Escrevi o artigo abaixo para a Revista Portuguesa Ciência Hoje (
http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=4225&op=all). Já tem algum tempo, mas temas como crise da escola, 'alunização' da juventude, crise da identidade docente, etc., passam por algumas das questões nele focadas.
1 - A reconfiguração dos sistemas educativos
As últimas décadas do século passado foram marcadas por um conjunto de transformações que, se estendendo aos dias de hoje, têm operacionalizado profundas alterações nas mais diferentes esferas. O fim da bipolarização ideológica entre blocos (que marcou a chamada Guerra Fria), a Globalização, as novas tecnologias, etc., representam uma amostra dos acontecimentos que têm dado uma “nova” face ao mundo do século XXI (1).
As últimas décadas do século passado foram marcadas por um conjunto de transformações que, se estendendo aos dias de hoje, têm operacionalizado profundas alterações nas mais diferentes esferas. O fim da bipolarização ideológica entre blocos (que marcou a chamada Guerra Fria), a Globalização, as novas tecnologias, etc., representam uma amostra dos acontecimentos que têm dado uma “nova” face ao mundo do século XXI (1).
Neste contexto, uma das esferas que tem passado por significativas mudanças em sua formatação é o Estado. E não se trata de dizer, como é correcto realçar, que o aparato estatal de hoje guarda uma significativa diferença daquele que os clássicos do pensamento social tiveram em consideração, embora pressuponha isto. O que está em causa são as transmutações que lhe têm perpassado em decorrência de fenómenos como os anteriormente aludidos.
É um dado adquirido que, pelo menos desde o fim dos anos 1970, principalmente nas sociedades centrais, o “consenso” em torno da acção estatal foi posta em questão. Seja por conta do colapso do Estado de bem-estar social, seja por causa dos efeitos da globalização (construindo sociedades transnacionais e, portanto, estiolando o que referencia o Estado-nação), seja ainda como resultado da adopção da ortodoxia do laissez-faire, laissez-passer (o neoliberalismo), o facto é que o Estado tem sido deslocado como ente regulador da vida social. Não é à-toa a expressão de Daniel Bell, dosada com uma pitada de ironia liberal, segundo a qual o Estado se tornou demasiado pequeno para os grandes problemas da vida social e demasiado grande para os pequenos (2).
As decorrências do mencionado quadro para os sistemas educativos não são difíceis de serem constatadas. Antes da instauração do mesmo, a educação tendia a ser descrita como o resultado da intervenção do Estado no campo escolar, de um modo que ele, formulando e implementando macro-políticas, apresentava-se fundamentalmente como um Estado Educador (3) .
O referencial passa a ser o mercado
Como representante de uma Nação, o Estado delineava as directrizes estruturantes do campo educativo no intuito de cimentar uma base de valores para, por exemplo, assegurar a homogeneidade interna e garantir a identidade nacional. Não me parece ser necessário um esforço analítico de maior fôlego para demonstrar que, sobretudo nos países centrais, esta é uma realidade que está ficando para trás. Com a globalização, não só a ideia de Estado-nação é descentrada, como o referencial estruturante da acção educativa – “adornado por tintas neoliberais”, embora nem sempre assim o seja – passa a ser o mercado.
E é deste modo que os sistemas educativos são reconfigurados. A este respeito, é sintomático, como chama a atenção Michael Apple, que tanto nos Estados Unidos como na Grã-Bretanha proliferem discursos estabelecendo uma relação inequívoca entre a crise nacional e a ineficácia dos sistemas educativos (4). A meu juízo, contudo, a reconfiguração dos sistemas educativos não é adequadamente compreendida se não for considerado pelo ao menos mais dois factores: as novas tecnologias e o processo de mutação cognitiva em curso.
No que se refere às novas tecnologias, convém pôr em relevo que está em marcha, desde a década de 1950, um evento histórico da mesma importância da Revolução Industrial do século XVII, induzindo um padrão de descontinuidade nas bases materiais da economia, da sociedade e da cultura. Trata-se da Revolução da Tecnologia da Informação (5). Diferente das revoluções anteriores – da Primeira e da Segunda –, a actual refere-se às tecnologias da informação, processamento e comunicação.
Ou seja, a tecnologia da informação é para a mesma o que as novas fontes de energia foram para as revoluções industriais anteriores, do motor a vapor à electricidade, aos combustíveis fósseis e até mesmo à energia nuclear. Contudo, o que a caracteriza não é a centralidade de conhecimento e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento da comunicação, num ciclo de realimentação cumulativo entre inovação e seu uso.
Seguindo Manuel Castells (6), pode dizer-se que os usos das novas tecnologias de telecomunicações nas últimas décadas passaram por três fases diferentes: a automação de tarefas, as experiências de usos e a reconfiguração das aplicações. Nas duas primeiras, o progresso da inovação tecnológica baseou-se no aprender usando. Na terceira fase, os usuários aprenderam a tecnologia fazendo, o que acabou resultando na reformatação das redes e na descoberta de novas aplicações.
O ciclo de realimentação entre a introdução de uma nova tecnologia, dos seus usos e dos seus desenvolvimentos em novos domínios torna-se muito mais rápido no novo paradigma tecnológico. Consequentemente, a difusão da tecnologia amplifica o seu poder de forma infinita, à medida que os usuários se apropriam dela e a redefinem. As novas tecnologias da informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Desta forma, os usuários podem assumir a gestão da tecnologia, como acontece no caso da Internet.
O rebatimento das novas tecnologias
Com efeito, o rebatimento das novas tecnologias nos sistemas educativos acontece de duas formas: 1) por via da reestruturação produtiva, donde decorre um conjunto de demandas do mercado de trabalho pleiteando que as escolas formem uma mão-de-obra apta à referida realidade, com isto significando dizer que a força laboral deve ser portadora de habilidades flexíveis, para, assim, ser propensa ao desempenho das mais diversas tarefas, onde o trabalho em equipe é uma dimensão central; e (2) através da introdução de novas modalidades de acção educativa, onde a educação a distância, os programas off line de aprendizagem por computador, os cursos on line, as ferramentas em rede de pesquisa e os ambientes on line de partilha de experiências são exemplos paradigmáticos.
Ora, chega a ser até um acto de repisagem do que é evidente, cansativo pelo óbvio, daí inferir que os sistemas educativos se reconfiguram, ou que pelo menos há a necessidade de que isto aconteça, sob pena de eles se tornarem obsoletos. Daqui pode-se fazer uma conexão com o outro factor atrás mencionado como requisito para se entender adequadamente a reconfiguração dos sistemas educativos: o processo de mutação cognitiva em curso.
Parece hoje, cada vez mais, desprovido de sentido conceber a educação formal como a única instância gestora de conhecimento e ministrante de aprendizagem. Tendo em consideração, como bem realça Bernard Charlot (7) , que a relação entre os alunos (principalmente os de meios populares) e o saber não é algo unilateral (“monopólio” do sistema escolar sobre os estudantes, centrado apenas no ensinar), é pertinente, portanto, admitir que há que se prestar uma atenção acrescida nos contextos educativos informais e não-formais, pois aí são criados e re-significados uma variedade de saberes que circulam envolvendo a escola, agindo sobre ela, mas não interagindo com os seus propósitos. Este processo de mutação cognitiva encontra-se intimamente vinculado às noções de socialização primária e de socialização secundária e tem implicações directas sobre elas e sobre a escola.
Como sabemos, o âmbito da socialização primária é o âmbito familiar, onde supostamente são transmitidos valores e normas de conduta e de coesão social. Entretanto, vários elementos, tanto nos países centrais como nos não-centrais, têm posto em causa o desempenho de tais atributos da socialização primária, por exemplo: a desestruturação familiar (por razões económicas e também não-económicas), a monoparentalidade, a escassez do tempo de relação doméstica e de convivialidades densas no lar.
Como decorrência disto, ou seja, com a redução da carga afectiva na transmissão de conhecimentos e de valores e a perda de identificação com o mundo apresentado pelos adultos, configura-se um grave deficit de socialização primária das crianças e dos jovens, com a consequente perda de referências, relativismo de valores, ameaça à coesão e solidariedade sociais.
No vácuo deixado pela socialização primária, tem entrado em cena agentes da socialização secundária (8) , oriundos das “velhas” e das novas tecnologias, como os meios de comunicação de massa e, agora, os chats, substituindo os dispositivos e os contextos próprios daquela. Deste modo, ocorre aqui um fenómeno singular: de um lado, crianças e jovens antecipam o seu desenvolvimento cognitivo, obtendo conhecimentos que supostamente seriam alcançados mais tarde, na socialização secundária, na educação formal; e por outro, são carentes de relações sócio-afectivas, da valoração típica da socialização primária.
Lições que deveriam ter recebido em casa
Com efeito, dada a relativa falência da socialização primária, os seus atributos têm sido delegados à escola. É assim que se têm multiplicado os apelos para que, ao fim e ao cabo, ela assuma os afectos e as funções maternais e parentais, produza a interiorização das normas básicas do viver em sociedade e promova a aceitação dos dispositivos de legitimação e de adopção dos valores essenciais à vida social, para além de, claro, desempenhar o seu papel específico, isto é, as funções de instrução, estimulação e socialização secundária.
Se formos mais longe por esta trilha analítica, chegamos aos principais problemas do quotidiano escolar contemporâneo: os jovens vão para a escola receber lições que deveriam ter recebido em casa (socialização primária); a escola exerce atributos cognitivos e de socialização secundária que não lhes são novidades, pois já tiveram acesso aos mesmos através, por exemplo, dos meios de comunicação de massa; como resultado, jovens e escola se encontram para um “diálogo” em linguagens diferentes.
Deste modo, não é incomum que a escola e os alunos convivam, mas vivam em mundos diferentes: a primeira procurando mecanismos para desempenhar o seu papel, por vezes depositando uma confiança ilimitada em dispositivos gestionários e burocráticos; os segundos, dentro e fora da escola, construindo um universo à parte do mundo escolar, erigindo relações de sociabilidade que estruturam uma cultural juvenil com padrões cognitivos distintos dos padrões escolares.
Talvez, portanto, só considerando devidamente tal processo de mutação cognitiva, associado com os factores que lhe são correlatos, poder-se-á entender e tratar adequadamente de questões como a indisciplina escolar.
Seja como for, o fato é que os três fenómenos que estivemos a recensear (as transformações no âmbito do Estado, as novas tecnologias e o processo de mutação cognitiva), entre outros, reconfiguram os sistemas educativos. É em função desta reconfiguração, que diversas formulações têm ressaltado o surgimento de novas demandas na formação docente, perspectivando um novo perfil para o professor, como veremos a seguir.
2 – Demandas para a formação docente e o perfil do professor
Apesar de as principais elaborações sobre formação de professores consubstanciarem categorias analíticas diferentes, elas parecem, no entanto, convergir, em sentido amplo (mesmo que utilizando termos distintos), para uma definição comum do perfil do professor demandado pela reconfiguração dos sistemas educativos. Decerto que, nalguns momentos, esta convergência é mais nítida, enquanto que, noutros, é menos visível, e também, às vezes, fica numa posição intermediária. Via de regra, contudo, são poucos os trabalhos sobre formação de professores que, pelas teses que defendem, se antagonizam irreconciliavelmente.
Desta forma, as formulações referencializadas, por exemplo, nas ideias do professor reflexivo, do professor como intelectual crítico, do professor como pesquisador, do “professor das histórias de vida”(9) , são elaborações que se encontram. Como consequência, pode-se apontar alguns eixos em torno da formação de professores em relação aos quais se tem estabelecido um relativo consenso.
Pleiteia-se uma formação sólida, assente numa base geral, tendo em consideração indicadores como: a) conhecimento articulado contextualmente, tendo em conta a interdependência entre educação, economia, política e sociedade, situando-se sempre esta démarche de modo sócio-histórico e cultural; b) relação indissociável entre teoria e prática; c) relevância da dimensão ética como substrato a partir do qual se erigem responsabilidades individuais e colectivas, bem como se estruturam relações sociais e produtivas; d) atenção ao aspecto investigativo como componente da prática docente.
Daí é possível realçar um esboço do perfil do novo professor, tendo em apreço, entre outras, três características. Uma primeira a ser destacada parecer ser a formação multidimensional e reflexiva do professor, ou seja, ele deve ser portador de um conjunto amplo de dispositivos cognitivos, não se fechando portanto numa área específica do conhecimento, mas deve, sim, dotar-se de instrumentos teórico-práticos que o capacitem para o diálogo inter/multidisciplinar, exercitando, ao mesmo tempo, a crítica e a autocrítica, que, ao fim e ao cabo, vem a ser uma manifestação do pensar reflexivo.
Uma segunda característica a referir diz respeito à multiculturalidade necessária ao agir profissional do professor. Ou seja, aqui o que está em causa é a necessidade de a formação ter em conta uma política da diferença, de respeito a todas as diversidades humanas e de superação dos preconceitos, sejam eles quais forem. Como se sabe, a escola é um microcosmo da sociedade, e portanto um local onde as diferenças étnicas, culturais, de género e físicas se fazem presentes.
Uma acção de integração
Cabe, assim, ao docente desenvolver uma acção de integração baseada na comunicação, aproveitando a diversidade na sala de aula como fonte pertinente ao processo de ensino-aprendizagem. Trata-se, pois, de assumir a diversidade como um recurso útil ao processo de ensino-aprendizagem, ao invés de a considerar um obstáculo, que logo resvala para os preconceitos (10).
Last but not least, a terceira característica concerne à actuação do professor como indutor de relações entre a escola e a comunidade. O pressuposto aqui presente é o de que, tendo em conta que o tipo de formato que a acção escolar assume depende dos aspectos da comunidade em que ela se situa (aspectos que se fazem presentes na escola através dos alunos) e considerando que a vida extra-escolar dos estudantes é determinante para os seus percursos escolares, coloca-se como imprescindível que se leve a efeito uma articulação entre a escola e a comunidade, onde o professor, pela proximidade que supostamente tem com os alunos, é uma peça central, cabendo-lhe alimentar um diálogo marcado por momentos de sociabilidade.
Em última instância, a escola, conectada com a movimentação comunitária, por via do trabalho docente, vem a ser parte do desenvolvimento das próprias comunidades locais, assim como o desenvolvimento das comunidades locais é condição para o êxito da própria escola.
3 – À guisa de conclusão: alguns desafios imediatos à formação
Se é certo que, para realizar uma reflexão a respeito de um determinado objecto/temática, é necessário um grau de afastamento metodológico para não enviesar a abordagem, por outro lado, não se pode perder de vista o axioma segundo o qual, nas ciências sociais/humanas, é métier do analista construir conceitos e procedimentos para tratar dos desafios postos pela realidade. Tendo isto como pressuposto basilar, e considerado a incursão anteriormente empreendida, penso que convém, para efeitos conclusivos, pôr em realce, entre outros, quatro desafios imediatos à formação de professores.
O primeiro refere-se à necessidade de se reequacionar a relação teoria-prática. Como se sabe, o estabelecimento de uma dissociabilidade rígida entre estas duas dimensões é uma construção histórica, efectivada sobretudo com a descontextualização dos saberes e a institucionalização dos modernos sistemas educativos.
Por exemplo, nas cidades medievais, como sublinha André Peitat (11), a aprendizagem directa era a regra, isto é, havia uma íntima ligação entre os espaços sociais que asseguravam a “formação profissional” e aqueles onde se exerciam as actividades produtivas, pois a aprendizagem dos ofícios se realizava no interior das próprias corporações e era regulamentada por um contrato de aprendizagem estabelecido com o mestre.
Além do mais, considerando a discussão de natureza ontológica, importa destacar que a separação entre teoria e prática só possível para propósitos analíticos, dado que o ser é praxis (unidade teoria-prática).
Seja de que modo for, para a formação de professores actualmente, a questão do reequacionamento da relação teoria & prática está posta de maneira mais incontornável do que antes. É uma demanda do perfil do novo professor. Conhecimentos distanciados da realidade não interferem nela, assim como o mero senso prático, sem o crivo da reflexão teórica, não tem consistência para orientar o agir profissional.
Como decorrência, pode-se delinear dois indicativos que merecem uma cuidadosa atenção: as interfaces Licenciatura & Bacharelado e o ensino pela pesquisa. No primeiro caso, de algum modo, principalmente no Brasil, estamos ainda perante um modelo taylorizado, delegando atribuições de execução (ao Licenciado) e de concepção (Bacharel), o que é um descompasso histórico, principalmente quando consideramos que, em outros países, a valorização recai sobre a Licenciatura, ocorrendo o inverso com o Bacharelado, que inclusive é obtido num espaço de tempo menor. No segundo caso, isto é, o ensino pela pesquisa, interessa promover uma modalidade de ensino interpretativa, o que demanda, entre outras componentes, rediscutir os procedimentos de avaliação.
O todo e as partes no conhecimento
O segundo desafio é relativo à articulação entre o todo e as partes no conhecimento. Sabendo que o todo tem qualidades ou propriedades que não são encontradas nas partes, se estas estiverem isoladas umas das outras, e [que] certas qualidades ou propriedades das partes podem ser inibidas pelas restrições provenientes do todo (12), impõe-se como imprescindível buscar uma articulação que faça com que as partes (disciplinas) expressem o todo (o conhecimento), e este não seja distorcido por aquelas e nem as distorça. Ou seja, a tarefa que aqui se coloca é a da inter/multidisciplinaridade. É, no mínimo, um despropósito, compreender, por exemplo, que uma disciplina isolada capta fatos a 100% e expressa verdades inquestionáveis acerca de determinada área do conhecimento.
A especialização disciplinar excessiva, limitando professores a saber apenas de aspectos específicos de seus campos, tem-nos tornado especialistas ignorantes, na medida em que nada conhecem para além das fronteiras de suas áreas (13). Tendo em linha de conta as demandas da formação docente, na busca de uma formação multidmensional, coloca-se como urgente, portanto, promover uma inter/multidisciplinaridade que não sobreponha enfoques particulares, como é próprio das fragmentações curriculares, mas sim, de modo multirreferencial, realize a fusão de pontos de vista diversos num mesmo olhar analítico (14) .
A procura de uma interlocução com a educação não-formal e informal, constitui-se no terceiro desafio. Se considerarmos, conforme enfatizamos, que está em curso um processo de mutação cognitiva, onde novos saberes são gerados à margem dos sistemas formais de educação, então a busca de interlocução com as modalidades educativas que os expressa é imperativa. Esta articulação pode ser procurada por via do ensino como pesquisa, conforme anteriormente apontado, como também, dependendo da concepção/do modo de a fazer, pela extensão universitária (15).
O quarto desafio, e último nesta minha abordagem, diz respeito à construção da identidade docente. Aqui há que se pôr de parte a “tentação” de entender que ela é outorgada a 100% pela formação académica. Aliás, ideias semelhantes à esta constituem-se numa forma pouco apropriada de se conceber as construções identitárias (profissionais e sociais). É um modo fechado de as compreender, como se as pessoas, ao longo da vida, tivessem apenas uma socialização – o que, evidentemente, é falso.
Na escola constrói a identidade
As identidades são construídas em processo (16). No caso da identidade docente, a formação académica é parte deste processo, será nos contextos de trabalho que se vão definir modos de relacionamentos, manuseamento do conhecimento oriundo da formação, surgimento da necessidade de adequação/recomposição de saberes, enfim, práticas que dizem quem são o professor, o seu perfil. Em suma, na escola, se constrói a sua identidade.
Entender a identidade docente assim, tendo em vista as demandas postas hoje à formação, é uma condição sine qua non para, por exemplo, dimensionar os atributos dos cursos, as funções do estágio e visualizar parâmetros para efectivação da convergência entre teoria e prática.
Postos estes desafios em perspectiva, interessa chamar a atenção para, enfrentando-os, bem como tratando de outras problemáticas que envolvem a formação de professores, procurar estruturar dispositivos que reinventem a profissão docente de um modo que o professor seja capaz de se autonomizar na construção do conhecimento e contribua para estruturar comunidades educativas onde a solidão no aprender transforme-se num ato de solidariedade sócio-cognitiva
Notas:
[1] - A meu ver, entre outros, os trabalhos de Eric Hobsbawm e Manuel Castells são indispensáveis para entender tal realidade. Ver HOBSBAWM, Eric, A Era dos Extremos: o breve século XX, São Paulo: Companhia das Letras, 1995; e CASTELLS, Manuel, The Information Age: Economy, Society and Culture, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1999 (três volumes).
[2] - BELL, Daniel, Communitarism its critics, Oxford: Osford Press, 1993; BELL, Daniel, The Coming of Post-Industrial Society: A V enture in Socual Forecasting, Londres: Heinemann.
[3] - Retomo aqui uma tese que, em parceria, já avancei em outro trabalho. Ver LEITE, Ivonaldo & CORREIA, José Alberto, “Dos Novos Fenômenos às Novas Problemáticas no Campo Educativo: Uma Incursão e um Ponto de Vista Prospectivo”, in Interfaces de Saberes, Caruaru: nºs 1,2, 2003, p. 77-92.
[4] - APPLE, Michael , “Introducción”, in LISTON, D. P. & Zeichner, K. M., Formación del Professorado y Condiciones Sociales de la Escolarización. Madrid: Morata.
[5] - Tratei de modo mais detido deste assunto num trabalho anterior. Ver LEITE, Ivonaldo, Novas Tecnologias, Trabalho e Educação: Desorganizando o Consenso, Lisboa: Edições Dinossauro, 2002.
[6] - CASTELLS, Manuel , ob. cit., vol. 1.
[7] - CHARLOT, Bernard, Du Rapport au Savoir: Éléments pour une théorie, Paris: Economica
[8] - Em conjunto com outros elementos, o mencionado fato é indispensável numa abordagem analítica séria sobre a “crise da escola”. Cf. AFONSO, Almerindo J., “A Crise da Escola e a Educação Não-Escolar”, in A Página da Educação, Porto: nº 10, Março/2002, p. 27.
[9] - Cf., entre outros, PERRENOUD, Philippe, La formation des enseignants entre théorie et pratique, Paris: L’Harmattan; GIROUX, Henry A, Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem, Porto Alegre: Artes Médicas, 1997; GIMENO SACRISTÁ N, J., Poderes instáveis em educação,Porto Alegre: Artmed, 1999; IMBERNÓN, F., Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza, São Paulo: Cortez, 2001; NÓVOA, António, Histoire & Comparaison (Essais sur l’Education), Lisboa: Educa.
[10] - STOER; Stephen R., “Construindo a Escola Democrática através do Campo da Recontextualização Pedagógica”, in Sociedade e Culturas, Porto: nº 01, 1994, p. 7-27.
[11] - PETITAT, André, Production de l’école – production de la société, Genéve: Libraire Dorz, 1982.
[12] - MORIN, Edgard, Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, São Paulo: Cortez, 2002, p. 37.
[13] - SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Transição Pós-moderna. Porto: Afrontamento.
[14] - CORREIA, José Alberto, Para uma Teoria Crítica em Educação, Porto: Afrontamento, 1998
[15] - O modo como José Francisco de Melo Neto conceptualiza a extensão universitária é extremamente pertinente para a referida perspectiva. Ver MELO NETO, José Francisco, Extensão Universitária, Autogestão e Educação Popular, João Pessoa: Editora Universitária/UFPB.
[16] - Apesar da limitação da bibliografia brasileira a respeito do assunto, no contexto internacional ela é vasta. Um autor que tem produzido trabalhos de referência no campo é o francês Claude Dubar. Ver DUBAR, Claude, La Socialisation: Construction des identités sociales et professionnelles, Paris: Armand Colin Éditeur, 1995.
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