quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Prisioneiros da ignorância

Resultado de imagem para Ignorância

Dizia Eduardo Galeano que 'a história é um profeta com olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será'. Atribua-se aí, na medida certa, uma dose de relatividade, para evitar que a ciência história caia no positivismo. Ressalvado isto, ela de fato 'tem algo a dizer sobre o futuro', usando aqui a expressão de Eric Hobsbawm. E, assim, nem sempre é portadora de boas notícias. Salvo uma inversão de marcha, é o caso do tempo presente, desse tempo que estamos a viver. Já não são poucos os que, em decorrência dos desdobramentos no Médio Oriente, vislumbram uma nova guerra total entre as superpotências, a III Guerra Mundial. De outra parte, pelo Brasil, vai-se dando a contribuição para o clima de beligerância, com discursos, por exemplo, próprios do período da 'guerra fria' (a propósito, recentemente, uma conhecida advogada chegou a pronunciar o disparate segundo o qual a 'Rússia está para invadir o Brasil a partir da Venezuela'). Tempos de intolerância e de ódio, mas eis o contraditório reverso da medalha: muitos não conhecem o objeto da sua intolerância e do seu ódio. Na verdade, são prisioneiros da ignorância. Sem desconsiderar que há quem a finja. Pus-me a pensar sobre essas questões ao assistir (novamente) o histórico filme 'Ó Jerusalém'. Por quê? As razões estão aí abaixo. 

Resultado de imagem para ó jerusalém filme


Por Sérgio Vaz
(http://50anosdefilmes.com.br/2012/o-jerusalem-o-jerusalem/)

Ó Jerusalém é um filme raro, singular. Não tanto por suas qualidades especificamente cinematográficas, mas pelo que diz, e como diz. É uma obra extraordinária por causa das idéias, da postura política. Aborda um dos temas mais difíceis que há – a convivência entre árabes e judeus –, retrata o nascimento do Estado de Israel, sem tomar partido de nenhum dos dois lados.
Isso é absolutamente notável, impressionante.
Ao longo de todo o filme, não fica claro se ele foi feito por um israelense ou por um árabe.
Ó Jerusalém consegue o virtualmente impossível: mostra as razões de cada um dos lados, os argumentos de uns e de outros, as atrocidades cometidas por judeus e por árabes.
Ao fim e ao cabo, o diretor Élie Chouraqui e sua equipe demonstram que a arte consegue proezas de que a humanidade, na vida real, não é capaz.
Élie Chouraqui – vejo agora, depois de ter visto o filme – é francês de Paris; tem a minha idade, nasceu em 1950. É judeu.
Seu filme é uma co-produção França-Inglaterra-Itália-Grécia-Estados Unidos-Israel. Os créditos finais mostram uma maravilhosa, esplêndida babel, uma assembléia das Nações Unidas – entre os atores e as equipes técnicas, há gente das mais diversas nacionalidades.
Não sei o que podem ter achado de Ó Jerusalém os israelenses, os judeus do mundo inteiro e os árabes. É bem possível que muitos árabes tenham achado o filme pró-Israel, e que muitos judeus o tenham tachado de pró-árabes.
Não é nem uma coisa nem outra, na minha opinião. É um filme feito por gente believer, que acredita na possibilidade de que, um dia, possa haver paz.
Os incréus, cínicos de todas as categorias, poderiam dizer que é um filme ingênuo.
As primeiras imagens, após os créditos iniciais, são cenas documentais, de cinejornalismo, em preto-e-branco, é claro, de comemorações pelo fim da Segunda Guerra Mundial.
Em seguida vemos um grupo de jovens, estreando o carro usado comprado por um deles. Um letreiro informa: Nova York, 17 de novembro de 1946.
Letreiros assim aparecerão ao longo de toda a narrativa, identificando o local e a data do que se mostra. Facilita a compreensão do espectador, e ao mesmo tempo dá um tom de veracidade à narrativa. Veremos depois que Ó Jerusalém é assim como um romance histórico: usa fatos e personalidades reais misturados aos personagens fictícios criados pelo diretor Élie Chouraqui e seu co-roteirista Didier Le Pêcheur.
No grupo que estréia o carro comprado há pouco, numa rua de Nova York, há uma garota e dois jovens, aí na faixa de uns 25 anos. Os dois são judeus nova-iorquinos: Bobby (JJ Feild) e Jacob (Mel Raido). O carro de Jacob custa a pegar – e, quando pega, o rádio começa a dar informações sobre um atentado terrorista que acabara que acontecer em Jerusalém. Num ataque do Irgun, o grupo terrorista de extrema direita judeu, contra um hotel ocupado por oficiais britânicos, 90 pessoas haviam morrido.
Mas logo o motor do carro pára novamente, o rádio silencia, e Bobby sai correndo em direção a um clube ali perto para ouvir mais notícias sobre a atentado. Ao sair de um beco e entrar numa rua movimentada, é atropelado por um carro. Não se machuca, e levanta querendo brigar com o motorista, que havia descido do seu carro para atender o outro. Discutem um pouco, acabam entrando juntos no carro, apresentam-se – o motorista, Saïd (Saïd Taghmaoui), é árabe, criado em Jerusalém; está há pouco tempo nos Estados Unidos.
Ficam instantaneamente amigos, o árabe Saïd e o judeu Bobby (os dois na foto abaixo).
Veremos que Bobby é um pacifista. Não tem ódio dos árabes – e Saïd é como ele, não tem ódio dos judeus. Ao contrário: ele e sua família sempre se deram bem com os vizinhos judeus em Jerusalém.
Jacob é bem mais rigoroso do que o amigo Bobby. É dele, antes de Bobby, a idéia de ir para a Palestina, para, em caso de conflito, combater contra os árabes.
Acabarão embarcando num navio os três, mais algumas amigas, rumo a Tel Aviv.
Era para a ONU criar dois Estados independentes; criou um só
Um locutor de cinejornal da época ajuda o espectador a compreender a situação em 1947: por cinco séculos, a antiga Palestina havia sido dominada pelo império turco-otomano. Nos últimos 26 anos, era um protetorado britânico: militares britânicos mantinham a ordem no território então ocupado por uma grande maioria árabe e uma minoria judia.
Em novembro de 1947, as Nações Unidas começam a discutir a criação de dois Estados independentes na então Palestina – um árabe, e um judeu.
Em 31 de janeiro de 1948, a assembléia geral da ONU aprova a criação do Estado judeu.
O sentimento de antagonismo, de ódio entre judeus e árabes vai crescendo a cada momento. Os ingleses têm consciência de que, quando deixarem o lugar, haverá uma guerra inevitável.
Quando Bobby e Saïd chegam juntos a Jerusalém, são recebidos em festa pela família do árabe. De um terraço na casa da família, os dois contemplam a cidade. Saïd mostra para o nova-iorquino o local onde Cristo foi crucificado, o local em que o profeta Maomé se elevou para o céu, o muro de lamentações construído pelo rei Salomão – as três grandes religiões do mundo ocidental têm raízes naquela cidade. O árabe diz para o judeu:
– “Se Deus não está aqui, Bobby, então não está em lugar algum.”
E então pergunta se o amigo sabe o significado da palavra Jerusalém em hebraico. Cidade da paz.
O filme mostra a cidade da paz cada vez mais mergulhada na guerra. Bobby se aproximará de líderes judeus, inclusive o maior de todos, David Ben Gurion (interpretado pelo grande ator inglês Sir Ian Holm, com uma notável semelhança física com o fundador do Estado de Israel). E Saïd também acabará se tornando uma peça importante do lado árabe da guerra.




terça-feira, 8 de novembro de 2016

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Machuca: crepúsculo histórico em Santiago

Resultado de imagem para Machuca, filme

Chile, 1973. Gonzalo Infante e Pedro Machuca são dois garotos de onze que vivem em Santiago em realidades sociais diferentes: o primeiro num 'bairro nobre' e o segundo num 'poblado' degradado (favela) instalado a pouca distancia da casa de Gonzalo. As vidas de ambos se cruzam quando um colégio religioso coloca em funcionamento um programa de integração social, conforme o espírito que o país vivia na época. Desfazer os muros invisíveis da desigualdade que separam mundos. Era o Chile de Salvador Allende, de Pablo Neruda. Mas era também o Chile da insuflação fascista, que organizava manifestações, que fez madames descobrirem a cozinha em busca de panelas para bater, a insuflação fascista que - com a colaboração de empresários - boicotava/desorganizava a distribuição de alimentos no país, para que faltasse comida, e a formação de longas filas passasse a ideia de caos. A insuflação que organizava grupos violentos e que tramou com a CIA a instauração de uma das ditaduras mais sanguinárias da América Latina. Esse é o cenário em que se passa o filme Machuca, dirigido por Andrés Wood - fora do padrão da indústria cinematográfica, e então relegado ao ostracismo. Trata de fatos e sinceridade. Quando a lealdade da amizade, aspecto significativo em duas crianças, coloca-se acima dos muros da desigualdade social e das diferenças políticas. De resto, o filme retrata o ambiente em Santiago na época: as manifestações, os ecos pelo governo da Unidade Popular ('Allende, a Pátria não se rende') e, por fim, o bombardeamento do Palácio Presidencial, tendo-se a morte do Presidente Salvador Allende. O que veio a seguir já sabemos, mas talvez um episódio simbolize de forma lapidar o caráter da ditadura de Pinochet: o assassinato do professor, poeta e cantor Victor Jara, que, antes da morte, teve as suas mãos esmagadas a coronhadas/decepadas, como demonstração de que, no país, não mais se aceitaria que violão fosse tocado com músicas críticas. Machuca aborda o crepúsculo de um período histórico chileno, mas é um filme para toda a América Latina. Os nossos 'Cem Anos de Solidão', conforme foram ditos por Gabriel García Márquez. O filme é ainda uma merecida homenagem à memória do padre e educador Gerardo Whelan, diretor da escola retratada na película (Saint George), onde efetivamente se levava a cabo um projeto de integração social entre classes e grupos diversos. e que foi brutalmente escorraçado do educandário pela ditadura pinochetista. Sobreviveu a sua obra, pressupondo uma 'pedagogia do trabalho'. Aí abaixo um breve realce de uma cena emblemática.


sábado, 5 de novembro de 2016

O espelho interior de si: conhecimento, verdade e felicidade

Agostinho de Hipona (ou, como geralmente se prefere, Santo Agostinho) é muito mais do que um pensador de um dogma religioso. Registra a história do pensamento ocidental que, em sua época, uma corrente cética desaguou na escola filosófica 'Nova Academia', fundada por Arcesilau (315-240 a.C). Agostinho a teve intensamente em apreciação, com a obra 'Contra os Acadêmicos'.  Um tema fortemente presente aí é o par verdade e felicidade. Com a mediação do conhecimento. Não parece, contudo, que o conceito de verdade seja realçado como uma espécie de "reflexo mecânico de correspondência".  De algum modo, como interpretação, o texto desperta a lembrança segundo a qual, originalmente, no ocidente, a ideia de verdade decorre de um tripé: do grego aletheia (o visto), do latim veritas (o narrado), do hebraico emunah (confiança). A hermenêutica feita desse tripé, ancorando-se na noção hebraica, pode colocar de parte o entendimento de verdade como "reflexo mecânico de correspondência". A verdade pode surgir então como convicção-satisfação no que é genuíno, confiança no sentido, que não necessariamente precisa revelado para ser verdadeiro (no sentido de verificação empírica; algo, aliás, nesse contexto, de exequibilidade "não convencional"). Este é o caso dos sentimentos; a sua verdade é interna (a quem sente), e desconsiderá-los significa tentar falseá-los. Pois bem, a Editora Vozes colocou na praça um livro dedicado às reflexões de Agostinho de Hipona contra os referidos acadêmicos. Vai aí abaixo uma breve reprodução de uma passagem dedicada ao tema da verdade, da felicidade e do conhecimento - passagem que é extraída de um debate em que ele participa. 

Resultado de imagem para Contra os acadêmicos

“O que propões, pois? Ora, para retornarmos ao problema, disse eu, te parece que se possa viver feliz não tendo encontrado o verdadeiro, conquanto se o busque? Vou repetir a opinião que proferi antes: De modo algum me parece ser assim. E quanto a vós, disse eu, qual é a vossa opinião? Então Licêncio tomou a palavra: Certamente que sim, disse ele, pois nossos grades antepassados, que consideramos como sábios e felizes, buscavam somente aquilo que é verdadeiro e viveram bem e de modo feliz. Agradeço, ademais, acrescentou ele, que me constituístes junto com Alípio, do qual, tenho de admitir, já começava a nutrir inveja. Ora, disse eu, visto que um de vós me parece defender que a vida feliz consiste apenas na investigação da verdade e o outro defende que essa não pode ser alcançada sem que se encontre a verdade, e Navígio, um pouco antes, deu sinais de querer aderir ao teu partido, espero com muita curiosidade para ver qual de vossas opiniões sereis capazes de defender. Trata-se de uma questão de grande monta, e digna da mais alta e diligente discussão. Se é uma questão de grande monta, disse Licêncio, tratar da mesma requer grandes homens. Não queiras encontrar, retruquei, especialmente nessa casa de campo, alguém que será difícil encontrar por entre todas as nações. Antes te peço que expliques a razão daquilo que proferistes, não temerariamente segundo me parece, e por qual razão opinas desse modo, visto que questões grandiosas, quando são discutidas e investigadas pelos pequenos, costumam transformar a estes também em grandiosos.”

(AGOSTINHO, S. Contra os acadêmicos. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p.18).

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

As flores encontradas em um livro


Normalopatas

O austríaco Robert Musil, em seu romance filosófico inacabado, falava sobre o 'homem sem qualidade'.  Entre nós, na segunda década do século passado, com Macunaíma, Mário de Andrade colocou em realce o 'herói sem caráter'. A situação que o Brasil vive hoje encontra representação nessa figuração literária, mas está, gravemente, para além dela. Um dos 'heróis do impeachment' (comandante principal na Câmara) agora se encontra preso por corrupção, enquanto os demais comandantes da derrubada da ex-Presidente procuram fugir das investigações se encastelando em cargos no governo - já a Presidente deposta, contra quem não se encontrou benefício pessoal na corrupção, vive submetida ao ostracismo numa vida modesta, conforme noticia a Folha de São Paulo (jornal insuspeito de petismo): Após impeachment, Dilma leva vida reservada no RS; veja entrevista. Tempos de 'heróis sem caráter'. Ou 'tempo dos normalopatas'. O texto aí abaixo é primoroso ao aportar conhecimentos entre o social e o psíquico, falando de dor, sofrimento e interdição da felicidade, para assinalar a tragic shadow que ameaça cobrir o Brasil. 

dunker-blog-normalopata

Por Christian Ingo Lenz Dunker (Psicanalista, Professor do Instituto de Psicologia da USP, Fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise dessa universidade) 

Muito frequentemente confunde-se o neoliberalismo com o conjunto de práticas que definem o capitalismo contemporâneo em sua capilaridade globalizada. Isso dificulta o trabalho de circunstanciar críticas e analisar problemas locais, tornando as objeções ao neoliberalismo o enfretamento de um inimigo mais poderoso do que ele realmente é. O problema inverso também deveria ser evitado: subdimensionar o neoliberalismo, apenas como uma teoria econômica, nascida nos anos 1930, expressa na obra de autores como Walter Lippmann, Von Mises e Hayek, renovada pela Escola de Chicago (Stiegler, Friedman), nos anos 1960 e adaptada por governos em forma de políticas de austeridade, privatização e monetarização, a partir dos anos 1980.
Nesta zona intermediária, entre uma etapa difusa do capitalismo e uma teoria econômica bem definida, propomos que o neoliberalismo é uma forma de vida. Enquanto tal, ele compreende uma gramática de reconhecimento e uma política para o sofrimento. Enquanto liberais clássicos, descendentes de Jeremy Bentham e Stuart Mill, encaravam o sofrimento, seja do trabalhador, seja do cidadão, como um problema que atrapalha a produção e cria obstáculos para o desenvolvimento e para o cálculo da felicidade, como máximo de prazer com mínimo de desprazer, a forma de vida neoliberal descobriu que se pode extrair mais produção e mais gozo do próprio sofrimento. Encontrar o melhor aproveitamento do sofrimento no trabalho, extraindo o máximo de cansaço com o mínimo de risco jurídico, o máximo de engajamento no projeto com o mínimo de fidelização recíproca da empresa, torna-se regra espontânea de uma vida na qual cada relação deve apresentar um balanço. Desta forma não existem zonas protegidas “fora do mercado”, e quem é contra isso é contra o neoliberalismo, e quem é contra o neoliberalismo é a favor do Estado. Tudo é mercado. Educação é investimento. Saúde é segurança. Relações interpessoais são networking. Imagem é marketing pessoal. Cultura é entretenimento. Pessoa é o empreendedor de si mesmo.
Nos anos 1990, quando o neoliberalismo passava por amplas e efetivas implementações ao longo do mundo, ele estava marcado por práticas como o downsizing, a redução de custos e reengenharia e flexibilização de funções. A deslocalização da produção incide de tal forma que a competição deveria ser deslocada para o interior da própria empresa, cada setor tendo que se justificar pelo seu acréscimo ou déficit de valor agregado. Ao mesmo tempo cada um deve se ocupar individualmente de aumentar sua produtividade e garantir sua empregabilidade. Foi esta nova lei que culminou no escândalo imobiliário, dos bônus e maquiagens de balanços. Curiosamente, neste mesmo período emergiu também um novo quadro psicopatológico: as personalidades limítrofes ou borderlines. Descritas no fim dos anos 1930, contemporâneas da invenção teórica do neoliberalismo, tais personalidades estão marcadas por uma espécie de contradição fundamental entre mecanismos esquizoides e funcionamentos narcísicos, de tal forma que elas obedecem à lei desobedecendo-a. Nos anos 1960, havia um modelo de resistência que estava baseado na transgressão, da oposição a lei constituída. Todavia, há outras maneiras de resistências, por exemplo, pelo exagero da obediência à lei, pelo deslocamento crítico de seu contexto de aplicação, pela superidentificação com seus ideais.
Interessei-me por esta deriva histórica das formas de sofrimento em meu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, recentemente indicado aos finalistas do Prêmio Jabuti 2016, e que vem tendo uma surpreendente recepção na área de arquitetura e urbanismo, bem como nas artes plásticas, na literatura e no teatro. Isso sugere que talvez tenham sido as artes e a política, antes mesmo das ciências psicológicas, que captaram esta deriva e transformação em nossos modos compulsórios de sofrer e de exprimir nosso sofrimento – assim como é delas que provém novas formas e linguagens para novas maneiras de sofrer.
Todos devemos nos preocupar em sermos reconhecidos pelos outros e nos tornamos cientes de que nosso valor depende de como os outros nos veem. Procurar mais reconhecimento torna-se assim um objetivo geral. É o que Lacan, Kojéve e Hegel chamavam de luta pelo reconhecimento ou luta por prestígio. Para uma personalidade bordeline, este cultivo da insatisfação com o que o outro te oferece, em termos de amor e desejabilidade é extrapolado ao extremo. Insaciável, ele vive atormentado pelo vazio e pela iminência de ser abandonado pelo outro. Curiosamente, quando obtém sinais de que sua demanda está sendo respondida, isso desencadeia reações agressivas e de ódio, incompreensíveis para o outro. Talvez isso ocorra porque ao agirmos assim estamos sancionando a lei contra a qual o borderline se revolta e aceita exageradamente.
Outro exemplo. Para a forma de vida liberal, todos nós podemos trabalhar muito esperando grandes momentos de férias e prazer. Para o borderline neoliberal, esta alternância intermitente é um problema. Por que não trabalhar divertindo-se, e divertir-se trabalhando? Por que manter esta linha demarcatória tão rígida? Isso confere com sua imagem diagnóstica como sujeito frequentemente envolvido em conflito com a lei, seja pelo abuso de drogas, seja por sexo ou consumo errático que o levam a dívidas.
Borderline é um nome clinicamente péssimo. Ele não está entre a neurose e a psicose em uma situação intermediária. Contudo, é um significante perfeito para designar o sofrimento padrão daquele momento neoliberal. Alguém que desafia limites, mas também que não se prende a territórios fixos, compromissos identitários e funções definidas. Esta flutuação livre, leve e solta é apenas o exagero da normalopatia de sua época. Quando borderline começou a rimar demais com os que cruzam fronteiras (por exemplo: terroristas, imigrantes, refugiados e demais subjetividades indeterminadas), o quadro desapareceu do interesse teórico. Mas aqui está o ponto crucial. Ele desapareceu porque de certa maneira todos nós nos tornamos borderlines, esta modalidade de sofrimento integrou-se ao comum da vida como um novo paradigma de normalopatia.
Este não é um processo novo, mas uma espécie de sincronia repetitiva entre teorias econômicas e sociais e modalidades preferenciais de sofrimento. As neuroses, e sua problemática com a lei e com a paternidade, foram um paradigma clínico até os anos 1950, com sua clara e definida linha que separava a desobediência e obediência à borderline paterna. Algo análogo ocorre com as personalidades narcísicas, com seus sentimentos de esvaziamento, fragmentação e inautenticidade durante os anos 1970, dando origem ao paradigma das donas de casas ansiosas, dependentes e infantilizadas, consumidoras contumazes e crônicas de Valium, sofrendo dentro da borderline da adequação feminina. É porque tornamo-nos “todos-neuróticos” que o sofrimento histérico (paradigma da neurose) tornou-se invisível. É também porque tornamo-nos “todos-narcísicos” que o sofrimento com a imagem de si tornou-se imperceptível. A partir de então, a normalopatia exige a recusa da dignidade do sofrimento daqueles que não suficientemente ou são exageradamente neuróticos ou narcísicos.
Entre os anos 2000 e 2010 emergem duas novas normalopatias neoliberais: a depressão de um lado e as anorexias de outro. A primeira representa o colapso na produção, a segunda no consumo. Os antigos devotos da crença na produtividade trouxeram visibilidade ao fato de que nem todos poderiam entrar no novo sistema reduzido e flexível de produção. O que fazer com os excluídos senão atribuir-lhes uma dificuldade “individual”? A ascensão da salvação pelo consumo torna muito mais visível e problemático alguém que se recusa a comer (ou come exageradamente e vomita como os bulímicos). A ascensão da adequação à produção torna explícito demais aquele que recusa-se a produzir, como o depressivo (ou daquele que acumula ou consome demasiadamente, como o adicto e o acumulador). Notemos que nesse ponto o neoliberalismo também sofreu uma pequena modulação, com a entrada dos discursos sobre a emoção e o talento, com as práticas de coaching e com o marketing orientado para a experiência. Com a assimilação dietética e higienista de novos regramentos na borderline entre saúde e doença, o quadro tende a declinar. Ademais, o empuxo de produção e desempenho vem sendo suplementado por ingestão de substâncias, legais e ilegais, em forma de doping tolerado, senão estimulado em nome de resultados. Afinal por que contentar-se com seu filho que tira 6.0 em História, se ele poderia tirar 7.5 tomando metilfenidato?
Depois dos frankensteins, esquizoides errantes sem fronteiras, e dos fantasmas alienados que vagam da pressão, descompressão e depressão, chegamos finalmente aos zumbis que hoje se tornaram nossa mais próxima normalopatia. A lição completa pode ser encontrada na peça Os Normalopatas”, dirigida por Dan Nakagawa, com a Companhia Átropical, em cartaz na Estação Satyros até o fim de novembro. Trata-se da epopeia de um zumbi brasileiro em sua peregrinação rumo à recuperação da palavra. Tudo se passa entre o insuportável fluxo de palavras vazias e regulamentos desencarnados, na família, na escola, na política até a invenção de uma palavra que supere os atos de reação e oposição monomaníacas. Tais reações foram estudadas pelo grupo SP Teatro, quanto à cultura do ódio como efeito colateral da vida em forma de condomínio.
Zumbis são gerados por um desrespeito ao trato dos viventes, pela suspensão da relação de continuidade simbólica entre passado e futuro, pela violação da borderline entre vivos e mortos. É a normalopatia da vingança dos Brexits (pela qual a terceira idade, rural e conservadora percebe que sair da União Europeia lhe é vantajosa). É a normalopatia das previdências abreviadas, dos imigrantes e refugiados, deixados boiando no Mediterrâneo, ou da devastação causada pela construção da hidroelétrica de Belo Monte. É normalopatia que sabe perfeitamente que certas coisas são erradas, injustas ou falsas, mas… e daí? É contando com isso que um juiz em Brasília pode autorizar o uso da tortura (corte de água, comida e comunicação, bem como uso de aparelhos sonoros em alto volume) contra estudantes que ocupam escolas de Taguatinga. No fundo, deslocamos o poder de quem faz as leis, para uma borderline móvel de quem as aplica e manipula, ao sabor da opinião pública, remetendo os descontentes ao estado de zumbis cuja palavra é livre, mas sem consequência.
Esta nova normalopatia emerge no quadro de substituição da cultura do narcisismo pela cultura da indiferença. Um zumbi não pode ser propriamente morto, ele perdeu seu lugar simbólico de descanso em sua tumba. Ele só pode ser eliminado com um tiro na cabeça, capaz de interromper sua monomania de devorar cérebros dos quais se alimenta. Zumbis não falam, não se agrupam, apenas repetem sua própria inanidade. Segundo os haitianos que participam de outro grupo emergente, que é o Teatro de Narradores, capitaneado por José Fernando de Azevedo, a arte de fabricar Zumbis é o que responde ao enigma de porque alguns são ricos e outros pobres. Os ricos são ricos porque sabem fabricar zumbis, e os zumbis são aqueles que trabalham sem saber que são zumbis, para os seus senhores. Talvez um zumbi seja feito quando alguém se apropria de um corpo morto, particularmente de alguém que morre sozinho.

---------------------------------

Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2016/11/03/o-neoliberalismo-e-seus-normalopatas/

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

An Die Freude



A epidemia de más condutas na ciência

O novo número da revista lusitana 'O Comuneiro' traz um instigante ensaio sobre as 'más condutas na ciência', de autoria do Professor Marcos Barbosa de Oliveira (Universidade de São Paulo -USP). Vem bem a calhar no atual contexto brasileiro, em que o moralismo de determinados segmentos universitários - sempre a apontaram o dedo - não resiste à meia hora de análise de suas próprias práticas (indo do modo como utilizam o patrimônio público até ao cumprimento das responsabilidades acadêmicas). Vale a leitura, aqui: A epidemia de más condutas na ciência: O fracasso do tratamento moralizador. Também participo da presente edição da revista com um ensaio sobre a conjuntura que estamos a viver na América do Sul, relembrando a solidão sublinhada por Gabriel García Márquez: Permanente solidão: interesses ocultos, jogos de poder e a América do Sul no centro da disputa geopolítica global.  

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Por quem os sinos dobram? O dia dos vivos

Estamos na altura do Dia de Finados. Por estranho que pareça, às vezes, os mortos (a sua memória) são a única companhia que resta aos vivos. O tema morte, na cultura ocidental, é bastante evitado. Talvez, por isso, tantos e tantos andem perdidos sem entender o(s) sentido(s) da vida. Dizia o filósofo (e musicólogo) francês Vladimir Jankélévitch que 'a morte vital é o que torna apreciável a vida mortal'. Fazê-la valer a pena, sem pequenez de espírito. Humanos, todos, pequenos "grãos" a dissolverem-se na natureza. Nessa matéria, tenho sempre presente as introspecções hegelianas, conforme já escrevi por aqui a propósito do Crepúsculo da existência.  Que se tenha discernimento para se perceber o seguinte: O Dia de Finados é, na verdade, o dia dos vivos. Para a pergunta de Hemingway, a resposta: os sinos dobram por nós. O historiador Leandro Karnal trata disso no texto aí abaixo. 

ampulheta-tempo

Por Leandro Karnal 
(Historiador, UNICAMP)

A morte é poderosa. Ela também assusta. Em primeiro lugar, pelo óbvio: ela é universal e inevitável. É o conceito final e, por isso mesmo, evitamos seu contato até no nome. Dizer Dia de Finados já parece uma mistura de português antigo e eufemismo. Os mexicanos vão direto ao ponto: Día de los Muertos.
Em segundo lugar, a morte produz arte. Duas das sete maravilhas do mundo antigo são monumentos funerários: as pirâmides do Egito e o túmulo do rei Mausolo em Halicarnasso, que deu origem ao nome mausoléu. Ainda que democrática e igualitária em si, a morte produz desigualdades estéticas e de poder.
A Capela dos Ossos, em Évora (Portugal), choca a sensibilidade contemporânea, mas foi pensada para ser uma lembrança religiosa e moral. "Nós, ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos."
Em terceiro lugar, a morte está associada à fé. Grande parte das religiões orbita em torno do nosso fim ou do anseio de imortalidade. Na hora extrema, jainistas da Índia podem optar por uma morte pública e quase teatral. Para católicos, são José (padroeiro da boa morte) se oferece à alma devota como guia seguro.
Todo o cristianismo foi fundado em torno de dois conceitos ligados à morte: Jesus morreu pela humanidade e, ressuscitando, venceu a morte. Judeus consideram uma ação positiva pertencer à Chevra Kadisha (sociedade sagrada), que prepara o corpo e ampara a família. Espíritas preferem o verbo desencarnar. Islâmicos insistem na igualdade de todos em túmulos sem ornamentos e, por vezes, até sem nome.
Por fim, a morte é uma grande inquietação filosófica. Albert Camus pensou na morte como o "momento absurdo" na sua análise do mito de Sísifo. O texto foi escrito em pleno horror da Segunda Guerra.
A morte do filósofo Sócrates é retratada pelo pintor Jacques-Louis David com a dignidade neoclássica do momento que deu significado para toda uma vida. Para o filósofo, a aceitação tranquila da morte era o sinal de que havia sido coerente. Para nós que somos menos do que Sócrates, o extremo da pobreza é não ter "onde cair morto". Morrer é o símbolo de toda a vida.
O conceito, porém, continua incômodo. Nos meios urbanos ocidentais, a morte foi afastada da vista pública. Não se vela mais em casa o corpo de entes queridos. Há uma tanatofobia, um horror à morte, entre nós. A morte tornou-se mais asséptica. Foi isolada em hospitais.
Quando ocorre em acidente público, corpos devem ser imediatamente cobertos. A morte incomoda. Basta começar a tocar nela e todos sentem um vago mal-estar. Quase todos preferem trocar de assunto.
Alguns de nós foram criados em hábitos mais antigos, como visitar cemitérios no Dia de Finados. Os jovens de hoje raramente o fazem. Os jovens não querem ir a enterros. Estão longe da morte e manifestam pouca preocupação com ela.
Nós, mais velhos, também não gostaríamos de ir. A força da obrigação e do hábito nos arrastam. Talvez por isto tenhamos raiva da frase clássica de um adolescente ao ser convidado a um velório: "Não gosto". Como também não gostamos, nos irritamos com a frase que desnuda, sem culpa, nossa resistência.
Por que vamos? Em parte porque somos menos livres do que os mais jovens. Talvez porque sejamos mais solidários. Mas, em parte também, porque temos uma ideia da finitude e da dor do luto. Ir a túmulos é um rito de religação. Visitamos mortos por causa de nós, vivos. Nós, os ossos que lá estaremos, ainda temos carne e sangue e ainda choramos.
O Dia de Finados é o dia dos vivos, da fila que continua andando, das duas questões que nos abalam: o quanto sinto falta de quem se foi e o quanto temo ir. O vazio da morte está impactando quem vive.
Os sinos dobram por nós, como o título que tomei emprestado a Hemingway. Ouvi-los é estar vivo. Quando eu parar de escutá-los isso não terá mais importância. O Dia de Finados é nosso, dos que ainda podem ler este texto. Repousemos em paz.

---------------------------------
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/11/1700810-por-quem-os-sinos-dobram.shtml