Por César Benjamin
A economia internacional é
profundamente assimétrica, a começar pelo padrão monetário em vigor: desde a
década de 1970, um Estado nacional emite uma moeda fiduciária em torno da qual
o sistema-mundo gravita, sem que existam instituições multilaterais que regulem
e disciplinem essa emissão.
Tal
anomalia tem gerado tensões e instabilidades permanentes, pois o espaço de
soberania de um único Estado passou a ser, potencialmente, todo o planeta.
Ocupando uma posição privilegiada nas relações com o mundo, os Estados Unidos
acostumaram-se a viver muito acima dos seus próprios recursos.
Com
o tempo, esse arranjo monetário e financeiro incrementou o poder de agentes
econômicos que vivem desconectados da economia real. Criou-se um capitalismo administrador
de dinheiro. À frente do sistema não mais estão capitães de indústria, mas
gestores de ativos líquidos, que vivem imersos num ambiente de competição
predatória.
A
composição das carteiras que administram se altera diariamente. Apostam em tudo
—no valor relativo das moedas, nos preços das commodities, nas ações em Bolsa,
em pequenas variações das taxas de juros—, sempre operando em mercados futuros,
inexistentes.
Criam
sem parar novos produtos financeiros, cada vez mais complexos e opacos. Seus
negócios se conectam em paraísos fiscais. Realizam transações que movimentam
bilhões, mas que são concluídas sem que haja entrega física de nenhum bem.
Fazem muitas contas, que não têm nada a ver com o cálculo econômico, pois vivem
em um mundo de soma zero.
Mesmo
assim, têm lucros extraordinários. No Brasil, são conhecidos pelo eufemismo de
"investidores internacionais".
A
imposição ao mundo dessa forma de gestão da riqueza ganhou um nome de fantasia:
globalização. Exigiu a construção de um espaço financeiro homogêneo para além das fronteiras
nacionais. A finança tornou-se global, mas a moeda dominante
continuou nacional, o dólar.
Os
países que se renderam a esse sistema volátil, sem construir salvaguardas,
precisam proteger-se acumulando reservas, ou seja, esterilizando seus recursos
em títulos do Tesouro norte-americano.
Financiados
assim pelo mundo, puderam os Estados Unidos nas últimas décadas, ao mesmo
tempo, manter déficits estratosféricos, generalizar endividamentos públicos e
privados, fazer guerras, cortar impostos, ampliar o crédito e aumentar o
consumo, tudo isso com um desempenho econômico medíocre, o mais baixo crescimento
desde a Segunda Guerra Mundial.
Essa
incrível combinação só é possível porque a dívida "externa" do país e
os preços dos produtos que importa estão expressos na moeda que ele mesmo
fabrica.
INOVAÇÃO
A
segunda assimetria importante está fincada no coração dos sistemas produtivos.
É o controle dos processos de inovação. Pois a conquista de vantagens sólidas
nas relações de intercâmbio baseia-se na ocupação de posições que dão acesso a
uma parte maior do excedente produzido no sistema-mundo.
Para
manter-se na frente, um país deve conseguir estruturar sua economia em torno de
atividades que gerem um ganho diferenciado, acima da média. Tais atividades,
por definição, são as que não permitem grande concorrência.
Como
essas atividades se alteram no tempo, a conquista e a manutenção de uma posição
de vanguarda não estão ligadas, no longo prazo, ao controle de um setor, uma
técnica ou uma mercadoria, mas sim à liderança do processo de inovação, ou
seja, à capacidade permanente de criar novas combinações produtivas, novos
processos e novos produtos.
Na esfera da economia real,
o centro do sistema internacional são os poucos espaços nacionais e as poucas
grandes empresas que concentram em si a dinâmica da inovação.
Eles
capturam sucessivamente as posições de comando justamente porque conseguem
recriá-las, obtendo benefícios extras na divisão internacional do trabalho. No
outro polo, a dependência também se repõe dinamicamente.
O
avanço da globalização impactou centro e periferia de forma muito diferenciada.
Nos países desenvolvidos, o espaço da economia e da técnica, de um lado, e o
espaço das decisões políticas, de outro, permanecem estreitamente ligados pelo
vínculo entre grandes empresas e Estados fortes.
Nos
demais, esses espaços se dissociam pela dispersão geográfica das cadeias
produtivas, feita na presença de Estados fracos e sem corporações estratégicas
de base nacional.
O
Brasil aprofundou sua condição de país periférico e de economia reflexa —uma
economia que apenas responde e se adapta aos ciclos do sistema internacional—
ao optar por se inserir no processo de globalização pelos fluxos financeiros.
Perdemos
a capacidade de controlar nosso processo de desenvolvimento, pois o espaço de
manobra dos capitais errantes ultrapassa amplamente o da sociedade nacional,
com a qual mantêm vínculos tênues, ligados a oportunidades específicas de
realizar bons negócios.
A amplitude desse processo
tem graves consequências para a dinâmica de longo prazo da economia. A primeira
é a fraca capacidade de a sociedade disciplinar o impulso de acumulação de
capital, subordinando-o a objetivos maiores, como a ampliação da cidadania e a
sustentação do desenvolvimento.
A
segunda é a radicalização da dinâmica reflexa, marcada por ajustes passivos aos
ciclos internacionais. Nesse contexto, o ciclo da acumulação capitalista passa
a conter uma nova exigência: generaliza-se a demanda de que, em algum momento,
os lucros sejam realizáveis em moeda estrangeira, cuja oferta é instável.
Decorre
daí a tendência a surtos de crescimento também instável, sujeitos a
interrupções bruscas ou mesmo reversões, que nos impedem de sustentar uma
trajetória de crescimento estável e robusto.
Uma
incerteza exacerbada e um desenvolvimento intrinsecamente instável fazem com
que o capital potencialize sua natureza especulativa e passe a exigir duas
coisas: alta rentabilidade e enorme certeza no curto prazo.
A
alta rentabilidade é a contrapartida exigida para que, em um sistema aberto e
desregulamentado, a riqueza líquida aceite trocar a moeda melhor (o dólar) pela
pior (o real), ou então —o que dá no mesmo— aceite não realizar o movimento
inverso.
Isso
se obtém por meio de juros reais suficientemente atrativos, que sejam um
múltiplo da taxa básica paga no sistema internacional aos ativos denominados em
dólar, o que penaliza permanentemente a atividade produtiva. A enorme certeza
no curto prazo é a contrapartida exigida diante da incerteza estrutural, de
longo prazo, que ronda a nossa economia.
IMPASSE
A
sociedade brasileira precisa decidir se continuará aceitando a condição de
economia reflexa, buscando, em cada momento, estratégias oportunistas para
extrair dessa condição algumas vantagens residuais, ou se deseja constituir um
projeto próprio, que dê ao país capacidade decisória suficiente para dirigir o
próprio destino, com uma inserção soberana no sistema internacional.
Sucessivos
governos brasileiros vêm adotando a primeira opção, de adaptação subalterna. A
história não recomenda esse caminho, que parece o mais fácil em cada momento,
mas repõe indefinidamente dificuldades e impasses estruturais.
Grandes
países periféricos, como os Estados Unidos do século 19 e a China do
século 20, já passaram por isso, cada um ao seu jeito, e só obtiveram êxito
quando ousaram contrariar o lugar que lhes fora atribuído pela ordem
internacional de seu tempo.
Fizeram
profundas reformas internas. Alteraram seus sistemas de poder. Cometeram erros
e aprenderam com eles. Pagaram o preço associado a essas decisões. Mas, ao fim
e ao cabo, deixaram para trás a condição periférica.
O
desenvolvimento resulta de longo processo de crescimento econômico, com aumento
persistente da produtividade do trabalho, diversificação da estrutura produtiva
e busca de maiores níveis de justiça social. Pressupõe mutações e
descontinuidades que não podem ser produzidas somente pelas trocas mercantis.
Hoje,
o mercado é insubstituível para otimizar o funcionamento do sistema econômico,
mas é incapaz de alterar a composição e a distribuição dos estoques de riqueza.
Além disso, só impulsiona as atividades produtivas que geram rentabilidade para
o setor privado.
Inúmeros
bens e serviços essenciais permanecem subofertados, pois os portadores dessas
necessidades não têm renda monetária suficiente para estimular a produção.
Especialmente
nos países retardatários, o desenvolvimento exige decisões complementares entre
si, que não podem ser tomadas de forma atomizada. É necessário contar com
mecanismos de coordenação supramercado que garantam a prevalência de uma visão
de conjunto e de longo prazo. Isso não se confunde com a estatização da
economia.
O
Estado não precisa nem deve controlar diretamente a maior parte da base
produtiva do país para conduzir reformas estruturais, controlar as variáveis
macroeconômicas decisivas, prover bens e serviços coletivos, explorar ou
regulamentar a exploração de serviços de natureza monopolista, induzir
distribuição de renda e riqueza, estruturar ou apoiar conglomerados
estratégicos de base nacional, estabelecer a forma de uso dos recursos não
renováveis, proteger o meio ambiente, promover o progresso científico e
tecnológico, regular o intercâmbio com o exterior e defender a soberania.
A
sociedade deve combinar diferentes mecanismos de alocação de recursos, entre os
quais o planejamento e o mercado, na forma de uma economia mista.
Diversos
tipos de propriedade e de organização da produção devem existir de forma
múltipla e equilibrada, inclusive a propriedade estatal, pública não estatal e
privada, com generosos espaços para os empreendimentos de porte pequeno e
médio, as cooperativas e todas as expressões da economia solidária.
Nada
disso é novidade. As mais importantes escolas de economia são aquelas que se
esforçam para combinar o impulso à acumulação de capital, de um lado, e os
interesses gerais da sociedade, de outro. Eles não são incompatíveis, mas
tampouco são necessariamente harmônicos. A compatibilização das duas variáveis
é uma construção institucional, condição sine qua non para o desenvolvimento.
NEOLIBERAIS
Isso
se choca com o ponto de vista neoliberal, que tem predominado na luta
ideológica das últimas décadas.
Segundo
essa visão, o mercado deve ser soberano. Ele é visto como espaço de interação
de incontáveis agentes, sem que nenhum deles possa controlar os processos de
troca a ponto de impor os seus próprios fins aos demais. O governo só deve agir
para preservar certas condições macroeconômicas que permitam ao mercado operar.
Fora
do âmbito de cada empresa, essa escola de pensamento é hostil a qualquer ideia
de metas, pois a busca de metas democraticamente definidas exige intervenção
consciente nos processos econômicos e sociais, em nome de um futuro pensado,
desejado, imaginado, concertado pela sociedade, e não produzido pela cega
interação mercantil.
Os
neoliberais apresentam-se como representantes da modernidade e do futuro, mas
sua própria doutrina não lhes permite especificar a qual futuro se referem.
A
alocação de recursos será ótima, dizem, se for produzida pelo livre jogo das
forças de mercado, simplesmente porque esse jogo produz uma alocação qualquer,
desconhecida, considerada ótima por critérios internos à própria teoria que o
glorifica. Se essa alocação denominada ótima produzirá bem-estar, não se sabe.
Se
a imagem do futuro que se deseja atingir permanece indefinida, inexistem pontos
de referência que permitam uma avaliação rigorosa dos processos reais.
Perante
qualquer dificuldade, o pensamento neoliberal aciona uma saída de emergência,
com a incessante repetição de que é preciso esperar mais e insistir mais,
dobrando a aposta, pois —eis aí o verdadeiro problema— o modelo ainda não foi
completamente implantado.
Ora,
sendo o livre mercado apenas um tipo ideal, incapaz de organizar efetivamente o
conjunto da vida social, então, por definição, a implantação do modelo
neoliberal está sempre incompleta.
Cria-se
um discurso que, como os demais discursos ideológicos, externaliza suas
dificuldades. Não depende do confronto com uma realidade que lhe seja exterior,
já que abriga em si condições suficientes para se legitimar em quaisquer
circunstâncias.
Paradoxalmente,
os fracassos o fortalecem, pois ele sempre pode acionar sua fuga para frente:
"Isso e aquilo estão atrapalhando o mercado". O argumento pode ser
repetido ad infinitum, pois sempre haverá inúmeras instituições e práticas,
formais e informais, que atrapalham o mercado.
Como
a vida social não pode ser reduzida a operações de compra e venda, qualquer
sociedade é muito mais complexa do que o mercado, qualquer uma contém, reproduz
e recria inúmeras instâncias não mercantis. Elas existirão sempre e serão
sempre as culpadas.
As
deficiências do projeto neoliberal conduzem seus defensores à inevitável
conclusão de que é preciso aprofundar esse mesmo projeto. A incapacidade de
realizar-se é, ao mesmo tempo, uma fraqueza do modelo, no plano da realidade, e
uma fonte do seu vigor, no plano da ideologia.
Vamos
à questão central: na moderna economia mundial,
os países que enriqueceram acima da média são aqueles que dominaram atividades
que operam com rendimentos crescentes, induzem maior divisão do trabalho, são
mais propensas a absorver mudanças tecnológicas, se inserem em mercados
imperfeitos, com grandes barreiras à entrada de competidores, e constituem fortes
sinergias com atividades afins.
Nunca
a edificação de uma economia desse tipo foi comandada por cegos impulsos
mercantis. Ela sempre resultou de projetos que associavam a busca de riqueza e
poder.
A
indústria foi o setor por excelência em que essas características estiveram
presentes. Mais recentemente, alguns segmentos do setor de serviços de alta
tecnologia passaram a apresentar tais propriedades. Todos, em algum momento,
foram fortemente apoiados por Estados nacionais.
A
outra ponta do espectro foi historicamente ocupada pelos países pobres, cujas
economias, girando em torno da agricultura e da mineração, reproduziram as
características opostas, permanecendo estacionadas em graus menores de
produtividade e de complexidade. É impossível transitar espontaneamente de uma
configuração estrutural a outra, pois ambas se repõem e se reafirmam.
BRASIL
No
século 20, o Brasil ocupou uma posição intermediária, mas vem perdendo posições nas
últimas décadas, sofrendo processos de desindustrialização e reprimarização de
sua pauta exportadora.
Mais
do que nunca, o país precisa voltar a ter um projeto nacional de desenvolvimento,
que não poderá ser uma repetição da experiência anterior. Desenvolvimento, no século 21, é
diferente do que foi em períodos passados. Novas questões estão postas. Uma
delas é o papel do conhecimento.
Há
muito tempo os países mais desenvolvidos abandonaram a busca de competitividade
por meios espúrios, como diminuição de salários e aumento das jornadas de
trabalho —o que, com a chamada reforma trabalhista, estamos implantando aqui.
Ao
contrário, suas economias absorvem cada vez mais trabalho qualificado,
justamente o mais bem remunerado, e deslocam para o exterior os processos
produtivos mecânicos, repetitivos e devoradores de recursos naturais.
As
populações desses países dedicam-se, em proporções crescentes, a atividades de
pesquisa, desenvolvimento, projeto, planejamento, educação e afins. Aumentam as
atividades laborativas dedicadas ao conhecimento e à informação, lato sensu, em
relação àquelas diretamente realizadas sobre a matéria.
Mesmo
sem realizar atividade manual, essa inteligência coletiva adensa as cadeias
produtivas e multiplica a produtividade social do trabalho. As economias desenvolvidas
do século 21 são economias do conhecimento.
Também
sob esse ponto de vista o Brasil está muito atrasado: nossa economia vem se
especializando em gerar postos de trabalho de baixa qualificação e baixa
remuneração, o que se associa a um sistema educacional repleto de deficiências.
Tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta, a situação da força de
trabalho brasileira é muito precária. Essa trajetória precisa ser revertida.
Não
nos iludamos: nosso lugar natural no sistema-mundo é muito periférico. O mundo
quer de nós soja e outros alimentos, minério de ferro e outros minérios e,
talvez, petróleo bruto, não muito mais que isso. Tentamos alterar esse lugar no
século 20, com razoável esforço endógeno, mas nas últimas décadas perdemos a
capacidade de fazer esse esforço.
Tornamo-nos
uma nação de vontade fraca, que aceita o lugar periférico que lhe foi
designado. Esse é o pano de fundo da nossa infindável crise política e dos
estéreis debates em macroeconomia.
CRISE
O
resultado está aí: passamos da condição de economia de alto crescimento para
baixo crescimento; começamos a perder a base industrial que conquistamos;
reprimarizamos a nossa pauta de exportações, aprofundando a posição periférica;
colocamos o Estado nacional na condição de refém do sistema financeiro; em
curto período, concentramos a população em grandes cidades, desordenadamente;
expandimos a fronteira agrícola até as franjas da Amazônia, também de forma
desordenada, instalando nas áreas novas uma estrutura de propriedade da terra ainda
mais concentrada que a das áreas de ocupação secular.
Atuando
de forma combinada, esses processos lançaram o Brasil em tremendos impasses. Há
um mal-estar crônico e
disseminado, que de tempos em tempos se torna agudo e dramático.
As
pessoas reconhecem o difícil presente em que vivem e pressentem um futuro
incerto para si e para seus filhos. A vontade de transformar as circunstâncias
vigentes é clara, mas o caminho para isso permanece indefinido. A necessidade
de mudar fica pendente, sem se realizar nem desaparecer. Isso é a crise.
Há
muitos anos essa crise experimenta idas e vindas, tendendo a agravar-se, pois a
única forma de solucioná-la —fazer o povo comandar a nação, pela primeira vez,
para resgatá-la, reinventá-la e desenvolvê-la— não foi alcançada.
Nossa
história recente é uma impressionante sequência de promessas frustradas, que
—tudo indica— se renovarão em 2018. A política deixou de ser um instrumento de
transformação, reduzida a doses cavalares de marketing e de uma infindável
sucessão de pequenos acordos, tudo a serviço da conquista e da preservação de
posições de poder.
O
futuro que daí resulta é apenas o prolongamento do presente, pois não contém o
caráter novo de um verdadeiro futuro. O país marca passo, sem sair do lugar.
Sob esse ponto de vista, nossos partidos políticos são todos iguais.
Em
vez de políticos que se adaptam ao que a sociedade é, ou parece ser, precisamos
de líderes que aceitem correr o risco de pensar no que ela não é, nem parece
ser, mas pode vir a ser. Para que possamos despertar qualidades novas que
estejam latentes.
Onde
eles estão?