Sobre a 'condição humana', Hannah Arendt escreveu atiladas páginas. No texto abaixo, o Prof. Miroslav Milovic (UnB) as passa em revista, tecendo considerações também a respeito das formulações do belga Chantal Mouffe.
A condição humana na modernidade
Miroslav Milovic
Para Martin Heidegger, a pergunta sobre os Outros vai ser apenas uma promessa – como dirá Jurgen Habermas – que ele nunca vai cumprir. A filosofia heideggeriana não é a filosofia dos Outros. Um específico egoísmo, talvez o europeu, domina sua filosofia. Assim, a filosofia de Heidegger se transforma numa específica geopolítica. Edmund Husserl também, falando sobre a crise atual da humanidade, aponta a Europa como a única alternativa. Mas o que dizer sobre a tradição européia e essa impossibilidade filosófica de incluir a questão sobre o Outro? O que dizer sobre esse específico autismo europeu? O conceito da Europa, por exemplo, iniciou-se e se fortaleceu – como algumas interpretações históricas estão sugerindo – com as Cruzadas, dentro dessa identidade militar e não dentro da pergunta sobre os Outros e sobre a diferença. Por causa disso, pode ser que o atual discurso sobre a grandeza européia seja somente a tentativa de esconder a sua mediocridade.
Por isso é compreensível a desconfiança que Jacques Derrida tem sobre Heidegger. A profunda filosofia heideggeriana não fez dele um democrata. Assim, parece que o projeto da confrontação com a tradição e a modernidade, o esboço da destruição da metafísica fica ainda aberto. O projeto não se realizou com a hermenêutica heideggeriana. É preciso pensar uma nova perspectiva, talvez uma nova articulação da diferença ontológica. É o ponto inicial da filosofia de Derrida; é o ponto para abordar a desconstrução da filosofia. A discussão começa já na confrontação com Husserl no livro Voz e fenômeno. Aqui a questão ainda parece só acadêmica, ligada à herança kantiana, porque se refere às condições da síntese da consciência transcendental. O que é importante para Derrida, nesse contexto inicial, é que a questão sobre a consciência, nem para Immanuel Kant, nem para Husserl, ficou ligada à problemática da linguagem. A linguagem chega tarde para quase toda a história da filosofia. Isso é o que Derrida quer questionar, mostrando que a linguagem está no centro da estrutura da consciência. As condições transcendentais da consciência não podem ser articuladas sem a linguagem. Os signos lingüísticos se referem aos objetos ausentes. A consciência, por um lado, precisa da síntese dos dados diferentes, e a síntese, por outro, precisa dos signos, precisa de algo que vai ocupar o lugar dos objetos ausentes. Assim, a linguagem é a condição da síntese na consciência. A consciência é sempre a relação com algo diferente, com a linguagem. A consciência é mediada pela linguagem e, por causa disso, não podemos falar sobre a subjetividade constitutiva. A identidade é sempre mediada pela diferença. Aqui temos o início do projeto derridiano de gramatologia. O que agora existe são apenas os signos ou, melhor dizendo, pegadas, porque Derrida, com essa idéia da linguagem, não quer criar o novo lugar da condição transcendental.
A subjetividade e outros lugares privilegiados do pensamento tradicional têm de ser desconstruídos. A metafísica que pensa a identidade – ou a metafísica da presença – tem de ser superada pelo pensamento da diferença. Essa específica emancipação ou afirmação do signo não se refere à hermenêutica e ao projeto heideggeriano. Derrida não é um autor hermenêutico ou estético, como pensa Gianni Vattimo. A hermenêutica de Heidegger ainda afirma os lugares privilegiados para pensar a autenticidade do ser. Assim, ela ainda não é a diferença verdadeira, a diferença que produz a diferença. A diferença de Heidegger parece mais uma diferença reificada, determinando – poderíamos dizer assim – os lugares para a aparição do autêntico. A diferença heideggeriana ainda não é utópica. Heidegger ficou preso no horizonte da moderna metafísica da subjetividade. Por isso, o projeto da destruição da metafísica tem de ser superado pelo projeto de sua desconstrução.
Acho que as diferenças entre Heidegger e Derrida podem ajudar a entender as diferenças entre Hannah Arendt e Chantal Mouffe. Arendt vai iniciar o projeto sobre a política no contexto da diferença ontológica de Heidegger. Política faz a diferença, cria a ontologia, a possibilidade de Novo. Por isso, Arendt ainda tem o otimismo pensando a dignidade da política.
Com os motivos heideggerianos, ela vai voltar ao mundo grego, onde a política nasceu. A vida é ação, fala Aristóteles no início da Política. Sim, a vida é ação dirá também Hannah Arendt tentando separar a vida de uma elaboração metafísica e ligando à condição humana. A inspiração fenomenológica e heideggeriana fica clara. Pensar a política significa separar-se da metafísica, do essencialismo. Só assim pode aparecer o Novo. A política é para Arendt o lugar da ruptura com a metafísica.
A modernidade vai, assim, cair atrás do pensamento grego, afirmar a vida na política, a vida biológica, quer dizer, as condições da sobrevivência e do trabalho. Para os gregos, o projeto político não era sobreviver, mas viver bem e aproximar-se do mundo eterno. A modernidade, aproximando o privado e a natureza da política, anunciará uma especifica despolitização. O mundo moderno é o mundo sem a política, o mundo da economia e das condições da sobrevivência. Nós somos testemunhas dessa herança. Hoje, para sobreviver, agora no contexto do terrorismo, temos de criar as novas formas da autoridade política. Sobreviver ainda é um projeto político, ou melhor dizendo, junto a Arendt, é um projeto da negação da política. Estamos muito distantes do projeto grego que tentou unir a política à liberdade e não à natureza.
Voltar para a política – esse é o projeto de Hannah Arendt. Ou melhor, voltar para a política além da racionalidade. Hannah Arendt, mesmo confrontando os gregos e os modernos não quer afirmar novamente a metafísica na política, mas, sim, a herança heideggeriana.
De tal modo, afirmar a política para além da racionalidade são os pontos que unem Hannah Arendt e Chantal Mouffe. No entanto, a inspiração de Chantal Mouffe é diferente, posto que esta não vem da filosofia heideggeriana, mas, primeiro, da experiência psicanalítica, em que o sujeito é sempre falta, sempre uma condição conflitiva e, segundo, da idéia derridiana da diferença.
A diagnose da modernidade entre as duas é semelhante também. Mouffe vai falar sobre a perspectiva econômica do liberalismo moderno, no qual a política desaparece. A despolitização é a diagnose que ela, junto a Arendt, vai fazer sobre a modernidade. A condição humana na modernidade, para Arendt e para Mouffe, é mais individual e econômica que política e coletiva. Por isso, a modernidade chega só até a uma democracia representativa e não até a uma democracia participativa. O mundo liberal não é necessariamente ligado à democracia. Esse é o ponto onde Mouffe, procurando a inspiração em Carl Schmidt, vai se confrontar com autores como John Rawls, Richard Rorty e Habermas. Precisamos então repensar a política para articular as condições de uma nova democracia que Mouffe, junto com Ernesto Laclau, vai chamar de democracia radical ou agonística.
Até esse ponto convergem os caminhos entre Mouffe e Arendt. As diferenças começam quando tratam do conceito do pluralismo na política. No livro sobre o paradoxo democrático, Mouffe vai dizer que o pluralismo em Arendt fica sem antagonismo, ou que o agonismo político fica sem antagonismo. É o ponto onde uma inspiração derridiana supera uma inspiração heideggeriana.
Em suas várias discussões sobre política, Hannah Arendt se refere à discussão fenomenológica, ajudando-nos a compreender a importância histórica dessa radicalização do cartesianismo dentro da fenomenologia husserliana. Hannah Arendt acredita que a separação platônica entre o ser e a aparência marca um passo histórico não só para a vida dos gregos, mas para todo o caminho posterior da civilização. A desvalorização da aparência e a afirmação do ser são os aspectos da reviravolta na vida dos gregos e do Ocidente europeu. Com isso, tem início uma específica tirania da razão e dos padrões em nossas vida. Isso é o que Nietzsche elabora como o começo do niilismo na Europa. A estrutura já determinada, estática, entre o ser e a aparência, tem conseqüências catastróficas para o próprio pensamento. Nesse mundo tão ordenado, quase não temos que pensar mais, o pensamento não muda a estrutura dominante do ser. Essa inabilidade do pensamento termina, no último momento, nas catástrofes políticas do nosso século. Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa e se torna cúmplice dos crimes: essa é a banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a conseqüência dessa tradição filosófica, que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou.
Pensar a política, junto com a fenomenologia, significa pensá-la sem a identidade. No projeto arendtiano, em que não existe uma identidade originaria da politica, nós não somos os seres políticos por natureza. A política pode ou não acontecer entre nós. Contrária às dificuldades husserlianas e heideggerianas sobre os outros, a ação política em Arendt é sempre uma interação.Os outros são pressupostos e não conseqüências de uma reflexão solitária. Em livro sobre Santo Agostinho, Arendt vai se liberar da ontologia heideggeriana ligada à morte e procurar uma afirmação dos outros, dos próximos. Claro, Arendt sabe que Santo Agostinho não vai ligar a liberdade à política. A liberdade para ele não é um projeto político. Assim, a modernidade vai herdar essa dimensão não política da liberdade advinda do cristianismo.
Dentro dessa reconstrução histórica, Arendt chega até à filosofia kantiana. Kant não é um pensador político, melhor dizendo, quando a política aparece na filosofia kantiana, é sempre relacionada à doutrina do direito. Não existe a política, pensa Kant, que articula a nossa liberdade. É por isso que Arendt tem de procurar a inspiração em outro lugar dentro da filosofia kantiana e ela encontra essa inspiração dentro da terceira crítica.
Com a faculdade estética do juízo, o ponto, pensa Kant, é como compreendemos a natureza e não o que ela é em si mesma. A questão “o que é a natureza?” é uma pergunta cognitiva e, portanto, não pertence à Terceira crítica. A natureza existiria mesmo se não houvesse nenhum sujeito transcendental. Ela só não seria determinada conceitualmente. Mas, sem o sujeito, a natureza não seria bela. Ainda assim, aquilo que se torna o discurso possível sobre o belo não é mais o pensamento teórico. Enquanto as condições de possibilidade da experiência, no que diz respeito à forma, podem ser buscadas na razão, as condições referentes ao conteúdo são fundamentadas pela relação geral das faculdades espirituais. Aqui temos dois motivos importantes para Arendt. Por um lado, uma implícita intersubjetividade do juízo e, por outro, essa intersubjetividade não é fundamentada nos conceitos. Temos a possibilidade do prático, ou político, que não depende da racionalidade; temos a separação entre o teórico e o prático que Habermas depois vai criticar, porque essa separação cria as condições de uma forte estetização da política. Estetização da política pode significar a política desligada das pessoas, o que Arendt coloca, falando sobre a modernidade, mas pode ser a política desligada da teoria e dos argumentos.
Parece que essa articulação da intersubjetividade significa uma tentativa de Arendt de localizar, articular os lugares privilegiados na política e, de uma certa maneira, reificar a política. Arendt procura as soluções e não uma abertura para o caráter aberto e conflitivo da política que Chantal Mouffe quer defender.
Chantal Mouffe quer elaborar uma concepção antifundamentalista da política. A inspiração é, como mencionei, por um lado derridiana, pensando o conceito da diferença, e, por outro, psicanalítica, pensando o caráter conflitivo da natureza humana. Nesse sentido, Mouffe, inclusive, fala sobre os perigos de uma teoria que procura as soluções consensuais e assim marginaliza os verdadeiros conflitos. Pensei, nesse contexto, no meu país, a ex-Iugoslávia, cujo conflito também pode melhor ser entendido dentro dessa reconstrução de Chantal Mouffe. O comunismo postulou um certo consenso, a solidariedade ou irmandade dos povos dentro do universal projeto da sua realização. Assim, os verdadeiros conflitos entre os povos nunca chegaram à articulação política. Depois da morte de Josip Tito, o conflito aberto apareceu. O governo dele não conseguiu, nas palavras de Mouffe, transformar o antagonismo no agonismo, transformar o conflito numa competição política.
O conflito iugoslavo mostra o perigo das soluções consensuais que excluem a política. Consenso esconde conflitos. Na ex-Iugoslávia, mostrou-se que crer em consenso pode ser uma grande ilusão. Só que Hannah Arendt não é pensadora do consenso e também poderia criticar a experiência titoista dentro da crítica geral ao marxismo. Mesmo assim, penso que a busca de uma implícita ou explícita intersubjetividade, em que o caso iugoslavo também poderia, de uma certa maneira, ser colocado, cria os problemas para a política. A Iugoslávia podia, eventualmente, sobreviver baseada nos conflitos e não no consenso ou na intersubjetividade comunista. Aqui a gente chega até o ponto nevrálgico da discussão: por um lado, pensar a intersubjetividade na política pode criar as condições da reificação. Por outro lado, sem a intersubjetividade, sem a possibilidade do julgar junto aos outros, facilmente se chega até a banalidade do mal.
Agora, na teoria de Chantal Mouffe, mesmo falando sobre a democracia radical, a afirmação do caráter conflitivo da diferença não se tematiza de um jeito radical. Falando sobre o pluralismo político, Mouffe simplesmente o postula. O pluralismo não é uma afirmação ontológica, mas um fato histórico. É o próprio início da modernidade liberal. Derrida ficaria, eu acho, com muitas dúvidas com essa ligação entre o liberalismo e o pluralismo. Liberalismo é só uma forma da identidade social capitalista e não a afirmação da diferença. Outro problema é que Mouffe, e isso a aproxima de Habermas, quer ainda seguir o projeto moderno e europeu. Parece-me difícil imaginar a possibilidade da diferença e do pluralismo dentro desse explícito eurocentrismo.
Assim, por um lado, a desconstrução das identidades políticas fica ainda um projeto aberto. Por outro lado, é provável que a desconstrução das políticas da identidade crie a possibilidade da democracia. A filosofia e a cultura quase sempre instauraram a ausência no ser humano, que deveria ser superada na perspectiva do tempo linear; e esse tempo é o tempo do cristianismo, capitalismo, hegelianismo. Desconstruindo a metafísica da presença, Derrida articula o vazio que nunca deve ser preenchido. Preencher o vazio significaria o estabelecimento da nova identidade. Criticar a identidade, afirmando a diferença significa que o lugar da política e do direito tem de ficar vazio para não criar as novas formas da ideologia. Ou, com as palavras de Claude Lefort, “a soberania popular junta-se à imagem de um lugar vazio, impossível de ser ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não poderiam pretender se apropriar dela”. Nesse vazio político, Chantal Mouffe vai entender o sentido do paradoxo democrático. A democracia cria o paradoxo, porque a realização dela seria já a sua desintegração.
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Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/a-condicao-humana-na-modernidade/
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