Por Vladimir
Safatle
(Professor
Livre-Docente do Departamento de Filosofia da USP)
Nesta semana, o Brasil
assistiu a primeira condenação de um ex-presidente na
história de sua República.
Será
também a primeira vez que o principal candidato a eleição presidencial não
poderá concorrer por ter sido impedido devido à ação do Poder Judiciário. O
próximo passo deverá ser a primeira prisão de um ex-presidente no Brasil.
É
claro que uma das questões políticas mais discutidas nos próximos dias será: o
que isto realmente significa?
Afinal,
o que estamos a ver: o sinal exemplar do fortalecimento de um Poder Judiciário
autônomo capaz de combater a corrupção nas mais altas esferas do Estado ou o
último capítulo de um golpe visando aniquilar as possibilidades de um dos
grupos políticos hegemônicos na política brasileira das últimas décadas voltar
ao poder?
Note-se
que, para funcionar, a tese da condenação de Lula como expressão da nova força
do Poder Judiciário precisaria de fatos complementares que não existem na
realidade brasileira atual.
Não
é difícil perceber que os casos de corrupção condenados giram todos em torno,
basicamente, de Lula, de seus operadores e de seus apoiadores.
A
ala do MDB na cadeia (Sérgio Cabral e cia) é uma ala majoritariamente lulista.
Eduardo Cunha (que não era ligado a Lula) está lá por ter se tornado muito
perigoso para o funcionamento normal das negociatas do grupo no governo. Os
outros todos estavam no núcleo de poder comandado pelo PT.
Ou seja, a sanha
anticorrupção vai até Lula e termina nele. No entanto, para ser uma expressão
de nova realidade do Poder Judiciário ela deveria, desde o início, ter sido
devastadora também para os outros atores e setores da vida política nacional, o
que simplesmente não foi o caso.
Um
país onde Lula é condenado e Temer é presidente e Aécio Neves senador é algo da
ordem do escárnio.
Por
outro lado, o uso político do Judiciário é uma especialidade nacional. Durante
a ditadura, o número relativamente baixo de mortes foi compensado pelo numero
impressionantemente alto de processos jurídicos contra opositores reais e
potenciais.
No
entanto, o exercício de reduzir os casos e envolvimentos explícitos do governo
Lula e Dilma em processos de corrupção a peças de ficção é algo que explicita
uma regressão política séria de setores da vida nacional.
Até
porque, agora fica claro como funciona a relação entre norma e poder no caso
brasileiro.
O
funcionamento normal do governo brasileiro é através da quebra da norma, nada
disto mudou com novos grupos políticos no poder.
Mas
mesmo que a corrupção seja fato generalizado, a aplicação da lei será feita a
partir das circunstâncias e interesses políticos do momento.
Ou
seja, todos estão fora da lei e é importante que todos exerçam o poder fora da
lei, pois quando a lei for aplicada, ela poderá pegar, de maneira seletiva,
quem quiser.
A
grande ilusão que impulsionou certos setores da vida nacional em torno de Lula
foi acreditar estar seguro em uma "governabilidade" desta natureza,
ao invés de realmente lutar para mudá-la e perceber que não haveria espaço real
dentro dela.
O
que o julgamento de Lula mostrou foi simplesmente o contrário. Seu destino é a
expressão do colapso de todo horizonte de conciliação na política nacional, com
seu preço a pagar em moedas de grandes empreiteiras.
Ao
decidir pelo destino de Lula, o núcleo duro do poder nacional, este que
continuará intocado mesmo quando pego em grampos fazendo prevaricação explícita
nos palácios da República, sinaliza que não haverá mais conciliação alguma
entre grupos políticos.
No
entanto, por mais paradoxal que isso possa parecer, as lágrimas de Lula são
para uma conciliação que ele gostaria de encarnar novamente e da qual percebe
ter sido simplesmente descartado.
Se
estivéssemos em uma situação mais favorável, estaríamos a tentar analisar o
verdadeiro saldo político deste processo, compreendendo quão surreal é discutir
questões como "proporcionalidade das penas" ou "consistência do
rito jurídico" nessas circunstâncias.
Pois
talvez a boa questão para recomeçar a pensar o país seja, ao final:
"sabendo que, por esta via conciliatória, o saldo final seria uma
condenação a 12 anos de prisão, o que você faria no governo?"
-------------------
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/. Título original: 'A sanha anticorrupção no Brasil vai até Lula e termina nele'.