quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

A respiração narrativa

Por Raimundo Carrero

Quem já leu o pós-escrito a O nome da rosa, de Umberto Eco, deve ter observado com atenção a técnica da “respiração narrativa” em que ele justifica a redação das primeiras cem páginas do romance famoso. Essas primeiras cem páginas pareciam inúteis e injustificáveis dentro da estrutura da obra. Correu a lenda, depois justificada, segundo a qual, o editor teria solicitado a Eco que retirasse estas páginas porque elas não conduziam a nada. A resposta do autor foi imediata: se o leitor não seguir estas páginas, não sentirá a respiração do texto, que é essencial. Durante a leitura — basta observar com atenção — o leitor, tenso e cansado, é conduzido ao monastério onde a história se desenvolve. Ocorre aí a respiração. Os leitores, quase todos, confessam que sentem vontade de desistir, forçam a leitura assim mesmo: forçam a leitura, mas param um pouco aqui, um pouco ali, cansam, e se perguntam: quando a história vai começar? O enredo, com certeza, não começou, mas a história e seu desenvolvimento estão em andamento. Daí a ansiedade, a expectativa. Eu mesmo passei por isso. Tive que começar e recomeçar inúmeras vezes. Às vezes me irritando: “não suporto mais esta conversa mole”, mas não desisti e segui, com angústia, mas segui.
Imagino a pergunta: “História é diferente de enredo?”. Sim, é diferente. E muito diferente. História é a narrativa plana, em que não há episódios intrigantes, suspenses, mudanças de planos, que são naturais no enredo, também chamado de intriga. No enredo acontecem ações sobre ações, que chamamos de cenas sobre cenas, às vezes cortadas por cenários sobre cenários, alongando ou reduzindo a narrativa, como se pode fazer numa sinfonia ou numa ópera. Na história, por exemplo, os cenários prevalecem sobre as cenas, que significam movimentos interiores rápidos e, às vezes, desarmônicos, tudo para seduzir e impressionar o leitor, sem tempo para respiração longa. Isso mesmo, respiração longa. Vejam bem: terminamos na técnica da respiração narrativa.
Quando era muito jovem, ginasiano, como se dizia na época, li um romance policial — de cujo título nem lembro mais — que me tomou o fôlego. Fôlego? Sim, ainda mais uma vez circulando em torno da respiração. Foi a leitura de uma manhã, sentado num banquinho, encantado com o enredo. Um romance policial é um romance de intrigas, de cenas. Por isso, Autran Dourado escreve mais ou menos assim: “enquanto o leitor se encanta com o enredo, o autor rouba a carteira do leitor”. Enredo. Já disse: cenas sobre cenas sobre cenas, onde até os cenários forjam intrigas e situações. Mas um romance é também um romance de história, com planos psicológicos, existenciais e vulgares, em que não se leva a uma conclusão espetacular, magnífica, mas a um plano superior de Beleza e de Encantamento.
O livro de Eco é romance de história — daí as primeiras cem páginas — e romance de enredo — vejam-se as ações dos monges.
Sempre que dou exemplos, gosto de mostrá-los para situar melhor o leitor, mas é óbvio que não poderei fazer isso com as cem páginas de Eco. Mesmo assim, leiam e analisem, por favor, as palavras iniciais do romance para ficar mais claro, embora o texto seja obscuro, sobretudo pelas citações em latim:
“No princípio era o verbo e o Verbo estava junto a Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto a Deus e o dever do monge fiel seria repetir cada dia com salmodiante humildade o único evento imodificável do qual se pode confirmar a incontrovertível verdade. Mas videmus nunc per speculum et in aenigmate e a verdade, ao invés de cara a cara e, manifesta-se deixando às vezes rastros ( ai, quão inelegíveis) no erro do mundo, tanto que precisamos calculá-los, soletrando os verdadeiros sinais, mesmo lá onde nos parece obscuros e quase entremeados por uma vontade totalmente voltada para o mal”.

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Raimundo Carrero é escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. Vive no Recife (PE).