domingo, 13 de agosto de 2017

No caminho da anomia: a corrosão do consenso básico

Em The Enigma of Reason (O Enigma da Razão), entre outras coisas, Hugo Mercier e Dan Sperber dizem, por exemplo, que, no processo de desenvolvimento da razão, está presente também a parcialidade de raciocínio. Isso nos ajuda, possivelmente, a entender como boas causas terminam por cair prisioneiras na gaiola do extremismo e do fanatismo. Ou do populismo com o seu “combustível de espumas de palavras”.  Provavelmente, nada lhes pode ser tão prejudicial como esses fatores. Talvez isso seja o reverso da medalha dos “fazedores de média” que, renunciando a condição de analistas sociais, norteiam a sua intervenção pública conforme os editoriais da grande imprensa. Reverso, o que está no verso. Logo, é algo que envolve as perspectivas diversas do espectro político. Nessa toada, pisotear teorias e conceitos é algo que acontece tal qual a ocorrência de um fenômeno da natureza – de forma natural. No rumo dessa prosa, assim como os desatinos dos opiniáticos sobre a Venezuela, também agora estamos a saber, no reverso, que há uma ‘Doutrina Trump sistematizada em relação à América Latina’. Para quem acompanha a conjuntura latino-americana há já um bom par de anos, diante disso, só tem algo a dizer: Haja impressionismo ideológico!  Por essas e outras, no contexto da crise brasileira, vai-se pondo de parte algo básico, premissas aglutinadoras da Nação que pactuam a convivência entre diferentes. Trilha-se, assim, o caminho da anomia. A esse respeito, vale a pena ler o artigo aí abaixo.

Pollock


Por Francisco Ferraz
(Professor de Ciência Política, ex-Reitor da UFRGS)

Vivemos uma crise multifacetada: econômica, política, social jurídica, cultural, ideológica e histórica. Mais grave que os aspectos econômicos, sociológicos ou jurídicos da crise, contudo é seu agravamento político. Estamos num rumo perigoso. No Brasil tudo está em questão. A isso nos levou a confusão cultural, normativa e comportamental que resultou da dilaceração do tecido social.
Qualquer sociedade democrática precisa institucionalizar valores básicos, subscritos por sua população, para assegurar sua estabilidade e um ordenado e legal processo político de mudança. Quando não há consenso em torno desses valores básicos ou quando se instala um conflito radical entre eles, a Nação tende a se dividir em dois blocos radicais e excludentes “qui hurlent de se trouver ensemble”.
É a conhecida situação da curva em U, em que o poder foge do centro e se aloja nos extremos. Caso da guerra civil, o pior dos conflitos, cujo exemplo emblemático é a Guerra Civil Espanhola, que em julho de 1936, mais que dois blocos, deu origem a “duas Espanhas”. Nessa situação, parentes e amigos evitam se encontrar, tal a hostilidade que os valores políticos antagônicos provocam entre eles. A guerra civil é a prova definitiva de que o ódio na política é muito mais forte que o ódio no amor.
Não nos encontramos nessa situação. Mas já estivemos muito mais longe dela... Entre a Espanha da guerra civil e o Brasil da crise, a Venezuela bolivariana de Maduro já se encontra muito próxima da guerra civil. Estamos ainda longe da situação espanhola, mas não tão longe da venezuelana. Atente-se para alguns valores essenciais à vida social organizada que se encontram em conflito, contestação e deslegitimação, no Brasil.
• Democracia direta para corroer a democracia representativa – A única condenação legítima é pelo voto: implica desqualificação da legislação penal; pressão por convocação de constituintes, plebiscitos, referendos e reformas políticas para substituir competências já definidas do Legislativo e do STF; manifestações com militantes “pagos” para pressionar, e forçar, decisões legislativas ou jurídicas em normal tramitação no Congresso e no STF.
• Quebra do consenso, tudo está em questão – Redefinição contra legem da família, do regime jurídico do funcionalismo (greve), da eleição direta de dirigentes de órgãos públicos.
Família: qual sua conformação em termos de gêneros? Malicioso enquadramento da discussão família tradicional x família moderna. Sexo: escolhe-se ou é predeterminado ao nascimento? Uso de sanitários é de livre escolha?
Democracia: qual a verdadeira democracia, a representativa ou a democracia direta? Qual o valor estruturante da democracia, igualdade e liberdade política ou igualdade econômica e social? Liberdade econômica macro: quem deve ocupar-se da atividade econômica: a livre-iniciativa ou os órgãos do Estado?
Propriedade privada é legítima e legalmente protegida ou tem legitimidade discutível e precária? A “invasão” é um delito ou é um direito?
O lucro é uma conquista legítima ou um roubo, sujeito à expropriação? O mercado é necessário ou prejudicial?
A escola deve transmitir conhecimentos ou ideologia? Educação ou doutrinação? É legítimo e legal a censura por deliberada exclusão?
O criminoso é responsável por seus atos ou vítima? Liberdade de imprensa é uma garantia de liberdade ou é o abuso dos proprietários? Qual o critério legítimo para a promoção salarial ou na carreira: desempenho (mérito) ou confiança política?
Símbolos religiosos não podem ser expostos em público ou é direito de qualquer religião expor seus símbolos? A vida humana é sagrada ou instrumental?
O que é a legalidade? O Estado Democrático de Direito, suas instituições e normatividade, ou esses são apenas atributos formais, inferiores aos critérios substantivos? O que é golpe de Estado, um conceito jurídico-político ou uma expressão usada na disputa política de significado arbitrário? Como entender esta frase: seguir a virtude prejudica o País (prejuízos e custos da Lava Jato)?
• Destruição da dignidade dos Poderes e das funções – Plenário do Congresso como palco para danças folclóricas, concentração de minorias organizadas. Cenas de pugilato, cuspidas. Obstrução invasiva apoiada por legisladores.
Como se constata, tudo é contestado. E quando tudo é contestado, corrói-se o consenso básico. Não se trata de um consenso absoluto e irreal. Trata-se de um consenso em valores básicos, centrais e de elevada hierarquia, mediante o qual a política e a administração são previsíveis; contêm regras que os cidadãos conhecem, praticam e as instituições protegem; e se consolida numa organização política democrática, unida em torno desses valores e dividida em torno de políticas públicas.
Quando tal não sucede, quando tudo é contestado, quando tudo está sempre aberto a mudanças, o que resulta é uma democracia instável, imprevisível, de precária legitimidade e duração. Tais democracias tendem a desembocar no totalitarismo, na ditadura populista ou na cronificação da instabilidade, o que parece ser o caso do Brasil.
A listagem apresentada permite identificar, no mínimo, 40 questões intensa e radicalmente divisivas. Considere-se, entretanto, que nenhuma é de importância periférica ou secundária. São todas elas indispensáveis para a configuração política, econômica, social, jurídica e cultural do País e para a qualidade de sua democracia.
A indagação que se impõe é de hierarquia correspondente à gravidade do nosso desafio como nação democrática: como uma nação com tal grau de conflito em seus valores básicos poderá construir e manter uma democracia moderna, autêntica e estável?


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Título original: 'A corrosão do consenso básico'. Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-corrosao-do-consenso-basico,70001925442