposta teologia vigorou no Brasil colonial para justificar a escravidão. O Deus de Jesus ama incondicionalmente a todos. Ainda que O rejeitemos, Ele não deixa de nos amar, conforme atestam a relação do profeta Oseias e sua mulher, Gomer, e a parábola do Filho Pródigo.
Todo fundamentalismo cristão é ancorado na interpretação literal da Bíblia, que deriva da ignorância exegética e teológica. Os criacionistas, por exemplo, acreditam que existiram um senhor chamado Adão e uma senhora chamada Eva, dos quais somos descendentes (embora não expliquem como, pois tiveram dois filhos homens, Caim e Abel...). Ora, Adão em hebraico é terra, e Eva, vida. O autor bíblico quis acentuar que a vida, dom maior de Deus, brota da terra.
Ter Feliciano como presidente de uma comissão tão importante --por culpa de legendas como PMDB, PSDB e PT-- é uma infelicidade. Não condiz com o nome do deputado que, na roda do samba que está obrigado a dançar, insiste no refrão: "Daqui não saio, daqui ninguém me tira".
O deputado é um pastor evangélico. Sua conduta deveria, no mínimo, coincidir com os valores pregados por Jesus, que jamais discriminou alguém.
Jesus condenou o preconceito dos discípulos à mulher sírio-fenícia; atendeu solícito o apelo do centurião romano (um pagão!) interessado na cura de seu servo; deixou que uma mulher de má reputação lhe lavasse os pés com os próprios cabelos e ainda recriminou os que se escandalizaram ao presenciar a cena; e não emitiu uma única frase moralista à samaritana adepta da rotatividade conjugal, pois estava no sexto homem! Ao contrário, a ela Jesus se revelou como o Messias.
É direito intrínseco de todo ser humano, e também da democracia, cada um pensar pela própria cabeça. Nada contra o pastor Feliciano, na contramão do Evangelho, abominar negros e odiar homossexuais e adeptos da macumba. Desde que não transforme seu preconceito em atitude discriminatória e seu mandato em retrocesso às conquistas que a sociedade brasileira alcança na área dos direitos humanos.
Estamos todos nós indignados frente ao impasse armado pelo jogo político rasteiro da Câmara dos Deputados. Eis uma verdadeira situação de infelicianeidade, com a qual não podemos nos conformar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário