Por incrível que pareça, é preciso assinalar, lembrando Hannah Arendt, que o mal não é uma categoria ontológica, nem tampouco é natureza ou metafísica. É da dimensão histórica que se trata. Ele é produzido por seres humanos e se desenvolve onde encontra guarida para tanto. Nesse sentido, a trivialização da violência, correspondendo ao vazio de pensamento, abre o espaço de instalação do mal. É em ambientes assim que estão a se acomodar os 'novos nazi-fascistas' e a sua pregação odiosa contra judeus e outras etnias. E ainda não passou nem um século da carnificina praticada durante a Segunda Guerra Mundial. O texto aí abaixo refere-se ao chocante movimento nazista nos Estados Unidos. Mas serve também de ponto de reflexão para o Brasil destes tempos que estamos a viver.
Por Petula Devorak
(The Washington Post)
O presidente Donald Trump
acendeu cada uma daquelas tochas em Charlottesville. Sim, os supremacistas
brancos sempre estiveram entre nós. Uma marcha de racistas fanáticos não é
surpresa para qualquer pessoa familiarizada com nossa história, especialmente aqueles
que têm sido o alvo de ódio e violência há séculos.
Mas quando a multidão de homens brancos desfilava em
Charlottesville, carregando tochas flamejantes na sexta-feira à noite, gritando
"Heil Trump" como preliminar para um dia de violentos confrontos com
os opositores aos protestos, que deixaram três pessoas mortas, mostraram ao
mundo que os Estados Unidos estão mais uma vez brincando com fogo.
E Trump é quem está com os fósforos.
O simbolismo não foi sutil. Tochas, campanhas de
perseguição, cruzes em chamas - tudo isso remete à consolidação de nosso país.
Todos aqueles irmãos white-power sabiam exatamente o tipo de medo que tentavam
evocar, mesmo se suas tochas tenham vindo do pátio de liquidações da temporada
na Home Depot, varejista de produtos para o lar e construção.
As bandeiras nazistas e
confederadas são igualmente desagradáveis para os milhões de americanos que
perderam parentes no Holocausto, na luta contra Hitler ou têm vívidas memórias
da incansável opressão racial, incluindo linchamentos, bombas em igrejas e
assassinatos nas mãos da Ku Klux Klan e de outros terroristas da supremacia
branca.
Agora vemos a transmissão ao vivo daquele mesmo ódio,
enquanto Trump o ignora. Foi há 90 anos que Fred Trump, o pai de Donald Trump,
foi preso por não conseguir dispersar-se de uma manifestação da Ku Klux Klan em
Queens muito parecida com o que foi visto em Charlottesville.
Só que hoje em dia, não há os capuzes.
Donald Trump deu a todos a permissão de tirar tais capuzes
com seu piscar de olhos, sinais de aprovação e recusa em assumir uma postura
moral na questão do rancor racial e da intimidação durante sua campanha e
durante os primeiros seis meses de sua presidência. Ele já gastou anos
colocando em dúvida o local de nascimento e a legitimidade do presidente Barak
Obama, o primeiro negro no posto de comandante supremo da nação. E aqueles que
odeiam o amam por isso.
No sábado, o presidente manteve o silêncio durante horas,
em seu clube de golfe em Nova Jersey, mesmo que o ex-grande mago da KKK David
Duke tenha declarado Charlottesville como "momento decisivo" para um
movimento que pretende "cumprir as promessas de Donald Trump".
Primeiro, ele apresentou um vago tuíte, condenando o ódio
sem qualquer referência explícita às centenas de homens, alguns deles usando
chapéus vermelhos prometendo Tornar os Estados Unidos Grandes Novamente, que
cantavam "Vidas de brancos importam", "Vocês não vão nos
substituir" e "Judeus não vão nos substituir".
Foi só depois que um jovem de 20 anos de Ohio arremessou
seu automóvel contra um grupo de manifestantes contra a marcha supremacista,
ferindo 19 e matando uma mulher, que Trump referiu-se ao ataque terrorista em
seu próprio território.
"Nós condenamos nos termos mais vigorosos possíveis
essa ofensiva demonstração de ódio, fanatismo e violência de muitos lados. De
muitos lados," ele disse.
Errado.
"Há apenas um lado", replicou sucintamente pelo
Twitter o ex-vice-presidente Joe Biden.
Trump tem tanto medo de ofender sua tribo das tochas, que
nem mês usou o "eu" em sua débil declaração.
No domingo de manhã, sua filha Ivanka Trump finalmente
referiu-se ao câncer que está no centro desse terrorismo doméstico.
"Não deveria haver lugar na sociedade para racismo,
supremacia branca e neonazistas", ela declarou no Twitter.
Ela, porém, não é a comandante-chefe.
Nós somos aqueles que têm extinguir o incêndio que o
nosso presidente ateou. Democratas, republicanos, independentes, não importa.
Todos nós devemos rejeitar o que foi desencadeado nesse país. E isso já está
acontecendo.
O ex-governador republicano de Arkansas, Mike Huckabee,
pai da secretária de imprensa de Trump, Sarah Huckabee Sanders, também mandou
mensagem pelo Twitter: "Os disparates da supremacia branca são o pior tipo
de racismo - é diabólico e uma perversão da verdade de Deus sequer pensar que
nosso Criador dê mais valor a alguns que a outros".
O senador Orrin G. Hatch, republicano de Utah, concordou;
"Devemos chamar o diabo pelo seu nome. Meu irmão não deu a vida combatendo
Hitler para que ideias nazistas continuem sem serem contestadas aqui em
casa".
As tochas em Charlottesville são um perigoso mostruário
na guerra de culturas em curso nos Estados Unidos.
Precisamos parar de atribuir o reaparecimento do racismo
a desigualdades de renda ou perda de empregos e incluí-lo no grande conflito
que abrange republicanos versus democratas, progressistas versus conservadores,
setor urbano versus o rural, que está no centro do debate na nossa sociedade.
A Universidade da Virgínia, onde os extremistas brancos
realizaram sua marcha com as tochas acesas, é o lar de James Davison Hunter, o
sociólogo que ajudou a definir a guerra cultural americana contemporânea. Em
1992 - quando a eleição presidencial americana foi abalada pelo debate sobre a
personagem de uma mãe solteira (Murphy Brown) - Hunter lembrou-nos que tais
escaramuças culturais não são apenas retóricas ou "palavrório
político".
"De forma cumulativa, tais disputas equivalem a uma
luta fundamental sobre os `princípios básicos' que adotaremos para ordenar
nossa vida juntos", escreveu Hunter no Washington Post. "Por meio
dessas questões aparentemente discrepantes nós nos encontraremos, ou em outras
palavras, em um esforço para nos definir como americanos e decidir qual tipo de
sociedade queremos construir e manter".
Sim, existem muitos lados na guerra de culturas na qual
os racistas continuam tentando engatar também seu vagão flamejante.
Mas essa abominação que ocorreu em Charlottesville no fim
de semana não está em debate. Não é uma postura cultural ou plataforma
política. Racismo, fanatismo e terrorismo em nome de um nacionalismo branco não
é um "lado". É um veneno.
E fazer qualquer outra coisa além chamá-lo pelo que é,
identificando-o e apagando-o é simplesmente contrário às instituições
americanas.
--------------------------
Fonte: http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,analise-americanos-estao-brincando-com-fogo-diante-da-ameaca-supremacista-branca,70001935056.