Em The Enigma of Reason (O Enigma da Razão), entre outras coisas, Hugo
Mercier e Dan Sperber dizem, por exemplo, que, no processo de desenvolvimento
da razão, está presente também a parcialidade de raciocínio. Isso nos ajuda,
possivelmente, a entender como boas causas terminam por cair prisioneiras na
gaiola do extremismo e do fanatismo. Ou do populismo com o seu “combustível de
espumas de palavras”. Provavelmente,
nada lhes pode ser tão prejudicial como esses fatores. Talvez isso seja o
reverso da medalha dos “fazedores de média” que, renunciando a condição de
analistas sociais, norteiam a sua intervenção pública conforme os editoriais da
grande imprensa. Reverso, o que está no
verso. Logo, é algo que envolve as perspectivas diversas do espectro político. Nessa
toada, pisotear teorias e conceitos é algo que acontece tal qual a ocorrência
de um fenômeno da natureza – de forma natural. No rumo dessa prosa, assim como
os desatinos dos opiniáticos sobre a Venezuela, também agora estamos a saber, no
reverso, que há uma ‘Doutrina Trump sistematizada em relação à América Latina’.
Para quem acompanha a conjuntura latino-americana há já um bom par de anos, diante disso, só
tem algo a dizer: Haja impressionismo ideológico! Por essas e outras, no contexto da crise
brasileira, vai-se pondo de parte algo básico, premissas aglutinadoras da Nação
que pactuam a convivência entre diferentes. Trilha-se, assim, o caminho da
anomia. A esse respeito, vale a pena ler o artigo aí abaixo.
Por Francisco
Ferraz
(Professor de
Ciência Política, ex-Reitor da UFRGS)
Vivemos uma
crise multifacetada: econômica, política, social jurídica, cultural, ideológica
e histórica. Mais grave que os aspectos econômicos, sociológicos ou jurídicos
da crise, contudo é seu agravamento político. Estamos num rumo perigoso. No
Brasil tudo está em questão. A isso nos levou a confusão cultural, normativa e
comportamental que resultou da dilaceração do tecido social.
Qualquer sociedade democrática precisa
institucionalizar valores básicos, subscritos por sua população, para assegurar
sua estabilidade e um ordenado e legal processo político de mudança. Quando não
há consenso em torno desses valores básicos ou quando se instala um conflito
radical entre eles, a Nação tende a se dividir em dois blocos radicais e
excludentes “qui hurlent de se trouver ensemble”.
É a conhecida situação da curva em U, em que
o poder foge do centro e se aloja nos extremos. Caso da guerra civil, o pior
dos conflitos, cujo exemplo emblemático é a Guerra Civil Espanhola, que em
julho de 1936, mais que dois blocos, deu origem a “duas Espanhas”. Nessa
situação, parentes e amigos evitam se encontrar, tal a hostilidade que os
valores políticos antagônicos provocam entre eles. A guerra civil é a prova
definitiva de que o ódio na política é muito mais forte que o ódio no amor.
Não nos encontramos nessa situação. Mas já
estivemos muito mais longe dela... Entre a Espanha da guerra civil e o Brasil
da crise, a Venezuela bolivariana de Maduro já se encontra muito próxima da
guerra civil. Estamos ainda longe da situação espanhola, mas não tão longe da
venezuelana. Atente-se para alguns valores essenciais à vida social organizada
que se encontram em conflito, contestação e deslegitimação, no Brasil.
• Democracia direta para corroer a democracia
representativa – A única condenação legítima é pelo voto: implica
desqualificação da legislação penal; pressão por convocação de constituintes,
plebiscitos, referendos e reformas políticas para substituir competências já
definidas do Legislativo e do STF; manifestações com militantes “pagos” para
pressionar, e forçar, decisões legislativas ou jurídicas em normal tramitação
no Congresso e no STF.
• Quebra do consenso, tudo está em questão –
Redefinição contra legem da família,
do regime jurídico do funcionalismo (greve), da eleição direta de dirigentes de
órgãos públicos.
Família: qual sua conformação em termos de
gêneros? Malicioso enquadramento da discussão família tradicional x família
moderna. Sexo: escolhe-se ou é predeterminado ao nascimento? Uso de sanitários
é de livre escolha?
Democracia: qual a verdadeira democracia, a
representativa ou a democracia direta? Qual o valor estruturante da democracia,
igualdade e liberdade política ou igualdade econômica e social? Liberdade
econômica macro: quem deve ocupar-se da atividade econômica: a livre-iniciativa
ou os órgãos do Estado?
Propriedade privada é legítima e legalmente
protegida ou tem legitimidade discutível e precária? A “invasão” é um delito ou
é um direito?
O lucro é uma conquista legítima ou um roubo,
sujeito à expropriação? O mercado é necessário ou prejudicial?
A escola deve transmitir conhecimentos ou
ideologia? Educação ou doutrinação? É legítimo e legal a censura por deliberada
exclusão?
O criminoso é
responsável por seus atos ou vítima? Liberdade de imprensa é uma garantia de
liberdade ou é o abuso dos proprietários? Qual o critério legítimo para a
promoção salarial ou na carreira: desempenho (mérito) ou confiança política?
Símbolos religiosos não podem ser expostos em
público ou é direito de qualquer religião expor seus símbolos? A vida humana é
sagrada ou instrumental?
O que é a legalidade? O Estado Democrático de
Direito, suas instituições e normatividade, ou esses são apenas atributos
formais, inferiores aos critérios substantivos? O que é golpe de Estado, um
conceito jurídico-político ou uma expressão usada na disputa política de
significado arbitrário? Como entender esta frase: seguir a virtude prejudica o
País (prejuízos e custos da Lava Jato)?
• Destruição da dignidade dos Poderes e das
funções – Plenário do Congresso como palco para danças folclóricas, concentração
de minorias organizadas. Cenas de pugilato, cuspidas. Obstrução invasiva
apoiada por legisladores.
Como se constata, tudo é contestado. E quando
tudo é contestado, corrói-se o consenso básico. Não se trata de um consenso
absoluto e irreal. Trata-se de um consenso em valores básicos, centrais e de
elevada hierarquia, mediante o qual a política e a administração são
previsíveis; contêm regras que os cidadãos conhecem, praticam e as instituições
protegem; e se consolida numa organização política democrática, unida em torno
desses valores e dividida em torno de políticas públicas.
Quando tal não sucede, quando tudo é
contestado, quando tudo está sempre aberto a mudanças, o que resulta é uma
democracia instável, imprevisível, de precária legitimidade e duração. Tais
democracias tendem a desembocar no totalitarismo, na ditadura populista ou na
cronificação da instabilidade, o que parece ser o caso do Brasil.
A listagem apresentada permite identificar,
no mínimo, 40 questões intensa e radicalmente divisivas. Considere-se,
entretanto, que nenhuma é de importância periférica ou secundária. São todas
elas indispensáveis para a configuração política, econômica, social, jurídica e
cultural do País e para a qualidade de sua democracia.
A indagação que se impõe é de hierarquia
correspondente à gravidade do nosso desafio como nação democrática: como uma
nação com tal grau de conflito em seus valores básicos poderá construir e
manter uma democracia moderna, autêntica e estável?
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Título original: 'A corrosão do consenso básico'. Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-corrosao-do-consenso-basico,70001925442