sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Brasil: o limite da sanha anticorrupção, o futuro imprevisível e o recomeço para pensar o país



Por Vladimir Safatle
(Professor Livre-Docente do Departamento de Filosofia da USP)

Nesta semana, o Brasil assistiu a primeira condenação de um ex-presidente na história de sua República.
Será também a primeira vez que o principal candidato a eleição presidencial não poderá concorrer por ter sido impedido devido à ação do Poder Judiciário. O próximo passo deverá ser a primeira prisão de um ex-presidente no Brasil.
É claro que uma das questões políticas mais discutidas nos próximos dias será: o que isto realmente significa?
Afinal, o que estamos a ver: o sinal exemplar do fortalecimento de um Poder Judiciário autônomo capaz de combater a corrupção nas mais altas esferas do Estado ou o último capítulo de um golpe visando aniquilar as possibilidades de um dos grupos políticos hegemônicos na política brasileira das últimas décadas voltar ao poder?
Note-se que, para funcionar, a tese da condenação de Lula como expressão da nova força do Poder Judiciário precisaria de fatos complementares que não existem na realidade brasileira atual.
Não é difícil perceber que os casos de corrupção condenados giram todos em torno, basicamente, de Lula, de seus operadores e de seus apoiadores.
A ala do MDB na cadeia (Sérgio Cabral e cia) é uma ala majoritariamente lulista. Eduardo Cunha (que não era ligado a Lula) está lá por ter se tornado muito perigoso para o funcionamento normal das negociatas do grupo no governo. Os outros todos estavam no núcleo de poder comandado pelo PT.
Ou seja, a sanha anticorrupção vai até Lula e termina nele. No entanto, para ser uma expressão de nova realidade do Poder Judiciário ela deveria, desde o início, ter sido devastadora também para os outros atores e setores da vida política nacional, o que simplesmente não foi o caso.
Um país onde Lula é condenado e Temer é presidente e Aécio Neves senador é algo da ordem do escárnio.
Por outro lado, o uso político do Judiciário é uma especialidade nacional. Durante a ditadura, o número relativamente baixo de mortes foi compensado pelo numero impressionantemente alto de processos jurídicos contra opositores reais e potenciais.
No entanto, o exercício de reduzir os casos e envolvimentos explícitos do governo Lula e Dilma em processos de corrupção a peças de ficção é algo que explicita uma regressão política séria de setores da vida nacional.
Até porque, agora fica claro como funciona a relação entre norma e poder no caso brasileiro.
O funcionamento normal do governo brasileiro é através da quebra da norma, nada disto mudou com novos grupos políticos no poder.
Mas mesmo que a corrupção seja fato generalizado, a aplicação da lei será feita a partir das circunstâncias e interesses políticos do momento.
Ou seja, todos estão fora da lei e é importante que todos exerçam o poder fora da lei, pois quando a lei for aplicada, ela poderá pegar, de maneira seletiva, quem quiser.
A grande ilusão que impulsionou certos setores da vida nacional em torno de Lula foi acreditar estar seguro em uma "governabilidade" desta natureza, ao invés de realmente lutar para mudá-la e perceber que não haveria espaço real dentro dela.
O que o julgamento de Lula mostrou foi simplesmente o contrário. Seu destino é a expressão do colapso de todo horizonte de conciliação na política nacional, com seu preço a pagar em moedas de grandes empreiteiras.
Ao decidir pelo destino de Lula, o núcleo duro do poder nacional, este que continuará intocado mesmo quando pego em grampos fazendo prevaricação explícita nos palácios da República, sinaliza que não haverá mais conciliação alguma entre grupos políticos.
No entanto, por mais paradoxal que isso possa parecer, as lágrimas de Lula são para uma conciliação que ele gostaria de encarnar novamente e da qual percebe ter sido simplesmente descartado.
Se estivéssemos em uma situação mais favorável, estaríamos a tentar analisar o verdadeiro saldo político deste processo, compreendendo quão surreal é discutir questões como "proporcionalidade das penas" ou "consistência do rito jurídico" nessas circunstâncias.
Pois talvez a boa questão para recomeçar a pensar o país seja, ao final: "sabendo que, por esta via conciliatória, o saldo final seria uma condenação a 12 anos de prisão, o que você faria no governo?"

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/. Título original: 'A sanha anticorrupção no Brasil vai até Lula e termina nele'. 


segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Educación y promoción de la salud para una nueva política sobre drogas en América Latina


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Obra 'Abismos', 3D, de Eduardo Kobra, em frente ao
Memorial da  América Latina-SP


Por Ivonaldo Leite

En general, en Latinoamérica, los problemas asociados a la producción, el tráfico y consumo de drogas afectan la calidad de vida de la población y están ligados a formas de exclusión social y debilidad institucional, generando mayor inseguridad y violencia. América Latina concentra la totalidad de producción global de hoja de coca, pasta base de cocaína y clorhidrato de cocaína. Además de esto, posee una producción de marihuana que se extiende hacia distintos países y zonas, destinada tanto al consumo interno como a la exportación. Y, crecientemente, produce amapola y elabora opio y heroína.
Conforme un estudio de la CEPAL, la zona del Caribe sigue siendo la ruta más frecuente para el tráfico de drogas hacia los Estados Unidos, pero la ruta del Pacífico, pasando por América Central, ha ganado importancia relativa. En los últimos tiempos ha cobrado importancia el transporte fluvial desde los países productores de cocaína a través de Brasil. La marihuana, seguida de la pasta base de cocaína, el crack y el clorhidrato de cocaína son las drogas ilícitas de mayor consumo en la región.
La producción de drogas ilícitas en Latinoamérica ha estado caracterizada por la expansión o el desplazamiento continuo de áreas agrícolas destinadas a la misma. Grandes poblaciones de campesinos e indígenas se han incorporado a los cultivos ilícitos del narcotráfico, y esta situación se mantiene debido a que la rentabilidad de los cultivos lícitos sigue siendo negativa, mientras la producción de marihuana, coca y amapola permite mayores ingresos económicos. Tan sólo en Bolivia, a principios de los años 2000, se estimaba, según la CEPAL, que la actividad vinculada a la economía de la coca generaba alrededor de 135.000 empleos, lo que equivalía a un 6,4% del empleo del país.
En países como Colombia, Perú, Bolivia y otros en menor medida, la población indígena y campesina es utilizada por los narcotraficantes para el cultivo de coca, marihuana y amapola, dadas sus necesidades económicas y los problemas de la colocación de sus productos en el mercado. En la selva media y alta de Perú, el estado de abandono y pobreza existente, las condiciones ecológicas y climáticas, la limitada articulación con los mercados, la baja rentabilidad de la producción, la carencia de alternativas económicas y la presencia de las mafias internacionales dedicadas al tráfico ilícito de drogas, han promovido una producción de hoja de coca excedentaria. Estos factores predisponen al productor agrícola a orientar su actividad económica al cultivo de coca como única opción que le permite procurar los recursos indispensables para garantizar su sobrevivencia familiar y colectiva.
En nivel local del microtráfico destaca una creciente participación de mujeres de bajos ingresos y de menores, lo cual genera problemas judiciales y penales que no tienen precedentes. En zonas de baja presencia o controlo del Estado, el microtráfico se constituye fácilmente en una estrategia de supervivencia adoptada por mujeres con jefatura de hogar e incluso por personas de la tercera edad de escasos recursos. Muchas personas de bajos ingresos terminan abandonando sus ocupaciones previas dado que el tráfico de drogas le provee ingresos substancialmente mayores. En muchos enclaves urbanos de América Latina, el tráfico de drogas genera o refuerza una cultura de la ilegalidad que corroe las normas mínimas de sociabilidad. De esta manera, la violencia generada en factores políticos y económicos ha sido reforzada por violencias generadas en actividades criminales, específicamente pelo narcotráfico. Esta es una realidad presente, por ejemplo, en ciudades brasileñas como Río de Janeiro.
La política de guerra a las drogas ha fracasado. Pese al aumento de las capturas de drogas, a la detención de narcotraficantes y a la destrucción de grandes redes, los problemas asociados al consumo de drogas no han disminuido, y la disponibilidad de drogas ilícitas en los mercados no se ha reducido. Esa política acumula una serie de contra-efectos. Por ejemplo, entre los ellos, se cuentan un alto número de víctimas en términos de mortalidad y morbilidad, sin una reducción en el consumo de drogas. También hay un alto número de “bajas políticas” y penales entre la clase política, las autoridades civiles, judiciales y policiales, por efecto de la corrupción. En algunos contextos existen serios trastornos en las relaciones políticas internacionales, y en otros casos en las nacionales, como en México. La supuesta represión a las drogas también ha servido de pretexto para imponer posiciones políticas e ideológicas en Latinoamérica.
El fracaso de la política de guerra a las drogas ha llevado al desarrollo de enfoques alternativos. En ese sentido puede ser referido el paradigma de reducción del daño. El uso de estrategias de reducción del daño para controlar la demanda de drogas en importantes ciudades de Europa ha acompañado al creciente proceso de municipalización del manejo de la cuestión. En esta perspectiva, la educación está llamada a desempeñar un papel central en las acciones de prevención, aliando, por ejemplo, acciones socioeducativas y promoción de la salud.
Esto es, de acuerdo con la definición clásica de promoción de la salud, es importante (a través de la educación) ofrecer orientaciones y dinámicas a las personas que hacen uso problemático de drogas para que ellas mismas también actúen en la mejora de su calidad de vida y salud. En ese sentido, se trata de una capacitación que debe involucrar a las comunidades mediante estrategias de educación popular y de formación de educadores sociales.
Se trata, pues, de construir un nuevo paradigma de políticas sobre drogas, el cual se apoya, entre otras, en tres premisas: el rechazo del tipo de medicina que niega el derecho del individuo a disponer de sí y de su cuerpo; la denuncia de intereses políticos e ideológicos detrás de acciones de la llamada guerra a las drogas; la acogida humanitaria de las personas que hacen uso problemático de drogas. Estas son algunas de las perspectivas para una nueva política sobre drogas en América Latina que sea inducida por la educación y la promoción de la salud.


segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Uruguai e estudo global sugerem novo olhar sobre drogas

Por Clóvis Rossi

Feliz coincidência: no mesmo dia em que Sylvia Colombo relatava com a competência habitual o andamento do programa uruguaio de venda legal de maconha, a Comissão Global sobre Política de Drogas divulgava novo relatório, no qual condena as políticas atuais baseadas na repressão —a chamada "guerra às drogas".
No que coincidem os dois assuntos? Simples: o relato de Sylvia Colombo mostra que caíram 18% os crimes relacionados ao narcotráfico desde o início da implantação do sistema, faz apenas seis meses.
Do meu ponto de vista, qualquer programa relativo às drogas tem que ter como alvo exatamente isso, ou seja, reduzir a violência associada inexoravelmente a qualquer produto considerado ilegal.
É o que de certo modo diz o relatório da Comissão Global, que enfatiza "o custo humano de políticas equivocadas, a inabilidade delas para reduzir a produção e o consumo de drogas ilegais e para brecar [a ação] de organizações criminosas".
A Comissão não é um conglomerado de palpiteiros. Dela fazem parte, além de especialistas, como é indispensável, executivos e um punhado de ex-chefes de governo, do Maláui à Suíça, passando pelo Brasil (Fernando Henrique Cardoso), Chile (Ricardo Lagos) e México (Ernesto Zedillo). Sem mencionar Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU.
O relatório deste ano elenca princípios para reformar as políticas de drogas, que resumo a seguir:
1. A medida preliminar de sucesso [das novas políticas] deveria ser a redução do dano à saúde, à segurança e ao bem-estar de indivíduos e da sociedade. Ou, posto de outra forma, não se advoga um "liberou geral" que possa eventualmente causar danos à saúde.
2. Respeito aos direitos humanos e à saúde pública. "A criminalização, estigmatização e marginalização de pessoas que usam drogas e daqueles envolvidos nos estágios mais baixos do cultivo, produção e distribuição, precisam acabar. Pessoas com uso problemático de drogas precisam ser tratadas como pacientes, não como criminosos."
3. Novas políticas deveriam ser uma responsabilidade globalmente compartilhada, mas também precisam levar em conta as diferentes realidades, políticas, sociais e culturais. Deveriam também permitir experiências com a legalização regulada de drogas no nível nacional.
4. "Políticas de drogas têm que ser perseguidas de uma maneira abrangente, envolvendo pessoas que usam drogas, famílias, escolas, especialistas em saúde pública e em desenvolvimento e líderes da sociedade civil, em parceria com agências de aplicação da lei e outros corpos governamentais relevantes."
Ou seja, não se trata de "chutômetro" nem de aventureirismo nem de improvisação. O importante é que o tema entre na agenda da sociedade, o que, no Brasil, está longe  demais de acontecer. 
Não é assunto para poucos: a Comissão afirma que cerca de 250 milhões de pessoas (praticamente a população brasileira) usaram drogas ilegais em 2016. Delas, 11,6% são viciados ou são considerados problemáticos com o uso da droga.
Seria importante, pois, que o tema figurasse na agenda da campanha de 2018.

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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 14/01/2018. 


domingo, 14 de janeiro de 2018

A dimensionalidade do infinito



Por Leont Etiel 

Nas serras e vales
o vento sussurrante que sopra
No cimo
a vida que se apresenta, outra vida
A mão que se estende a muitos
e é recusada
A palma da mão que se  abre à “natureza bruta”
e é aceita sem hostilidade
Intermitências romântico-surrealistas
O encantado, o martelo encantado da liberdade natural
A estrela da manhã, a senda que reluz
Nas serras e vales, o cimo
do passageiro inter-estelar
A infindável viagem
na dimensionalidade do infinito

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

A ironia do desespero que encontra a graça

O recente falecimento de Carlos Heitor Cony priva as letras brasileiras da presença física de um estilo agudo e marcante. Priva da presença física, pois a sua obra mantém-se e o imortalizará. Da minha parte, não foram poucas as vezes em que, na companhia de mim mesmo, estive com a leitura do Cony atravessando a "grande insônia do mundo". A paciência que faltava a Hans Magnus Enzensberger. A busca da "única saída e salvação possíveis", tendo presente, contudo, que, talvez, ao fim e ao cabo,  não haverá saída e nem ninguém estará salvo. Mas considerando, no entanto, que, ao invés de isso  gerar um desespero absoluto, abre portas à serenidade e à profundidade do sentido da existência como um abrigo (re)confortante. Um abrigo que não dispensa a ironia, para encontrar a graça. E assim não há como não deixar de lembrar o Cony. Segue aí abaixo um texto do jornalista Marcelo Coelho a respeito dele, muito em função do seu percurso na Folha de São Paulo. Fará imensa falta (não entro no mérito de algumas polêmicas decorrentes de posições políticas suas). 




Por Marcelo Coelho 

De certo modo, Cony aceitava a opinião tradicional, que associa a crônica a um texto sorridente, descompromissado e ligeiro.
morte de Carlos Heitor Cony priva o país, e a Folha, de um mestre absoluto do gênero –e de um escritor cujo profissionalismo jamais permitiria infringir abertamente as regras prescritas pela convenção.
Seus textos para o jornal foram, portanto, deliciosos de ler, arejados, com um leve perfume de poesia que ele dosava à perfeição.
Mas acontecia de as sombras grotescas das feiticeiras de Goya cruzarem sua memória no meio de uma frase –para serem afastadas num gesto quase que de mau humor, com o qual Cony recuperava a graça exigida pelo gênero jornalístico.
Depois de deixar o seminário, ele se impregnou da filosofia existencialista. Sartre e Camus abriram sua sensibilidade para o absurdo e para a absoluta solidão do indivíduo nas suas escolhas morais.
Pego, meio ao acaso, uma crônica de Cony. Chama-se "Acidente de percurso da química e da gula". Começa assim:
"Não sei bem por que, mas eram considerados primos. Em algum ponto havia uma bifurcação genética e os Almeida da Silva tinham alguma coisa a ver com os Moraes, nossa família materna."
O registro, claro, é o da memória, cotidiana e doméstica. Não se trata, contudo, de recuperar o passado. O narrador não se lembra bem do parentesco; na verdade, nunca soube –e sugere que isso não tem importância.
Surge então o detalhe, este sim memorável: naquele ramo da família havia seis mulheres. "Casaram-se no devido tempo, um dos maridos mexia com produtos químicos, daí que todos eles receberam a classificação coletiva de 'Químicos'".
Apesar de característico, o traço mantém certa imprecisão: "no devido tempo" (quando?), "um dos maridos" (qual?), "mexia" (vendia? Fabricava?), "produtos químicos" (de que tipo?).
Pouco importa. O fato de serem chamados de "químicos" não interfere em nada no desenvolvimento da história, que se concentra no fato de que esses parentes eram "vorazes".
"A especialidade deles", continua Cony, "era frequentar festas em que havia bufê." O líder do grupo, chamado Eurico, vivia da renda de "cinco casas no Cachambi". Dormia "até tarde e, à tarde" (note-se o falso descuido ao repetir a palavra), "gostava de Vicente Celestino e empadinhas de camarão".
Nada disso, parece dizer Cony, tem importância ou razão de ser. Vivemos num universo em que as coisas são simplesmente assim. Poderiam ser quatro casas, poderiam ser em outro bairro, poderia ser outro cantor, poderia ser outro salgadinho. Nada disso modifica nada.
A turma fica sabendo de um casamento rico, mas o convite por escrito não veio. A festa seria na casa de um "comerciante de queijos" na rua Sacadura Cabral. Ou seria em outra rua? Talvez a Gago Coutinho?
Naquele mundo arbitrário do texto, em que um detalhe poderia ser outro qualquer, eis que a imprecisão, a falta de motivos para que algo seja o que é, contamina os próprios personagens –também eles se confundem no específico, trocam uma coisa por outra qualquer.
Terminam parando no lugar errado –e batem à porta (outro acaso inexplicável) de um poeta famoso nos anos sessenta, menos pelo talento do que pelo engajamento político: Thiago de Mello, que organizara uma recepção a outro poeta, um chileno chamado Juvêncio Valle.
A noite transcorre com o chileno recitando versos sobre "a libertação dos povos da América Latina e dos povos afro-asiáticos". Quando acaba o último poema, "Thiago de Mello mandou buscar umas pizzas numa padaria no Largo do Machado".
E a crônica termina nessa frase, como se nenhuma conclusão fosse possível.
Cony é um artista do anticlímax.
O senso lírico da desimportância de todas as coisas se traduz, para Cony, em absurdo, em falta de sentido. Sua ironia não é doce, como em tantos outros cronistas: é no desespero que ele encontrou a sua graça.

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelocoelho/. Título original: 'O Desespero e a Graça'. 

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Uma nação de vontade fraca

Por César Benjamin

A economia internacional é profundamente assimétrica, a começar pelo padrão monetário em vigor: desde a década de 1970, um Estado nacional emite uma moeda fiduciária em torno da qual o sistema-mundo gravita, sem que existam instituições multilaterais que regulem e disciplinem essa emissão.
Tal anomalia tem gerado tensões e instabilidades permanentes, pois o espaço de soberania de um único Estado passou a ser, potencialmente, todo o planeta. Ocupando uma posição privilegiada nas relações com o mundo, os Estados Unidos acostumaram-se a viver muito acima dos seus próprios recursos.
Com o tempo, esse arranjo monetário e financeiro incrementou o poder de agentes econômicos que vivem desconectados da economia real. Criou-se um capitalismo administrador de dinheiro. À frente do sistema não mais estão capitães de indústria, mas gestores de ativos líquidos, que vivem imersos num ambiente de competição predatória.
A composição das carteiras que administram se altera diariamente. Apostam em tudo —no valor relativo das moedas, nos preços das commodities, nas ações em Bolsa, em pequenas variações das taxas de juros—, sempre operando em mercados futuros, inexistentes.
Criam sem parar novos produtos financeiros, cada vez mais complexos e opacos. Seus negócios se conectam em paraísos fiscais. Realizam transações que movimentam bilhões, mas que são concluídas sem que haja entrega física de nenhum bem. Fazem muitas contas, que não têm nada a ver com o cálculo econômico, pois vivem em um mundo de soma zero.
Mesmo assim, têm lucros extraordinários. No Brasil, são conhecidos pelo eufemismo de "investidores internacionais".
A imposição ao mundo dessa forma de gestão da riqueza ganhou um nome de fantasia: globalização. Exigiu a construção de um espaço financeiro homogêneo para além das fronteiras nacionais. A finança tornou-se global, mas a moeda dominante continuou nacional, o dólar.
Os países que se renderam a esse sistema volátil, sem construir salvaguardas, precisam proteger-se acumulando reservas, ou seja, esterilizando seus recursos em títulos do Tesouro norte-americano.
Financiados assim pelo mundo, puderam os Estados Unidos nas últimas décadas, ao mesmo tempo, manter déficits estratosféricos, generalizar endividamentos públicos e privados, fazer guerras, cortar impostos, ampliar o crédito e aumentar o consumo, tudo isso com um desempenho econômico medíocre, o mais baixo crescimento desde a Segunda Guerra Mundial.
Essa incrível combinação só é possível porque a dívida "externa" do país e os preços dos produtos que importa estão expressos na moeda que ele mesmo fabrica.

INOVAÇÃO
A segunda assimetria importante está fincada no coração dos sistemas produtivos. É o controle dos processos de inovação. Pois a conquista de vantagens sólidas nas relações de intercâmbio baseia-se na ocupação de posições que dão acesso a uma parte maior do excedente produzido no sistema-mundo.
Para manter-se na frente, um país deve conseguir estruturar sua economia em torno de atividades que gerem um ganho diferenciado, acima da média. Tais atividades, por definição, são as que não permitem grande concorrência.
Como essas atividades se alteram no tempo, a conquista e a manutenção de uma posição de vanguarda não estão ligadas, no longo prazo, ao controle de um setor, uma técnica ou uma mercadoria, mas sim à liderança do processo de inovação, ou seja, à capacidade permanente de criar novas combinações produtivas, novos processos e novos produtos.
Na esfera da economia real, o centro do sistema internacional são os poucos espaços nacionais e as poucas grandes empresas que concentram em si a dinâmica da inovação.
Eles capturam sucessivamente as posições de comando justamente porque conseguem recriá-las, obtendo benefícios extras na divisão internacional do trabalho. No outro polo, a dependência também se repõe dinamicamente.
O avanço da globalização impactou centro e periferia de forma muito diferenciada. Nos países desenvolvidos, o espaço da economia e da técnica, de um lado, e o espaço das decisões políticas, de outro, permanecem estreitamente ligados pelo vínculo entre grandes empresas e Estados fortes.
Nos demais, esses espaços se dissociam pela dispersão geográfica das cadeias produtivas, feita na presença de Estados fracos e sem corporações estratégicas de base nacional.
O Brasil aprofundou sua condição de país periférico e de economia reflexa —uma economia que apenas responde e se adapta aos ciclos do sistema internacional— ao optar por se inserir no processo de globalização pelos fluxos financeiros.
Perdemos a capacidade de controlar nosso processo de desenvolvimento, pois o espaço de manobra dos capitais errantes ultrapassa amplamente o da sociedade nacional, com a qual mantêm vínculos tênues, ligados a oportunidades específicas de realizar bons negócios.
A amplitude desse processo tem graves consequências para a dinâmica de longo prazo da economia. A primeira é a fraca capacidade de a sociedade disciplinar o impulso de acumulação de capital, subordinando-o a objetivos maiores, como a ampliação da cidadania e a sustentação do desenvolvimento.
A segunda é a radicalização da dinâmica reflexa, marcada por ajustes passivos aos ciclos internacionais. Nesse contexto, o ciclo da acumulação capitalista passa a conter uma nova exigência: generaliza-se a demanda de que, em algum momento, os lucros sejam realizáveis em moeda estrangeira, cuja oferta é instável.
Decorre daí a tendência a surtos de crescimento também instável, sujeitos a interrupções bruscas ou mesmo reversões, que nos impedem de sustentar uma trajetória de crescimento estável e robusto.
Uma incerteza exacerbada e um desenvolvimento intrinsecamente instável fazem com que o capital potencialize sua natureza especulativa e passe a exigir duas coisas: alta rentabilidade e enorme certeza no curto prazo.
A alta rentabilidade é a contrapartida exigida para que, em um sistema aberto e desregulamentado, a riqueza líquida aceite trocar a moeda melhor (o dólar) pela pior (o real), ou então —o que dá no mesmo— aceite não realizar o movimento inverso.
Isso se obtém por meio de juros reais suficientemente atrativos, que sejam um múltiplo da taxa básica paga no sistema internacional aos ativos denominados em dólar, o que penaliza permanentemente a atividade produtiva. A enorme certeza no curto prazo é a contrapartida exigida diante da incerteza estrutural, de longo prazo, que ronda a nossa economia.

IMPASSE
A sociedade brasileira precisa decidir se continuará aceitando a condição de economia reflexa, buscando, em cada momento, estratégias oportunistas para extrair dessa condição algumas vantagens residuais, ou se deseja constituir um projeto próprio, que dê ao país capacidade decisória suficiente para dirigir o próprio destino, com uma inserção soberana no sistema internacional.
Sucessivos governos brasileiros vêm adotando a primeira opção, de adaptação subalterna. A história não recomenda esse caminho, que parece o mais fácil em cada momento, mas repõe indefinidamente dificuldades e impasses estruturais.
Grandes países periféricos, como os Estados Unidos do século 19 e a China do século 20, já passaram por isso, cada um ao seu jeito, e só obtiveram êxito quando ousaram contrariar o lugar que lhes fora atribuído pela ordem internacional de seu tempo.
Fizeram profundas reformas internas. Alteraram seus sistemas de poder. Cometeram erros e aprenderam com eles. Pagaram o preço associado a essas decisões. Mas, ao fim e ao cabo, deixaram para trás a condição periférica.
O desenvolvimento resulta de longo processo de crescimento econômico, com aumento persistente da produtividade do trabalho, diversificação da estrutura produtiva e busca de maiores níveis de justiça social. Pressupõe mutações e descontinuidades que não podem ser produzidas somente pelas trocas mercantis.
Hoje, o mercado é insubstituível para otimizar o funcionamento do sistema econômico, mas é incapaz de alterar a composição e a distribuição dos estoques de riqueza. Além disso, só impulsiona as atividades produtivas que geram rentabilidade para o setor privado.
Inúmeros bens e serviços essenciais permanecem subofertados, pois os portadores dessas necessidades não têm renda monetária suficiente para estimular a produção.
Especialmente nos países retardatários, o desenvolvimento exige decisões complementares entre si, que não podem ser tomadas de forma atomizada. É necessário contar com mecanismos de coordenação supramercado que garantam a prevalência de uma visão de conjunto e de longo prazo. Isso não se confunde com a estatização da economia.
O Estado não precisa nem deve controlar diretamente a maior parte da base produtiva do país para conduzir reformas estruturais, controlar as variáveis macroeconômicas decisivas, prover bens e serviços coletivos, explorar ou regulamentar a exploração de serviços de natureza monopolista, induzir distribuição de renda e riqueza, estruturar ou apoiar conglomerados estratégicos de base nacional, estabelecer a forma de uso dos recursos não renováveis, proteger o meio ambiente, promover o progresso científico e tecnológico, regular o intercâmbio com o exterior e defender a soberania.
A sociedade deve combinar diferentes mecanismos de alocação de recursos, entre os quais o planejamento e o mercado, na forma de uma economia mista. 

Diversos tipos de propriedade e de organização da produção devem existir de forma múltipla e equilibrada, inclusive a propriedade estatal, pública não estatal e privada, com generosos espaços para os empreendimentos de porte pequeno e médio, as cooperativas e todas as expressões da economia solidária.
Nada disso é novidade. As mais importantes escolas de economia são aquelas que se esforçam para combinar o impulso à acumulação de capital, de um lado, e os interesses gerais da sociedade, de outro. Eles não são incompatíveis, mas tampouco são necessariamente harmônicos. A compatibilização das duas variáveis é uma construção institucional, condição sine qua non para o desenvolvimento.

NEOLIBERAIS
Isso se choca com o ponto de vista neoliberal, que tem predominado na luta ideológica das últimas décadas.
Segundo essa visão, o mercado deve ser soberano. Ele é visto como espaço de interação de incontáveis agentes, sem que nenhum deles possa controlar os processos de troca a ponto de impor os seus próprios fins aos demais. O governo só deve agir para preservar certas condições macroeconômicas que permitam ao mercado operar.
Fora do âmbito de cada empresa, essa escola de pensamento é hostil a qualquer ideia de metas, pois a busca de metas democraticamente definidas exige intervenção consciente nos processos econômicos e sociais, em nome de um futuro pensado, desejado, imaginado, concertado pela sociedade, e não produzido pela cega interação mercantil.
Os neoliberais apresentam-se como representantes da modernidade e do futuro, mas sua própria doutrina não lhes permite especificar a qual futuro se referem.
A alocação de recursos será ótima, dizem, se for produzida pelo livre jogo das forças de mercado, simplesmente porque esse jogo produz uma alocação qualquer, desconhecida, considerada ótima por critérios internos à própria teoria que o glorifica. Se essa alocação denominada ótima produzirá bem-estar, não se sabe.
Se a imagem do futuro que se deseja atingir permanece indefinida, inexistem pontos de referência que permitam uma avaliação rigorosa dos processos reais.
Perante qualquer dificuldade, o pensamento neoliberal aciona uma saída de emergência, com a incessante repetição de que é preciso esperar mais e insistir mais, dobrando a aposta, pois —eis aí o verdadeiro problema— o modelo ainda não foi completamente implantado.
Ora, sendo o livre mercado apenas um tipo ideal, incapaz de organizar efetivamente o conjunto da vida social, então, por definição, a implantação do modelo neoliberal está sempre incompleta.
Cria-se um discurso que, como os demais discursos ideológicos, externaliza suas dificuldades. Não depende do confronto com uma realidade que lhe seja exterior, já que abriga em si condições suficientes para se legitimar em quaisquer circunstâncias.
Paradoxalmente, os fracassos o fortalecem, pois ele sempre pode acionar sua fuga para frente: "Isso e aquilo estão atrapalhando o mercado". O argumento pode ser repetido ad infinitum, pois sempre haverá inúmeras instituições e práticas, formais e informais, que atrapalham o mercado.
Como a vida social não pode ser reduzida a operações de compra e venda, qualquer sociedade é muito mais complexa do que o mercado, qualquer uma contém, reproduz e recria inúmeras instâncias não mercantis. Elas existirão sempre e serão sempre as culpadas.
As deficiências do projeto neoliberal conduzem seus defensores à inevitável conclusão de que é preciso aprofundar esse mesmo projeto. A incapacidade de realizar-se é, ao mesmo tempo, uma fraqueza do modelo, no plano da realidade, e uma fonte do seu vigor, no plano da ideologia.
Vamos à questão central: na moderna economia mundial, os países que enriqueceram acima da média são aqueles que dominaram atividades que operam com rendimentos crescentes, induzem maior divisão do trabalho, são mais propensas a absorver mudanças tecnológicas, se inserem em mercados imperfeitos, com grandes barreiras à entrada de competidores, e constituem fortes sinergias com atividades afins.
Nunca a edificação de uma economia desse tipo foi comandada por cegos impulsos mercantis. Ela sempre resultou de projetos que associavam a busca de riqueza e poder.
A indústria foi o setor por excelência em que essas características estiveram presentes. Mais recentemente, alguns segmentos do setor de serviços de alta tecnologia passaram a apresentar tais propriedades. Todos, em algum momento, foram fortemente apoiados por Estados nacionais.
A outra ponta do espectro foi historicamente ocupada pelos países pobres, cujas economias, girando em torno da agricultura e da mineração, reproduziram as características opostas, permanecendo estacionadas em graus menores de produtividade e de complexidade. É impossível transitar espontaneamente de uma configuração estrutural a outra, pois ambas se repõem e se reafirmam.

BRASIL
No século 20, o Brasil ocupou uma posição intermediária, mas vem perdendo posições nas últimas décadas, sofrendo processos de desindustrialização e reprimarização de sua pauta exportadora.
Mais do que nunca, o país precisa voltar a ter um projeto nacional de desenvolvimento, que não poderá ser uma repetição da experiência anterior. Desenvolvimento, no século 21, é diferente do que foi em períodos passados. Novas questões estão postas. Uma delas é o papel do conhecimento.
Há muito tempo os países mais desenvolvidos abandonaram a busca de competitividade por meios espúrios, como diminuição de salários e aumento das jornadas de trabalho —o que, com a chamada reforma trabalhista, estamos implantando aqui.
Ao contrário, suas economias absorvem cada vez mais trabalho qualificado, justamente o mais bem remunerado, e deslocam para o exterior os processos produtivos mecânicos, repetitivos e devoradores de recursos naturais.
As populações desses países dedicam-se, em proporções crescentes, a atividades de pesquisa, desenvolvimento, projeto, planejamento, educação e afins. Aumentam as atividades laborativas dedicadas ao conhecimento e à informação, lato sensu, em relação àquelas diretamente realizadas sobre a matéria.
Mesmo sem realizar atividade manual, essa inteligência coletiva adensa as cadeias produtivas e multiplica a produtividade social do trabalho. As economias desenvolvidas do século 21 são economias do conhecimento.
Também sob esse ponto de vista o Brasil está muito atrasado: nossa economia vem se especializando em gerar postos de trabalho de baixa qualificação e baixa remuneração, o que se associa a um sistema educacional repleto de deficiências. Tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta, a situação da força de trabalho brasileira é muito precária. Essa trajetória precisa ser revertida.
Não nos iludamos: nosso lugar natural no sistema-mundo é muito periférico. O mundo quer de nós soja e outros alimentos, minério de ferro e outros minérios e, talvez, petróleo bruto, não muito mais que isso. Tentamos alterar esse lugar no século 20, com razoável esforço endógeno, mas nas últimas décadas perdemos a capacidade de fazer esse esforço.
Tornamo-nos uma nação de vontade fraca, que aceita o lugar periférico que lhe foi designado. Esse é o pano de fundo da nossa infindável crise política e dos estéreis debates em macroeconomia.

CRISE
O resultado está aí: passamos da condição de economia de alto crescimento para baixo crescimento; começamos a perder a base industrial que conquistamos; reprimarizamos a nossa pauta de exportações, aprofundando a posição periférica; colocamos o Estado nacional na condição de refém do sistema financeiro; em curto período, concentramos a população em grandes cidades, desordenadamente; expandimos a fronteira agrícola até as franjas da Amazônia, também de forma desordenada, instalando nas áreas novas uma estrutura de propriedade da terra ainda mais concentrada que a das áreas de ocupação secular.
Atuando de forma combinada, esses processos lançaram o Brasil em tremendos impasses. Há um mal-estar crônico e disseminado, que de tempos em tempos se torna agudo e dramático.
As pessoas reconhecem o difícil presente em que vivem e pressentem um futuro incerto para si e para seus filhos. A vontade de transformar as circunstâncias vigentes é clara, mas o caminho para isso permanece indefinido. A necessidade de mudar fica pendente, sem se realizar nem desaparecer. Isso é a crise.
Há muitos anos essa crise experimenta idas e vindas, tendendo a agravar-se, pois a única forma de solucioná-la —fazer o povo comandar a nação, pela primeira vez, para resgatá-la, reinventá-la e desenvolvê-la— não foi alcançada.
Nossa história recente é uma impressionante sequência de promessas frustradas, que —tudo indica— se renovarão em 2018. A política deixou de ser um instrumento de transformação, reduzida a doses cavalares de marketing e de uma infindável sucessão de pequenos acordos, tudo a serviço da conquista e da preservação de posições de poder.
O futuro que daí resulta é apenas o prolongamento do presente, pois não contém o caráter novo de um verdadeiro futuro. O país marca passo, sem sair do lugar. Sob esse ponto de vista, nossos partidos políticos são todos iguais.
Em vez de políticos que se adaptam ao que a sociedade é, ou parece ser, precisamos de líderes que aceitem correr o risco de pensar no que ela não é, nem parece ser, mas pode vir a ser. Para que possamos despertar qualidades novas que estejam latentes.
Onde eles estão?

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/01/1948250-brasil-precisa-de-lider-com-projeto-de-desenvolvimento-diz-cesar-benjamin.shtml. Título original: 'O Brasil se transformou numa nação de vontade fraca'. 


sábado, 6 de janeiro de 2018

Viagem no lago de si



As cenas do 'Brasil de Cristiane'

Por André Singer
(Cientista político – USP)

O governo Michel Temer passa por má fase, com dificuldade para achar quadros de reposição aos que deixam o navio intempestivamente. Não obstante, sempre encontra um modo de prestar serviços ao país. No caso, o de revelar, cruamente, a que ponto nos trouxe a crise que entra em seu quinto ano.
O prêmio concedido a Roberto Jefferson, presidente do PTB, com a nomeação da filha, Cristiane Brasil, para a pasta do Trabalho, mostra que o sucesso das operações anticorrupção pouco alterou os costumes políticos nacionais. Como se sabe, ao conceder a entrevista que deflagrou o mensalão, em 2005, Jefferson se autoincriminou. Para denunciar José Dirceu e o PT, teve que reconhecer a própria culpa. Passados 13 anos, cumprido um de prisão em regime fechado, lá está ele, impávido, de volta ao poder por meio da descendente.
A própria deputada escolhida aparece na delação da Odebrecht à Lava Jato, além de enrolada com processos trabalhistas (se bem que isso pode trazer conhecimento útil no posto que ocupará). Pai no mensalão; filha na Lava Jato. Nada disso importa. Sob o comando de Jefferson, o PTB deu 14 votos na Câmara pelo impeachment de Dilma, 14 contra o afastamento de Temer e promete outros tantos para a reforma da Previdência. É dando que se recebe.
E se alguém acha que essas agremiações clientelistas estão com os dias contados até a eleição de 2018, deveria ler com atenção o noticiário corrente. Fernando Henrique mandou dizer a Alckmin que ele precisa ser capaz de colar os cacos fisiológicos. Kassab, chefe de um deles, sinaliza que o PSD está disposto a conversar, apesar de ter um pré-candidato, Henrique Meirelles, no seu partido. O ministro Marun, homem de Eduardo Cunha, indica que o MDB também pode apoiar o governador paulista, apesar das mágoas, uma vez que este não se jogou a favor de Temer na hora do aperto, como fez Jefferson.
Enfim, a velha política vai se rearrumando. É possível até que da profusão de novos grupos — à direita, ao centro e à esquerda — saia alguma novidade interessante, mas o Congresso de 2019 não será muito distinto do que está aí. A classe política é o resultado de lenta sedimentação. Não será destruída nem construída do dia para a noite.
Há um erro fundamental em achar que processos espetaculares teriam o condão de substituir a camada atual de legisladores por uma nova em folha. Os políticos profissionais refletem a sociedade da qual emergem. Eles não mudarão enquanto esta não mudar.

PS: de acordo com Fernanda Calgaro, do "G1", o deputado do PSD-RJ que deve assumir com a vacância de Brasil foi condenado "por exploração sexual de menor". O parlamentar diz que a condenação foi política.

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/andresinger/. Título original: 'O Brasil de Cristiane'. 


quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Ânimo da finitude


"Odio il Capodanno"

Por Antonio Gramsci

Toda manhã, ao acordar mais uma vez sob o manto do céu, sinto que para mim é o primeiro dia do ano.
Por isso odeio estes anos novos a prazo fixo, que transformam a vida e o espírito humano em uma empresa comercial, com sua prestação de contas, seu balanço e suas previsões para a nova gestão. Eles fazem com que se perca o sentido de continuidade da vida e do espírito. Termina-se por acreditar a sério que entre um ano e outro exista uma solução de continuidade e comece uma nova história; fazem-se promessas e projetos, as pessoas se arrependem dos erros cometidos, etc. É um equívoco geral que afeta todas as datas.
Dizem que a cronologia é a ossatura da história. Pode-se admitir que sim. Mas também é preciso admitir que há quatro ou cinco datas fundamentais, que toda pessoa conserva gravadas no cérebro, datas que tiveram efeito devastador na história. Também elas são primeiros dias de ano. O Ano Novo da história romana, ou da Idade Média, ou da era moderna. Elas se tornaram tão presentes que nos surpreendemos a pensar algumas vezes que a vida na Itália começou em 752, e que 1490 ou 1492. São como montanhas que a humanidade ultrapassou de um só golpe para entrar em um novo mundo e em uma nova vida.
Com isso, a data converte-se em um fardo, um parapeito que impede que se veja que a história continua a se desenvolver de acordo com uma mesma linha fundamental, sem interrupções bruscas, como quando o filme se rompe no cinema e se abre um intervalo de luz ofuscante.
Por isso odeio o ano novo ano. Quero que cada manhã seja um ano novo para mim. A cada dia quero ajustar as contas comigo mesmo e renovar-me. Nenhum dia previamente estabelecido para o descanso. As pausas eu escolho sozinho, quando me sinto embriagado de vida intensa e desejo mergulhar na animalidade para extrair um novo vigor.
Nenhum disfarce espiritual. Cada hora da minha vida eu gostaria que fosse nova, ainda que vinculada às horas já passadas. Nenhum dia de júbilo coletivo obrigatório, a ser compartilhado com estranhos que não me interessam. Só porque festejaram os avós dos nossos avós, etc., teremos também nós de sentir a necessidade de festejar?

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Tradução ao português tendo por base o texto em espanhol tomado do Livro “Bajo la Mole - Fragmentos de Civilización”, de Antonio Gramsci. Editorial Sequitur, págs. 9-10 (tradução de Leandro Lanfredi). 


A respiração narrativa

Por Raimundo Carrero

Quem já leu o pós-escrito a O nome da rosa, de Umberto Eco, deve ter observado com atenção a técnica da “respiração narrativa” em que ele justifica a redação das primeiras cem páginas do romance famoso. Essas primeiras cem páginas pareciam inúteis e injustificáveis dentro da estrutura da obra. Correu a lenda, depois justificada, segundo a qual, o editor teria solicitado a Eco que retirasse estas páginas porque elas não conduziam a nada. A resposta do autor foi imediata: se o leitor não seguir estas páginas, não sentirá a respiração do texto, que é essencial. Durante a leitura — basta observar com atenção — o leitor, tenso e cansado, é conduzido ao monastério onde a história se desenvolve. Ocorre aí a respiração. Os leitores, quase todos, confessam que sentem vontade de desistir, forçam a leitura assim mesmo: forçam a leitura, mas param um pouco aqui, um pouco ali, cansam, e se perguntam: quando a história vai começar? O enredo, com certeza, não começou, mas a história e seu desenvolvimento estão em andamento. Daí a ansiedade, a expectativa. Eu mesmo passei por isso. Tive que começar e recomeçar inúmeras vezes. Às vezes me irritando: “não suporto mais esta conversa mole”, mas não desisti e segui, com angústia, mas segui.
Imagino a pergunta: “História é diferente de enredo?”. Sim, é diferente. E muito diferente. História é a narrativa plana, em que não há episódios intrigantes, suspenses, mudanças de planos, que são naturais no enredo, também chamado de intriga. No enredo acontecem ações sobre ações, que chamamos de cenas sobre cenas, às vezes cortadas por cenários sobre cenários, alongando ou reduzindo a narrativa, como se pode fazer numa sinfonia ou numa ópera. Na história, por exemplo, os cenários prevalecem sobre as cenas, que significam movimentos interiores rápidos e, às vezes, desarmônicos, tudo para seduzir e impressionar o leitor, sem tempo para respiração longa. Isso mesmo, respiração longa. Vejam bem: terminamos na técnica da respiração narrativa.
Quando era muito jovem, ginasiano, como se dizia na época, li um romance policial — de cujo título nem lembro mais — que me tomou o fôlego. Fôlego? Sim, ainda mais uma vez circulando em torno da respiração. Foi a leitura de uma manhã, sentado num banquinho, encantado com o enredo. Um romance policial é um romance de intrigas, de cenas. Por isso, Autran Dourado escreve mais ou menos assim: “enquanto o leitor se encanta com o enredo, o autor rouba a carteira do leitor”. Enredo. Já disse: cenas sobre cenas sobre cenas, onde até os cenários forjam intrigas e situações. Mas um romance é também um romance de história, com planos psicológicos, existenciais e vulgares, em que não se leva a uma conclusão espetacular, magnífica, mas a um plano superior de Beleza e de Encantamento.
O livro de Eco é romance de história — daí as primeiras cem páginas — e romance de enredo — vejam-se as ações dos monges.
Sempre que dou exemplos, gosto de mostrá-los para situar melhor o leitor, mas é óbvio que não poderei fazer isso com as cem páginas de Eco. Mesmo assim, leiam e analisem, por favor, as palavras iniciais do romance para ficar mais claro, embora o texto seja obscuro, sobretudo pelas citações em latim:
“No princípio era o verbo e o Verbo estava junto a Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto a Deus e o dever do monge fiel seria repetir cada dia com salmodiante humildade o único evento imodificável do qual se pode confirmar a incontrovertível verdade. Mas videmus nunc per speculum et in aenigmate e a verdade, ao invés de cara a cara e, manifesta-se deixando às vezes rastros ( ai, quão inelegíveis) no erro do mundo, tanto que precisamos calculá-los, soletrando os verdadeiros sinais, mesmo lá onde nos parece obscuros e quase entremeados por uma vontade totalmente voltada para o mal”.

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Raimundo Carrero é escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. Vive no Recife (PE).