Por Raimundo Carrero
Quem
já leu o pós-escrito a O nome da rosa,
de Umberto Eco, deve ter observado com atenção a técnica da “respiração
narrativa” em que ele justifica a redação das primeiras cem páginas do romance
famoso. Essas primeiras cem páginas pareciam inúteis e injustificáveis dentro
da estrutura da obra. Correu a lenda, depois justificada, segundo a qual, o
editor teria solicitado a Eco que retirasse estas páginas porque elas não
conduziam a nada. A resposta do autor foi imediata: se o leitor não seguir
estas páginas, não sentirá a respiração do texto, que é essencial. Durante a
leitura — basta observar com atenção — o leitor, tenso e cansado, é conduzido
ao monastério onde a história se desenvolve. Ocorre aí a respiração. Os
leitores, quase todos, confessam que sentem vontade de desistir, forçam a
leitura assim mesmo: forçam a leitura, mas param um pouco aqui, um pouco ali,
cansam, e se perguntam: quando a história vai começar? O enredo, com certeza,
não começou, mas a história e seu desenvolvimento estão em andamento. Daí a
ansiedade, a expectativa. Eu mesmo passei por isso. Tive que começar e
recomeçar inúmeras vezes. Às vezes me irritando: “não suporto mais esta
conversa mole”, mas não desisti e segui, com angústia, mas segui.
Imagino a pergunta:
“História é diferente de enredo?”. Sim, é diferente. E muito diferente.
História é a narrativa plana, em que não há episódios intrigantes, suspenses,
mudanças de planos, que são naturais no enredo, também chamado de intriga. No
enredo acontecem ações sobre ações, que chamamos de cenas sobre cenas, às vezes
cortadas por cenários sobre cenários, alongando ou reduzindo a narrativa, como
se pode fazer numa sinfonia ou numa ópera. Na história, por exemplo, os
cenários prevalecem sobre as cenas, que significam movimentos interiores
rápidos e, às vezes, desarmônicos, tudo para seduzir e impressionar o leitor,
sem tempo para respiração longa. Isso mesmo, respiração longa. Vejam bem:
terminamos na técnica da respiração narrativa.
Quando era muito jovem,
ginasiano, como se dizia na época, li um romance policial — de cujo título nem
lembro mais — que me tomou o fôlego. Fôlego? Sim, ainda mais uma vez circulando
em torno da respiração. Foi a leitura de uma manhã, sentado num banquinho,
encantado com o enredo. Um romance policial é um romance de intrigas, de cenas.
Por isso, Autran Dourado escreve mais ou menos assim: “enquanto o leitor se
encanta com o enredo, o autor rouba a carteira do leitor”. Enredo. Já disse:
cenas sobre cenas sobre cenas, onde até os cenários forjam intrigas e
situações. Mas um romance é também um romance de história, com planos
psicológicos, existenciais e vulgares, em que não se leva a uma conclusão
espetacular, magnífica, mas a um plano superior de Beleza e de Encantamento.
O livro de Eco é
romance de história — daí as primeiras cem páginas — e romance de enredo —
vejam-se as ações dos monges.
Sempre que dou
exemplos, gosto de mostrá-los para situar melhor o leitor, mas é óbvio que não
poderei fazer isso com as cem páginas de Eco. Mesmo assim, leiam e analisem,
por favor, as palavras iniciais do romance para ficar mais claro, embora o
texto seja obscuro, sobretudo pelas citações em latim:
“No princípio era o
verbo e o Verbo estava junto a Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio
junto a Deus e o dever do monge fiel seria repetir cada dia com salmodiante
humildade o único evento imodificável do qual se pode confirmar a
incontrovertível verdade. Mas videmus
nunc per speculum et in aenigmate e a verdade, ao invés de
cara a cara e, manifesta-se deixando às vezes rastros ( ai, quão inelegíveis)
no erro do mundo, tanto que precisamos calculá-los, soletrando os verdadeiros
sinais, mesmo lá onde nos parece obscuros e quase entremeados por uma vontade
totalmente voltada para o mal”.
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Raimundo Carrero é escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria e Minha alma é irmã de Deus. Vive no Recife (PE).