De Émile Durkheim - apresentação e tradução de Raquel Weis.
APRESENTAÇÃO
Enquanto
preparava sua tese de doutorado sobre a formação da Ciência da Educação como
disciplina universitária, Jacqueline Gautherin2 deparou-se
com uma grata surpresa. Suas pesquisas nos arquivos da biblioteca da École
Normale d'Instituteurs de Paris — atualmente, Institut Universitaire de
Formation de Maîtres (IUFM) — levaram-na a descobrir, entre as pastas
empoeiradas que guardavam conferências realizadas no início do século XX, um
texto inédito de Émile Durkheim. Tratava-se da conferência "O ensino da
moral na escola primária", proferida na École Normale de Auteuil na
primeira década do século XX, cujo conteúdo permaneceu desconhecido por mais de
oitenta anos, vindo a ser publicado somente em 1992, na Revue Française
de Sociologie3.
É verdade que
vários textos de Durkheim foram publicados postumamente4,
guardando para si certo ineditismo. Porém, o longo período em que
particularmente este ficou submetido à "crítica roedora dos ratos" é
algo digno de destaque. É provável que seu desconhecimento se deva à prática de
arquivamento de conferências, comum à época. Usualmente, as palestras de
pessoas ilustres eram taquigrafadas e, em seguida, datilografadas, para serem
encadernadas por assunto, quando, então, eram anexadas aos arquivos da
biblioteca. Tais arquivamentos, porém, eram feitos sem qualquer rigor
cronológico e sem qualquer tipo de indexação, o que viria a dificultar a
localização dos textos, assim como a determinação precisa das datas dos
pronunciamentos. É o caso desta conferência que, segundo consta no registro,
entrou no arquivo em 1º- de abril de 1910. É quase certo, entretanto, que a
conferência tenha sido a primeira de um ciclo iniciado no primeiro trimestre ou
do ano letivo de 1908-1909 ou do ano letivo de 1909-1910, período no qual
Durkheim estaria envolvido com a análise da "História das doutrinas
pedagógicas" — tema de um curso ministrado por ele na Sorbonne — e também
com a redação de alguns textos sobre a religião.
A despeito das
circunstâncias peculiares em que esse texto foi encontrado, o que já o torna
objeto de particular interesse, sua relevância reside também no conteúdo.
Trata-se de uma síntese bastante clara, simples e didática de sua proposta de
uma educação moral de fundamento laico que, na verdade, diz respeito a um dos
aspectos mais importantes de sua obra, aquele que contempla o conjunto de suas
proposições normativas5.
De modo geral, a parte normativa da obra durkheimiana (portanto, inclusive o
texto em questão) pode ser entendida como um ponto de interseção entre a parte
teórica, que nesse caso se refere especialmente aos conceitos de educação e de
moral6,
a parte empírica7,
e sua posição ideológico-política, qual seja, a de um "republicanismo
liberal"8.
Sua
contribuição no campo da educação transcende os limites da positividade
científica, uma vez que avança também no terreno normativo, como no caso dessa
conferência, em que Durkheim falou aos futuros protagonistas da nova educação
que se pretendia institucionalizar na França. Em relação a isso, é preciso
chamar a atenção para o fato de que um dos elementos mais importantes a ser
levado em consideração é a constante referência à religião e às analogias
realizadas entre Deus e sociedade, argumentos que podem soar estranhos ao
leitor contemporâneo, levando a corroborar a tese, bastante difundida, de que a
pedagogia durkheimiana teria apenas contribuído para reforçar a heteronomia,
característica já presente na educação religiosa.
Uma outra
leitura do texto é aquela que procura alinhar-se aos novos paradigmas de
interpretação de sua obra9,
que resulta mais profícua para o entendimento do pensamento do autor. Com essa
perspectiva, o que merece ser considerado são três dimensões implicadas nessa
questão. Em primeiro lugar, o esforço do autor em combater a hegemonia da
Igreja católica no campo da educação primária, com o argumento de que não seria
suficiente realizar um ensino leigo da moral, mas seria imprescindível o ensino
de uma moral laica. A segunda dimensão refere-se à tese — desenvolvida em maior
detalhe em trabalhos ulteriores — de que a verdadeira origem de Deus não é
outra senão a sociedade, o que lhe permitiu mostrar, ao mesmo tempo, a origem
humana da divindade e o caráter sagrado que se atribui à moralidade.
Finalmente, com esse argumento sobre a analogia entre Deus e a sociedade, o
autor pôde também defender que uma educação racional, que revela a origem
social da moralidade, é a única que pode forjar nos indivíduos aquilo a que chamou
de "espírito de autonomia"10.
No que se
refere à estrutura do texto, é possível dividi-lo em quatro etapas
fundamentais. Em primeiro lugar, o autor procurou caracterizar a importância da
moral, definindo-a como um conjunto particular de regras, as quais possuem
valor maior do que todas as outras coisas humanas. Em seguida, defendeu a idéia
de que o valor incomensurável dessas regras se deve ao fato de a sociedade ser
o verdadeiro fundamento da moral, e por essa razão as regras
morais devem ser amadas — não obstante exijam constantes abnegações de nossos
desejos. O próximo passo foi afirmar que uma sociedade não pode ter outra moral
senão aquela que já está contida em sua estrutura. Na última parte, procurou
explicar como o ensino de uma moral laica poderia ser
realizado na prática, sendo a função primordial da educação
formal apresentar meios de justificação racional para as regras morais.
Para concluir,
é interessante notar que o caráter de oralidade do texto — lembrando que se
trata de uma conferência —, datado da última década da carreira do autor,
resultou em uma exposição simples e até bastante didática de algumas das
principais teses concebidas anteriormente. Dessa forma, essa tradução, que
agora chega ao público brasileiro pela Novos Estudos Cebrap,
consiste num importante registro do pensamento de Émile Durkheim e, justamente
por essa característica de síntese, permite um acesso original a alguns dos
principais elementos que estruturam a teoria desse autor clássico da
Sociologia.
Há quase trinta
anos, perseguimos na França um empreendimento pedagógico que certamente está
entre os mais ousados que já se tentou realizar até o momento. Decidimos
ensinar a moral para nossas crianças das escolas primárias em termos puramente
laicos. Estou entre aqueles que acreditam que esse empreendimento é necessário
e possível. Também estou convencido de que uma revolução como essa não pode ser
levada a cabo sem algum sacrifício. Decerto, isso é muito menos simples do que
imaginavam aqueles homens de valor e cheios de fé11,
a quem, aliás, devemos o grande mérito de ter tomado essa iniciativa. Isso nos
explica o porquê, apesar do zelo e do ardor daqueles mestres, de os resultados
obtidos ainda deixarem muito a desejar.
Sob diferentes
aspectos, essa questão tem sido uma das principais preocupações de toda a minha
vida; precisamente por isso é que pensei que esse poderia ser o tema mais
pertinente acerca do qual eu poderia me ocupar hoje. Decerto, o problema é
demasiado complexo, demasiado difícil, para que seja possível tratá-lo em toda
a sua extensão no espaço de uma conferência. Para fazer vocês compreenderem e
para justificar o quanto é necessário um método conveniente para o ensino da
moral laica, e como tal método deve aplicar-se com todo o rigor às coisas
particulares, seria necessário um ano inteiro, ou até mais do que isso. Porém,
como me dirijo aqui a espíritos preparados, pensei que, mesmo no pouco tempo de
que disponho, não seria impossível fazer ao menos entrever o rumo em que deve
ser orientado esse ensino da moral laica na escola primária; pensei que não
seria impossível dar a vocês ao menos alguma noção da idéia diretriz na qual o
ensino da moral deve inspirar-se. É isso o que tentarei fazer.
Eis aqui como
se deve considerar o problema: trata-se de saber como é possível ensinar a
moral sem se apoiar em nenhuma espécie de religião revelada, tampouco em
qualquer teologia racional. Não que eu pretenda questionar o direito à
existência dessas teologias, apenas acredito que as doutrinas metafísicas,
evidentemente, não são acessíveis às crianças. Estamos diante da
impossibilidade de nos utilizarmos delas na escola primária. Deixemos, pois,
tais teorias de lado.
Porém, para que
estejamos autorizados a prescindir das religiões é preciso que tenhamos razões
suficientes para crer que podemos cumprir {essa tarefa}12 melhor
ou tão bem quanto elas. É necessário que tenhamos motivos para acreditar que
somos capazes de prestar os mesmos serviços e, por conseguinte, nossa primeira
preocupação deve ser buscar quais são os serviços que as religiões têm
prestado, de modo que possamos perceber se estamos em condições de satisfazer
às mesmas necessidades, mesmo que de outra maneira.
Enfim, vocês
podem compreender que a aliança selada antigamente entre a moral e a religião
não pode ser apenas o produto de uma interpretação do homem. Há séculos as
idéias morais têm se abrigado nas idéias religiosas e, durante muito tempo,
moral e religião foram confundidas. Pois bem, uma afinidade tão estreita entre
essas duas espécies de idéias, entre essas duas classes de concepções, deve,
evidentemente, corresponder a algo real; deve, evidentemente, em alguma medida,
fundar-se na natureza das coisas.
Vou mostrar a
vocês o caráter essencial da moral; aquilo que a distingue de tudo o que ela
não é. O que caracteriza as coisas morais, o que as distingue das demais coisas
humanas, é o valor incomensurável que lhes atribuímos em detrimento de todas as
demais coisas que desejam os homens. Para nos assegurar disso, deixemos de lado
as teorias dos filósofos, deixemos de lado seus livros. Esses filósofos, para
serem compreendidos, tentaram reduzir seus sistemas a algumas fórmulas simples,
a algumas regras nas quais suas concepções estavam mais ou menos alteradas,
para torná-las mais ou menos inteligíveis à massa. Deixemos de lado, pois, a
moral dos livros; interroguemos a consciência pública tal como ela fala, tal
como ela se exprime ao nosso redor.
Não resta
dúvida de que qualquer consciência reta, hoje como outrora, em todos os países
e em todos os tempos, tenha atribuído um valor incomparável aos bens morais,
não admitindo nenhuma medida comum entre esses bens e os demais bens
perseguidos pelo homem. Podemos até admitir que se coloquem sobre os pratos de
uma balança os interesses industriais, de um lado, e os interesses da higiene,
de outro. Podemos admitir que se faça um balanço entre os interesses da ciência
e aqueles da arte. Pode-se fazer, por exemplo, um balanço entre as vantagens de
uma reforma sanitária e o seu custo; pode-se verificar se os inconvenientes
sanitários de uma prática industrial são compensados por suas vantagens
econômicas. Podemos questionar se o estado de estagnação da civilização em um
dado país não pode ser compensado pelo progresso da ciência, ou vice-versa.
Contudo, aquilo
que não podemos admitir, sem sentir imediatamente ecoar um protesto em nosso
interior, é que os progressos da imoralidade possam ser compensados pelos
progressos da indústria, ou pelos progressos da arte, ou da ciência. Não
podemos conceber que o valor econômico, artístico, científico, de um lado, e o
valor moral, de outro, possam ser — em qualquer medida — concebidos como
equivalentes. Não podemos conceber que entre essas duas ordens de valor possa
haver uma medida comum, e isso porque a própria moral jamais ensinará que a
imoralidade pode ser ignorada, compensada por uma vantagem econômica ou
científica. A imoralidade de uma sociedade não será menor porque esta pode
contar com numerosos artistas, com muitos sábios ou com grandes parques
industriais. Por menor que seja o lugar que a moral ocupe na ordem das coisas
humanas, nossas consciências devem dar a ela um lugar à parte.
De onde provém,
então, essa importância particular que atribuímos à moral? Analisemos a vida
moral do indivíduo. Toda a vida moral do homem é governada por um certo número
de regras, de princípios, de máximas, de ações que nos indicam ou nos
prescrevem como devemos agir em diversas circunstâncias. A moral é um sistema
de regras.
Porém, a
existência dessas regras, dessas máximas, que determinam a ação, não é algo
particular à vida moral. Não existe profissão que não tenha regras a serem
observadas. Todas as classes profissionais têm suas técnicas, ou seja, o código
de princípios que consagrou seus procedimentos, que consolidou a profissão. O
oleiro que faz os seus tijolos tem sua própria técnica, assim como o médico tem
suas regras para com seus pacientes, o professor com seus ensinamentos e o
engenheiro em sua fábrica. Toda a nossa vida física está dominada pelas
técnicas da higiene e da medicina. Existe um conjunto de regras que devemos
cumprir se desejamos permanecer saudáveis ou se desejamos nos curar de alguma
enfermidade. Conhecemos essas regras por meio dos médicos, mas nem por isso
elas deixam de existir por si próprias. Essas regras, essas leis da técnica
profissional, da higiene, têm um caráter próprio, um caráter utilitário:
submetemo-nos a elas porque nos tornam saudáveis, porque os testes a que essas
regras foram submetidas acabaram por consagrá-las, porque as experiências
passadas nos garantem o valor de seu princípio. Os homens se sentiram bem as
seguindo durante tanto tempo que temos razões para crer que também nos
sentiremos melhor se assim fizermos. Submetemo-nos a essas regras, digo
claramente, porque esperamos obter resultados vantajosos dessa submissão. Se
nós agimos conforme as regras de higiene, é porque essa é a melhor maneira de
prevenir enfermidades; executamos todas as ordens do médico porque é a melhor
maneira de curar uma doença. Em tais circunstâncias a nossa conduta está sempre
determinada por uma causa: um resultado desagradável ao qual iremos nos expor
no caso de violação dos princípios; agradável se os seguirmos. São sempre
considerações utilitárias que nos guiam: é a natureza intrínseca do ato
prescrito e suas prováveis conseqüências; é o desejo de ver que esse ato produz
resultados [agradáveis].
Tudo é muito
diferente no que concerne às regras da moral. Se as violamos, corremos o risco
de sermos postos à margem, de quarentena, isolados. Já não falarão conosco da
mesma maneira, não nos tratarão do mesmo modo, demonstrar-nos-ão uma estima
menor e nos manifestarão até mesmo desprezo. Se a violação é muito forte, a
própria sociedade irá nos golpear. Eis as conseqüências desagradáveis de nossa
conduta. Porém, é também um fato universal que para que um ato seja moral, para
que, enfim, um ato possa ser considerado moral pela consciência pública, não
basta que esteja materialmente de acordo com a regra que o prescreve, não basta
que seja apenas cumprido o que foi ordenado. É necessário que a ação não se dê
por temor das penas, tampouco pelos desejos de recompensa. A consciência moral
tem sido sempre unânime a esse respeito: um ato não pode ser considerado moral
se o realizamos para evitar penalidades ou para buscar conseqüências
agradáveis. Existe aqui algo muito particular. Para que um ato seja moral, ele
deve ser levado a cabo de uma maneira determinada. Para que a regra seja
obedecida tal como convém que seja obedecida, nós devemos nos submeter a ela
não para evitar penas ou para lograr recompensas, mas tão-somente porque a
regra ordena, e por respeito à própria regra, porque ela se apresenta a nós
como respeitável. Em uma palavra, devemos agir tal como dita a consciência
pública, devemos cumprir o dever simplesmente porque é dever, por respeito ao
dever.
Vocês perguntam
como isso é possível! Constatam somente agora que todo mundo fala dessa
maneira. Não me refiro aqui aos filósofos. Porém, vocês também compreendem que,
para que assim seja, essas regras precisam ter um prestígio muito particular,
uma autoridade excepcional que nos faça nos prostrarmos a sua vontade e que nos
imponha obediência. Sim, essas regras morais possuem tal autoridade. Sabemos
muito bem em que tom imperativo se manifesta quando fala a voz do dever. {Ela}
tem um tom autoritário, cortante; não permite dúvida. Na maior parte das vezes,
hesitamos diante dos questionamentos sobre aquilo que devemos fazer de nossa
vida com respeito a nossa conduta utilitária. Porém, quando se trata do dever,
tudo está claro, tudo está nítido. {Este} ordena de uma maneira precisa. Para
ter uma idéia de seu perfil, é preciso que nos escutemos. Escutem essa voz
interior que os homens conhecem tão bem. A maioria dos homens não sabe de onde
vem, porém, todos a sentem em si, e quando nós prestamos atenção nessa voz,
percebemos que {esta} se manifesta de tal maneira que é impossível não
reconhecê-la. Podemos até mesmo permanecer surdos a essa voz, porém, não
podemos negá-la. {Ela} tem um caráter imperativo, ordena, e é isso o que dá
segurança às nossas ações quando acreditamos escutá-la claramente. É por isso
que alguns filósofos disseram que o dever não é senão um conjunto de regras
severas, imperativos aos quais devemos obedecer porque ordenam. Entretanto, se
a moral não fosse nada além disso, se tivesse apenas exigências desse tipo, é
provável que os homens não conseguiriam praticá-la. Se a moral não fosse mais
do que mandamentos, perguntaríamos por que os homens hesitam em violá-la.
Para que
pensemos em cumprir o dever, não basta que {este} nos fale imperativamente; é
necessário que os atos que nos ordena possam comover-nos, emocionar-nos. É
preciso que o ato reclamado não nos seja estranho, que possamos desejá-lo, que,
de algum modo, {ele} apareça para nós como algo bom e digno de ser amado. A
moral aparece para nós como um sistema de princípios imperativos, por um lado.
Porém, se nada fosse além disso, poderíamos até não estar de acordo com ela e,
mesmo assim, ceder a sua coerção, porém, não poderíamos desejá-la
verdadeiramente. Para querê-la é preciso que possamos amá-la. É isso que
compreendeu a opinião comum, quando afirma que na moral coexistem duas idéias,
a idéia de dever e a idéia de bem.
Mas o que
significa a idéia de bem? Significa que a moral não é apenas um sistema de
regras, mas que o ato moral é algo bom, que pode ser desejado, que podemos
amá-lo. O filósofo Kant intentou, dado que possuía uma alta idéia de dever,
reconduzir a idéia de bem à idéia de dever. Entretanto, essa redução é
impossível. Não se pode reduzir a idéia de bem à idéia de dever. A idéia de
dever tem seu brilho próprio, não se pode violar [velar?] esse brilho a nossos
olhos sem que seu horizonte se torne mais ou menos obscuro; é necessário que a
moral apareça a nós como amável e digna de ser amada, que fale ao nosso coração
e que possamos cumpri-la, até mesmo em um momento de paixão.
Porém, não
podemos considerar esta segunda característica enquanto um aspecto da primeira.
Desejamos os atos morais como os demais bens, porém, os bens morais se
distinguem de todos os demais; podemos amar a honra, a riqueza, a glória; e
para obter esses bens, aquilo que deve ser feito é, de certo modo, apenas
seguir a inclinação de nossos desejos, deixar que eles nos conduzam. Podemos
guiar nossos desejos pela inteligência, conduzi-los com reflexão, mas não é
necessário resistir a eles, e não temos mais nada a fazer do que segui-los.
Todavia, quando levamos a cabo um ato moral, sentimos certo esforço, fadiga,
sacrifício. Vocês bem sabem que os pormenores de nossa vida cotidiana são
feitos de sacrifícios a todo instante. A cada momento fazemos sacrifícios; até
a vida moral ordinária, cotidiana, supõe esforços desse gênero. Sabemos bem que
um ato moral demasiado fácil de ser executado não é um ato moral. Em alguma
medida e de qualquer forma que seja, fazemos violência contra alguma coisa
quando realizamos um ato moral. Sim, é verdade que seguimos nossos desejos,
mas, por outro lado, outros tantos são reprimidos; realizamos uma violência
contra a nossa natureza. Ao agir moralmente, elevamo-nos acima de nós mesmos,
sentimo-nos superiores. {Assim} se não nos violentamos, se decaímos novamente
ao nível da vida ordinária, não podemos agir moralmente.
No bem moral
existe algo que nos ultrapassa. De qualquer modo que sejam concebidos, os fins
morais devem ser representados como transcendentes com relação aos demais bens.
Que se represente a moral como um sistema de regras que ordenam, ou como um
ideal desejado, tanto em um caso quanto em outro, a moral aparece para nós como
algo que nos vincula a um outro mundo, a um mundo que não nos é estranho, sem
dúvida, a um mundo que evidentemente nos concerne; porém, trata-se de um mundo
que nos transcende infinitamente. De fato, quando desejamos a moral, temos a
sensação de que nos elevamos, que dominamos algo em nós. Eis aquilo que faz com
que, em todas as épocas, as idéias morais tenham sido tratadas e expressas sob
formas religiosas. É difícil realizar um ato moral. Quando agimos moralmente,
arrancamos, em alguma medida, alguma coisa de nós mesmos, voltamos nosso olhar
para algo que nos transcende, que nos domina. Essa é a razão pela qual as
idéias morais precisaram estar envoltas em símbolos religiosos. Os homens têm
necessidade de compreender os motivos de sua própria ação, precisam entender
por que lutam para atingir esse ideal que, desde sempre, possuiu o mesmo
caráter, que sempre ocupou um lugar tão importante na vida social. O que
acontecia, em certos momentos, para que os homens estivessem dispostos a
esquecer seus próprios interesses, a sacrificar até mesmo sua vida? A que se
subordinavam para que esse ideal não aparecesse como uma vaga fantasmagoria de
seu espírito? Onde encontrar essa realidade a que se agarravam tão desesperadamente?
A religião
ensina que, acima do mundo em que vivemos e do qual fazemos parte, existe um
poder moral de outro gênero, que nos domina, que é superior a nós, e do qual
dependemos. Porque nos é superior, tem tudo aquilo que é necessário para ser o
legislador de nossa conduta, e nós somos apenas seus súditos. É o poder divino.
Estamos em suas mãos. Possui toda a autoridade necessária para promulgar-nos a
lei. Possui a majestade, e a majestade que lhe reconhecemos explica a majestade
da própria lei. A explicação é muito natural. Todavia, em contrapartida, um
deus não é apenas um legislador reverenciado, um amo imperioso que nos dá
ordens ante as quais nos inclinamos sem mesmo compreendê-las. Um deus é, ao
mesmo tempo, um poder seguro que nos ajuda e nos assiste. Foi Deus quem nos
fez, diz a religião, é dele que procede nossa existência. É nosso pai, nosso
amigo, podemos contar com ele, se estamos de acordo com suas ordens. Tem, pois,
tudo aquilo que é necessário para nos governar, tem tudo aquilo de que precisa
para ser amado.
E assim a lei
moral se encontra unida à pessoa divina; e eis por que os primeiros homens
consideraram a lei moral como a própria palavra de Deus. Como conseqüência
dessa situação, as regras tomavam de empréstimo uma grande potência moral da
qual o homem dependia, por isso deveria submeter-se com amor, deveria agir
violentamente contra sua própria natureza e amar a Deus. Assim, o ato moral que
lhe era exigido era de seu próprio interesse, pois lhe era reclamado por um ser
essencialmente bom, por um poder paternal. E, desse modo, até as crianças
podiam compreender de onde provinha esse respeito que lhes era reclamado pela
lei moral.
Eis no que
constitui a grande dificuldade da moral laica. O que é complicado não é
encontrar razões bastante laicas para justificar por que tal ou tal modo de
agir é recomendável. Aquilo que é muito mais difícil, porém não impossível, é,
de maneira geral, fazer com que a criança consiga compreender por que ela tem
deveres, por que precisa violentar-se, desprender-se de si mesma para cumprir
tais deveres. É necessário que compreenda que existe, acima dela, algo ante o
qual deve prostrar-se, regras às quais deve obedecer simplesmente porque
ordenam, e é preciso vincular tais regras a um poder moral do qual elas emanam;
e para que os atos reclamados possam aparecer como desejáveis é preciso que
esse poder seja concebido como algo benéfico, como algo bom.
Se renunciamos
a nos apoiar em uma potência divina, precisamos encontrar outra força que possa
desempenhar o mesmo papel. Sim, existe uma potência da qual a divindade não é
mais do que uma expressão simbólica; sim, existe uma potência que está ao nosso
redor, dentro de nós mesmos. É tão misteriosa quanto a outra, porém, podemos
mostrá-la, fazer com que seja compreendida, que seja percebida com nossos
olhos, da mesma forma como podemos perceber o mundo exterior. Essa potência
moral, tão real como a potência física, porém, não tão visível, é a sociedade,
a sociedade da qual fazemos parte. E, com efeito, uma sociedade é para seus
membros aquilo que um deus é para seus fiéis. Um deus é um poder superior ao
homem, que lhe dá ordens, da qual o homem depende. Pois bem, a sociedade tem,
com relação a cada um de nós, a mesma superioridade; e essa superioridade não
existiria para nós se não a sentíssemos. A sociedade, tal como a divindade,
ultrapassa infinitamente o indivíduo, tanto no espaço quanto no tempo. O
indivíduo é, pois, um ponto no infinito social. Está perdido nessa imensidão.
Mas, por outro
lado, diz-se que as sociedades são mortais. Sim, todas as sociedades são
mortais, porém, até mesmo os deuses por vezes têm sido considerados mortais.
Entretanto, mesmo se as sociedades são mortais, não é menos verdadeiro que sua
existência é extremamente maior do que a do indivíduo. As gerações passam, a
sociedade permanece. Sua vida não se conta por dias, por semanas, por anos;
conta-se por séculos. Portanto, também no tempo ela ultrapassa o indivíduo.
Assim, pois, um poder moral, ou a coletividade, é o sistema formado por todas
as consciências individuais no presente e no passado. Ultrapassa o indivíduo no
espaço, assim como o ultrapassa do ponto de vista da riqueza moral. Por
conseguinte, nas consciências individuais existe menos civilização, menos
moralidade do que no todo, nenhum de nós absorve isso completamente. A ciência,
a arte, a religião, todas as crenças, todas as idéias da técnica econômica,
industrial, comercial, tudo isso está na sociedade; tudo isso nos ultrapassa,
tudo isso nos transborda por todos os lados.
Todas as
religiões apresentaram Deus como o legislador da conduta humana. Porém, é a
história que nos mostra a realidade, e a realidade é que o autêntico poder
legislador dos homens, o único, é a sociedade. Quando olhamos a realidade,
percebemos também que a moral viveu a vida das sociedades. Cada sociedade teve
ou tem a sua moral. Existiu a moral grega, a moral romana. A moral evolui no
espaço, do mesmo modo que evolui no tempo. Antes se dizia: a moral grega, a
moral romana, não se parecem com a nossa, porém, isso se deve ao fato de os
espíritos das pessoas daquele período não estarem suficientemente abertos: não
conseguiam enxergar onde estava a verdade.
Pois bem, a
história não nos permite admitir semelhante tese. Se os romanos possuíam uma
moral diferente da nossa, {isso} não era absolutamente uma conseqüência de
algum erro deles, de sua cegueira. Não, {eles} simplesmente não podiam ter
outra. Dada a organização da cidade romana, a moral não podia ser diferente
daquilo que era. Os romanos não poderiam viver com outra moral. Sim, se por
acaso alguém pudesse ter infiltrado algumas de nossas idéias no espírito dos
romanos, a cidade romana não teria sobrevivido. No dia em que as idéias morais
se transformaram, o Império Romano ruiu. O papel da moral é fazer com que os
homens vivam juntos, e não provocar a sua morte. É somente porque, em um dado
momento, não eram possíveis sociedades senão desse gênero; também não era
possível uma moral senão desse gênero. Se a sociedade romana não tivesse
existido, hoje estaríamos acomodados a esse fato.
Entretanto, em
grande parte, é daí que provém a nossa civilização. Se esse elo da cadeia
histórica tivesse faltado, a própria história não teria sido aquilo que foi.
Não é por azar, ou por um capricho do homem, que a moral se transformou. Não,
isso ocorreu porque dada uma sociedade, não poderia existir mais do que tal
moral. Se me apresentam o modo como entendem o matrimônio, a família, em uma
sociedade, eu poderei dizer a vocês qual era a moral dessa sociedade, pois tudo
está intimamente ligado.
Nossa moral
está vinculada a nossa organização social, da mesma maneira que a moral romana
estava ligada à organização social da cidade romana, assim como a moral grega
era um produto da sociedade grega. Releiam o admirável e sempre atual livro de
Fustel de Coulanges: A cidade antiga, e se convencerão disso. É a
sociedade que institui a moral, pois é ela que a ensina. Mesmo que se suponha
ser possível demonstrar a verdade moral fora do tempo e do espaço, para que tal
verdade moral chegue a se tornar uma realidade, será preciso que existam
sociedades que possam adequar-se a ela, que a sancionem e que a tornem
realidade. Para que exista a justiça que pedimos, é mister que existam
legisladores que a façam penetrar nas leis. A moral não é uma coisa de livros;
brota das mesmas fontes da vida e chega a ser um fator real da vida dos homens.
Não existe senão na sociedade e pela sociedade.
Aí está, pois,
um aspecto da divindade que encontramos na sociedade. Esse é o grande poder
moral que possui a sociedade: sentimos que ela nos comanda; toda a legislação
moral provém dela. Um deus não é somente um amo respeitado, um amo temido, é
também um poder seguro, benfeitor. Pois bem! A sociedade preenche também tal
condição. A sociedade, por um lado, também nos domina, ultrapassa-nos, dá-nos
ordens. A todo instante nos incomoda, pede que façamos sacrifícios por ela.
Dessa forma, aparece para nós como um grande poder dominador.
Porém, ela não
está fora de nós por completo: também está em nós. Não está verdadeiramente
viva e não é real senão nas consciências particulares. Está dentro de nós e
fora de nós. É a melhor parte de nós mesmos. Tudo aquilo que existe em nós de
autenticamente humano provém da sociedade, tudo aquilo que constitui a nossa
consciência, enquanto homens, vem da sociedade. A linguagem é um produto da
sociedade que, tal como a moral, expressa uma das fisionomias da sociedade.
Aprender palavras não é somente aprender sons, é também aprender idéias. Um
dicionário contém toda uma maneira de pensar. Em uma língua existe uma
mentalidade própria. Aprendendo uma língua, armazenamos todo um sistema de
idéias que expressam a realidade e todo um conjunto de maneiras de ver as
coisas. É aprendendo a língua materna que se forma o nosso espírito. A língua
nos vem da educação social.
Outra escola na
qual nos formamos é a ciência. Aqui vocês recebem uma cultura científica.
Portanto, sabem como se forma o espírito sob a ação da ciência. Além disso,
mesmo aqueles que não recebem diretamente essa cultura, mesmo aqueles que estão
privados de toda cultura científica, sem nenhuma dúvida, beneficiam-se dela. A
ciência elabora conhecimentos para todos, e o conhecimento produzido por uma
pessoa chega a ser propriedade de todos. A geometria nos ensinou a fazer
coisas, a trabalhar de certo modo; a noção de causa nos foi dada pela ciência;
todas as grandes noções, todas as noções essenciais que adquirimos a cada dia,
adquirimos na escola da ciência. Retirem de nosso espírito tudo aquilo que
adquirimos pela linguagem, pela ciência, o que restará? Retirem da mesma
maneira aquilo que provém da vida afetiva, pensem nesses vários sentimentos
familiares, aqueles vários sentimentos morais que possuímos. Sempre permanecerá
em nós o amor maternal, paternal, dir-se-á. Errado! Houve certas sociedades em
que tais sentimentos não existiam, em que não existia o amor paternal. Não sei
se existe um único sentimento no coração do homem que não provenha da
sociedade. É a sociedade que desperta esses sentimentos, segundo o tempo,
segundo os lugares, segundo as condições. Os sentimentos evoluem
incontestavelmente.
Percebam como
nosso espírito é produto da ação social. E não é somente no primeiro período da
vida, quando a sociedade penetra em nossa vida interior, ou quando somos
adultos. Na verdade, essa ação continua consolidando perpetuamente a obra
edificada. Se não o fizesse, se não prosseguisse, a obra social desmoronaria.
Nossa organização, uma vez formada, tem necessidade de sustentar-se sempre. O
ser moral que a sociedade cria em nós, se não tivesse continuamente uma
reparação de suas perdas, tal como os alimentos reparam as perdas de nosso
corpo, enfraquecer-se-ia e morreria. Pois nós trabalhamos, mesmo que nos
desgastemos. Porém, não podemos nos desgastar sem antes termos recebido um
suprimento. É necessário que o gasto do nosso organismo físico seja equilibrado
para que permaneça saudável. E o mesmo ocorre com o nosso organismo moral. Os
esforços que fazemos para trabalhar bem implicam um desgaste. Para sustentar
essa fadiga, a todo momento chegam até nós elementos que vêm de fora, sem que
sequer suspeitemos disso. Existe um afluxo de forças que nos reconfortam
perpetuamente, sem que nos demos conta. Assim, não podemos agir sem a aprovação
de nossos semelhantes, sem o assentimento da opinião pública.
Sem dúvida,
podemos resistir a ela, porém, isso não nos leva a lugar algum, só nos faz
perder vantagens. Estamos obrigados a tirar unicamente de nós mesmos as forças
para uma nova luta. Quando sentimos que estamos de acordo com nossos
contemporâneos, somos penetrados por sentimentos que percebemos vir da própria sociedade.
Sentimo-nos mais fortes e, na verdade, somos mais fortes. São forças reais,
mesmo que não possam ser medidas no dinamômetro. Somos realmente mais fortes.
Não temos necessidade de ser sustentados, animados, é uma ação permanente,
porém, a sentimos especialmente nas épocas críticas, quando estamos
particularmente abatidos, desanimados. Se nos reunimos a um grupo ao qual
estamos ligados, imediatamente nos sentimos recuperados. É nessas ocasiões que
se percebe a utilidade da família, das associações, das festas e das cerimônias
públicas. Para que servem tais manifestações? Servem para manter os sentimentos
coletivos da sociedade, reunindo as massas, convidando-as a reviver esses
sentimentos, expressando-os de maneira comum. Vocês sabem como esses sentimentos
ficam exaltados quando os indivíduos estão reunidos. Os partidos políticos bem
que percebem isso. Buscam todas as ocasiões de agrupar os indivíduos para
reconfortá-los, para exaltar seus sentimentos. Nossa vontade é, então,
aumentada pelo grupo. Existe, sem que vejamos com clareza de onde provém, uma
fonte perpétua de força que nos sustenta incessantemente e sem a qual não
conseguiríamos resistir.
Assim vocês
podem compreender como a sociedade, enquanto um poder legislador, é também um
poder acolhedor, uma fonte de força, e por isso devemos amá-la, é dela que vem,
em parte, a nossa vida. Rebaixaríamos ao nível da brutalidade, se retirássemos
tudo aquilo que a sociedade fez por nós. Retirem a linguagem, e não restará
mais do que sensações da vida animal; já não existirão {sequer} idéias gerais.
Todas as formas superiores da atividade humana são de origem social. A religião
havia compreendido isso muito bem. Eu falo aqui em termos laicos aquilo que foi
ensinado nas Igrejas: existe no homem uma parte eminente que o transcende, uma
centelha divina; é a alma, expressão simbólica de uma realidade. Existe algo em
nós, uma parte eminente, excelente, que nos transcende, que está acima de nós.
Essa parte é justamente aquilo que a sociedade desenvolveu. Pois, o que seria
do Homem sem a sociedade? Se não houvesse sociedade, o Homem não seria humano.
Na verdade, não podemos saber o que seria do Homem fora da sociedade. Agora
vêem como podemos desejar a sociedade mesmo que ela nos dê ordens, pois
querê-la é querer-nos, negá-la seria negar-nos: nossa sorte está ligada a sua.
Se eu não
estivesse pressionado pelo tempo, mostraria o paralelismo entre a noção de
sociedade, por um lado, e a noção de divindade, por outro. Um deus é necessário
a seus fiéis, porém, esse deus também tem necessidade de seus fiéis, pede
oferendas e sacrifícios. Um deus morreria se não se levassem sacrifícios a seus
altares. As religiões de hoje são mais idealistas do que aquelas mais antigas,
no entanto, esse Deus que se adora hoje também tem necessidade daqueles que o
adoram, da mesma maneira que os deuses de outrora. Se o deus cristão não fosse
adorado, se não rezassem a ele, certamente ele não existiria. {Ele} existe
somente porque rezamos. Nós lhe conferimos existência, damo-lhe existência tal qual
a obtemos dele. Encontramos esse mesmo círculo na vida social. O indivíduo
precisa da sociedade. Mas, por [outro] lado, está claro que a coletividade não
seria nada sem o indivíduo. Precisamos da sociedade, porém, ela também precisa
de nós. Algumas vezes, quando se apontava aquilo que existe de superior no
indivíduo, costumava-se afirmar: a sociedade não existe senão na consciência
individual. Mas o que prova isso? Absolutamente nada.
Aqui existe um
círculo do mesmo modo que existe um círculo da vida. Existe um certo elemento
de mistério, que estamos habituados a sentir com a divindade, mas que
encontramos também se nos voltamos para a sociedade. Que partes da sociedade
podemos enxergar? Não percebemos mais que alguns poucos elementos: aqueles que
estão reunidos ao nosso redor. Sem dúvida, nesse preciso momento, existem à
nossa volta uma grande variedade de murmúrios que podemos escutar e que chegam
de todas as partes, que nos penetram. Tudo isso é o eco de uma imensa vida em
comum, da qual não conhecemos mais do que uma pequena parte. Escutem! É o
enorme rumor surdo, confuso, dessa grande máquina social! Entretanto, não
podemos senti-lo senão de uma maneira misteriosa, pois essa potência que se
agita é vaga e misteriosa! Cada vez mais estou convencido de que à base da
divindade não existe outra coisa que o poder da coletividade expresso por meio
de símbolos. Imaginava-se que os deuses antigos eram poderes físicos. Esse
argumento não é sustentável; bem sabem que além da força física existe uma
outra que nos afeta de maneira mais próxima: esse grande poder é {o poder da}
moral, do qual falamos. E Deus, os deuses, foram primeiramente conhecidos como
poderes morais. Existe toda sorte de razões para supor que a potência divina é
a sociedade personificada, hipostasiada.
A sociedade
pode desempenhar na vida moral o mesmo papel que as mitologias atribuíram aos
deuses de todos os tempos. São as sociedades que representam o papel dos
deuses. Podemos substituir o poder religioso pelo poder político, pelo poder
social. Essa substituição é totalmente legítima. Não se faz mais do que colocar
as coisas em seu devido lugar. Dessa forma, substitui-se o símbolo pela
realidade que ele expressava, mas que a distorcia ao exprimi-la.
Assim, o ensino
da moral se torna possível. Já não se trata de uma educação puramente livresca.
O ensino da moral consiste em fazer com que se enxergue uma realidade, em fazer
com que essa realidade possa ser tocada com as mãos. Ensinar as ciências é
ensinar algo real. Ensinar a moral é demonstrar como a moral se relaciona com
algo real. Com demasiada freqüência, essas idéias tiveram de ser deixadas no
ar, sem que fosse possível perceber com o que estão relacionadas. Com efeito,
essa realidade existe e vocês podem fazer com que as crianças sejam capazes de
enxergá-la. Existe aqui um mundo inteiro, que é muito ignorado, um mundo no
qual vocês devem fazer com que as crianças consigam penetrar. Nós as fazemos
descobrir o mundo físico, porém, nada lhes dizemos sobre o mundo social.
Podemos utilizar a História para lhes mostrar os laços que nos unem a esse
mundo. Esses vínculos dominam nossa vida, contudo, não são laços materiais que
podem ser tocados. Nem sempre podemos senti-los, às vezes até negamos sua
existência. É preciso abrir os olhos do pensamento, que farão ver como os
homens estão sujeitos a algo para além deles mesmos, e isso pelo simples fato
de que vivem juntos. Não há ensinamento mais importante.
Eis aqui como
um ensino que está vinculado à vida real é capaz de preparar a formação inicial
dessa idéia moral. Deve-se mostrar à criança como ela é diferente quando está
em grupo e quando está sozinha. Deve-se fazer com que a criança perceba como,
estando com seus companheiros, {logo} recupera o ânimo quando está desanimada,
e que quando está sozinha não {acontece} a mesma coisa. Existe sobretudo o
ensino da História que deveria servir precisamente para demonstrar o que é essa
realidade social. {Por meio da História}, é possível mostrar como eram os
homens antigamente, como estavam reunidos em grupos, como cada geração
determinou a geração seguinte. Desse modo, a criança poderá descobrir um mundo
novo para ela, poderá enxergar um passado para o qual os seus sentidos ainda
não foram exercitados.
Até mesmo o
ensino das ciências pode contribuir para isso. Pois, não acreditem que o homem
é o único a viver em grupo. Todo o universo não é mais do que uma imensa
sociedade da qual cada corpo celeste é uma porção. O átomo atrai o átomo, a
célula atrai a célula. Já foi dito que o corpo humano não é mais que uma associação
de células. Essa lei dos grupos domina o universo inteiro. Essas são idéias
bastante simples, não têm nada de complexo; portanto, podem ser apresentadas
sob uma forma elementar. Toda a educação deveria tirar proveito dessas idéias.
Se não procedermos assim, não há nada que se possa fazer no ensino da moral.
Para que o
ensino da moral seja possível, é preciso manter intacta a noção de sociedade. É
preciso conservar a idéia de que a sociedade é a condição mesma da civilização
e da humanidade. E uma vez que a pátria não é mais que a sociedade mais
altamente organizada, vocês podem perceber que negar a pátria não é apenas
suprimir as idéias recebidas, mas é danificar a vida moral em sua própria
fonte.
Sem dúvida, há
quem acredite que é possível opor a pátria à humanidade. É o resultado de um
erro imenso. O grupo altamente organizado, o mais elevado que existe, é a
sociedade política, ou seja, a pátria. Seguramente eu conheço muito bem quais
são os nobres sentimentos que estão na base dessa negação da pátria. Como a
máquina social é uma máquina muito pesada, ela não evolui sempre de acordo com
os nossos desejos. A sociedade, tal qual ela é, aparece como um obstáculo para
aquelas almas ardentes, plenas de um ideal. Nada mais humano que querer superar
esse obstáculo. É assim que, sob a influência de sentimentos generosos,
chega-se à conclusão de que a sociedade atual é um inimigo que deve ser vencido
e do qual é preciso desfazer-se a qualquer preço. Não tentarei refrear em vocês
esses ardores generosos, se os experimentam. Creio, ao contrário, que não há
motivo algum para refutá-los arbitrariamente, mas, se por acaso esses ardores
tiverem algo de excessivo, eu me remeto à própria realidade para trazê-los,
mesmo que demasiado tarde, à moderação necessária. Não se trata de protestar
contra esses sentimentos, mas o que quero que compreendam é que esses
sentimentos são demasiado violentos e se voltam contra eles mesmos.
Mas, em suma,
quem cria essas novas idéias? É a sociedade. É preciso que os homens se
interessem por ela para que existam tais idéias. É somente a ela que podemos
pedir a justiça mais alta a que aspiramos. Se intentamos destruir nossa pátria,
negá-la, intentamos destruir o instrumento necessário para as transformações
que almejamos. Essa almejada destruição da pátria, nem sempre foi um sonho.
Isso já foi levado a cabo em tempos passados. Houve um momento em que todas as
pátrias soçobraram. As sociedades que formavam o Império Romano destruído pelas
invasões dos bárbaros não sucumbiram. Porém, o que resultou dessas divisões ao
infinito? Um imenso retrocesso da civilização. A Idade Média não foi mais que
um período de trevas. A destruição da pátria não teria outro resultado. Não sei
se será possível impedir que se produzam violências, elas desempenharão, quem
sabe no futuro, o mesmo papel que desempenharam no passado, porém, ainda mais
feio. É possível que mais cedo ou mais tarde haja uma nova Idade Média,
todavia, é mister que seja menos extensa, menos tenebrosa do que a nossa.
A sociedade
presente {deveria} sabe{r} amar a sociedade de ontem e a de amanhã, que é
aquela que a sociedade de ontem e a de hoje carregam em seus flancos. E se o
parto é doloroso, trabalhoso, essa é uma razão para ajudarmos em seu trabalho e
não nos colocarmos contra ela. É preciso amá-la com suas misérias, pois, como
ela sustenta o nosso ser moral por todas as nossas entranhas, suas misérias são
também as nossas misérias, seus sofrimentos são também os nossos sofrimentos. É
impossível que nos deixemos levar contra ela por um arrebatamento violento sem
que com o mesmo golpe nos causemos feridas e nos desgarremos de nós mesmos.
[1]
Mestre em Sociologia pela FFLCH-USP, com a dissertação Émile Durkheim e
a ciência da moral. Doutora em Filosofia.
[2]
Gautherin, J. La Formation d'une discipline universitaire: La Science
de l'education, 1880-1914. Paris: Universidade Paris V — René Descartes,
1991. [ Links ]
[3]
Durkheim, Émile. "L'Enseignement de la morale à l'école
primaire". Revue Française de Sociologie, XXXIII, 1992, pp.
609-23. [ Links ]
[4]
Conforme pode ser observado pela análise das extensas listas bibliográficas
contendo as publicações de textos de Durkheim. Veja-se, especialmente: Karady,
Victor. "Bibliographie des oeuvres d'Émile Durkheim". In: Durkheim,
É. Textes. Paris: Les Éditions de Minuit, 1975, vol. 3;
[ Links ]e Lukes, Steven. Émile Durkheim — His life and work: a historical and critical study. Londres:
Allen Lane, 1973. [ Links ]
[5]
Ao contrário do que muitas vezes se imagina, há uma importante dimensão
normativa na obra durkheimiana. No caso dos textos relativos à educação, a distinção
entre os aspectos positivos e normativos é particularmente importante para uma
correta interpretação de seus argumentos. Para maiores detalhes, ver a
distinção proposta pelo autor entre "Ciência da Educação" e
"Pedagogia": Durkheim, É. Educação e sociologia. São
Paulo: Melhoramentos, 1978.
[ Links ]
[6]
Para maiores esclarecimentos sobre esses conceitos, ver especialmente os
seguintes livros de Durkheim: Educação e sociologia. São Paulo: Melhoramentos,
1978; [ Links ]"Educação moral".
In: Educação, moral e sociologia. Porto: Res, 2001; [ Links ]A evolução pedagógica na França.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
[ Links ]
[7]
No caso, a constatação sobre a dissonância entre modelo educacional vigente e
organização social que se pretendia edificar, inspirada nos ideais laicos e
racionais da Revolução Francesa.
[8]
Essa foi uma tendência demonstrada desde os tempos de sua formação na École
Normale Supérieure e que continuou a sustentar ao longo de toda a sua carreira,
tanto na esfera propriamente acadêmica quanto na esfera política, em que se
destaca sua intensa participação nos debates em torno do "Caso
Dreyfus". Em relação a isso, ver especialmente o seguinte artigo:
Durkheim, É. "O individualismo e os intelectuais". In: A
ciência social e a ação. São Paulo: Difel, 1975. [ Links ]A expressão "republicanismo
liberal" foi utilizada por Anthony Giddens para designar a posição
política de Durkheim (Giddens, A. "A Sociologia política de
Durkheim". In: Política, sociologia e teoria social. São
Paulo: UNESP, 2002). [ Links ]
[9]
Refiro-me aqui aos trabalhos que vêm sendo realizados desde a década de 1980 e
que se avolumaram desde a década de 1990, que têm como objetivo levar em
consideração o ambiente social, político e intelectual da época, bem como
investigar a obra durkheimiana em todos os detalhes, buscando apreender um
conjunto mais amplo das influências recebidas pelo autor e uma consideração
mais fidedigna de seu pensamento e de seu projeto acadêmico. Alguns exemplos
significativos, dentre os inúmeros trabalhos com este perfil, são os seguintes:
Berthelot, J. M. 1895 — L'Avènement de la sociologie scientifique. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 1995;
[ Links ]Mestrovic, S. "The social world as will and idea:
Schopenhauer's influence upon Durkheim's thought". Sociological
Review, nº 39, 1988;
[ Links ]Mucchielli, Laurent. La Découverte du social. Paris: Éditions la
Découverte, 1998; [ Links ]Strenski, I. Durkheim and the Jews of France. Chicago/Londres: The
University of Chicago Press, 1994.
[ Links ]
[11]
Provavelmente, Durkheim se refere aqui à personalidades como Jules de Ferry e
Louis Liard. O primeiro era o ministro da Instrução Pública, com quem Durkheim
teve algumas afinidades e muitas discordâncias, especialmente porque, de acordo
com Durkheim, ao invés de haver um ensino leigo da moral, seria preciso
instituir o ensino de uma moral laica. O segundo era o diretor do Ensino
Superior da França, ardente defensor da idéia de que somente os métodos
universais da ciência poderiam oferecer bases sólidas para a reconstrução moral
da Terceira República. Foi devido a seus incentivos que Durkheim passou um ano
na Alemanha, acompanhando os desenvolvimentos da ciência naquele país.
[12]
De agora em diante, as palavras entre colchetes [ ] indicam as correções ou
complementações realizadas por Gautherin em virtude de algumas falhas de
datilografia no texto original. As palavras que aparecem entre chaves { } são
complementações introduzidas pela tradução em português, com o objetivo de
conferir maior inteligibilidade ao texto na presente versão. Em ambos os casos,
tais procedimentos seguiram o rigor de não interferir no teor do que o autor
procurava transmitir em seu texto.
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Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000200008