Continua
no esquecimento a tradução brasileira do livro mais editado do mundo, depois da
Bíblia. Refiro-me aos Elementos, de Euclides. É possível que fatos como esse
expliquem a dificuldade dos nossos jovens percorrerem o caminho da lógica,
livrando-se do pensamento causal assente na aparência, e adentrando no universo
revelador das abstrações. Tomemos em conta, por exemplo, o caso condicional e
bicondicional e suas tabelas verdade.
No
primeiro caso:
p
|
q
|
p → q
|
V
|
V
|
V
|
V
|
F
|
F
|
F
|
V
|
V
|
F
|
F
|
V
|
Seguindo...
a) p: Pelé é
brasileiro (V)
q: Maradona é argentino (V)
p → q: Se Pelé é
brasileiro, então Maradona é argentino (V)
b) q: 2 + 2 = 4 (V)
p: 1 > 7 (F)
p → q: Se 2 + 2 =
4, então 1 > 7 (F)
c) p: crocodilos são
anfíbios (F)
q: macacos são mamíferos (V)
p → q: Se crocodilos são
anfíbios, então macacos são mamíferos (V)
d) p: o sistema de
governo do Brasil é o parlamentarismo (F)
q: o sistema de governo da Inglaterra é o
presidencialismo (F)
p → q: Se o
sistema de governo do Brasil é o parlamentarismo, então o da
Inglaterra é o presidencialismo (V)
No
segundo caso:
p
|
q
|
p ↔ q
|
V
|
V
|
V
|
V
|
F
|
F
|
F
|
V
|
F
|
F
|
F
|
V
|
Seguindo...
a) p: Heródoto
escreveu sobre as Guerras Médicas (V)
q: Tucídides
escreveu sobre a Guerra do Peloponeso (V)
p ↔ q: Heródoto escreveu sobre as Guerras Médicas se e somente se Tucídides
escreveu sobre a Guerra do Peloponeso (V)
b) q: 2 .
2 = 4 (V)
p: 5 > 9 (F)
p ↔ q: 2 . 2 = 4 se e somente se 5 > 9 (F)
c) p: Dostoiévski é
o autor de Guerra e Paz (F)
q: Machado de
Assis nasceu no Rio de Janeiro (V)
p ↔ q: Dostoiévski é o autor de Guerra e Paz se e
somente se Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro (F)
d) p: a
Lua é um satélite artificial da Terra (F)
q: Marte é o maior
planeta do Sistema Solar (F)
p ↔ q: a Lua é um satélite artificial da Terra se e somente se Marte
é o maior planeta do Sistema Solar (F)
Na verdade, parte da dificuldade reside
em entender adequadamente o que vem a ser uma condição necessária, uma
condição suficiente e uma condição necessária e
suficiente. Na História da Filosofia, a lógica sempre foi algo que me
fascinou, sobretudo porque dela depende a objetividade, e com ela está conectada
a Ética. Dessa forma, nas universidades em que tenho trabalhado, ensinar em cursos como Matemática é algo estimulante, na medida em que a área proporciona bases para a interlocução lógica. E se falarmos de uma lógica dialética, os “ares avivam-se ainda mais”. Kant
foi longe nessa matéria: disse que 'há uma lógica curiosa e convincente, mesmo
no mais perverso pensamento humano'. E disse mais: 'Quem não sabe o que
busca, não identifica o que encontra'. De sua parte, William Roger assinalou: 'A
maturidade não se dá pela idade e sim pela capacidade lógica de raciocínio
profundo e reflexão própria.' Apurar e sofistificar o pensamento, é disso
que se trata. Voltar a Euclides pode ser útil. Vale a pena então conferir o
texto aí abaixo, escrito com primor, pelo César Benjamin.
Passou
despercebida a primeira edição brasileira do livro mais editado no mundo,
depois da Bíblia: os Elementos, de
Euclides, o tratado científico mais importante da história.
Quase nada
sabemos do autor e das circunstâncias que cercaram a criação da obra no século
III a.C.. Por isso, e pela impressionante dimensão do trabalho, alguns já
propuseram que Euclides pode ter sido um nome coletivo e os Elementos, a obra de uma escola. Mas
isso não é provável. A maioria dos estudiosos situa por volta de 295 a. C. o
ponto médio da vida ativa do geômetra e
aceita que ele estudou em Atenas até se transferir para Alexandria. Além dos Elementos, autores antigos referem-se a
onze livros seus, entre os quais um Livro
das falácias, uma Astronomia e um
sobre música.
Houve outras
obras com o mesmo título, que era usado para designar compilações de
conhecimentos básicos. Mas elas se perderam,
esmagadas pelo peso do tratado de Euclides. Em sua época a matemática
helênica já estava avançada, com uma
tradição que remontava a Tales e Pitágoras, passando por Platão, Aristóteles e
seus discípulos. “Euclides”, diz Proclo, “juntou os elementos, ordenando muitos
teoremas de Eudoxo, aperfeiçoando os de Teeteto e acrescentando
demonstrações irrefutáveis que só tinham sido vagamente comprovadas por seus antecessores.”
É difícil rastrear a
trajetória da obra, sujeita por mais de 2 mil anos ao arbítrio de copistas,
tradutores e comentadores, o que gerou diferentes traduções, traduções de
traduções, versões resumidas, interpretações e interpolações. A primeira
tradução árabe, feita por al-Hajjāj no século VIII, registra no frontispício
que “deixou de lado os supérfluos, preencheu as lacunas, corrigiu ou retirou os
erros, até ter melhorado o livro e o tornado mais exato, e resumiu-o, conforme
é encontrado na versão atual.” Poderíamos multiplicar tais
exemplos. Em Lisboa, encontrei em um sebo Los elementos geométricos del famoso
Euclides Megarense, amplificados de nuevas demonstraciones por el sargento
general de batalla Don Sebastian Fernandez de Medrano (1646-1705); o bravo general
já erra no título, ao confundir o geômetra com um homônimo, Euclides de Megara.
O livro foi
traduzido diversas vezes para o latim e o árabe na Idade Média, e para as mais
importantes línguas vernáculas a partir do
Renascimento. Até o século XIX, todas as edições em grego adotaram como
referência a de Teon de Alexandria, preparada cerca de setecentos anos depois
da época de Euclides. Em 1808, porém, François Peyrad constatou que um
manuscrito trazido da Itália por Napoleão era uma versão mais próxima do
original, iniciando pesquisas que culminaram em 1888 com o estabelecimento da
edição de J. L. Heiberg, hoje aceita como a mais fiel. Ela foi o ponto de partida da tradução que Irineu Bicudo
realizou durante dez anos, recém- publicada pela Editora da Unesp. Um trabalho
assim não se faz por dinheiro, mas por amor. Não há como exagerar a sua importância.
A ausência de
um aparato crítico faz a edição brasileira (um volume, 594 páginas) menor, em
tamanho, que outras que a antecederam. A espanhola (Gredos), por exemplo, tem
dois volumes e 772 páginas, enquanto a francesa (PUF) atinge
quatro volumes e
2.024 páginas. Mas,
no que é
essencial, estamos diante
de um trabalho cuidadoso e competente: comparado com as outras edições, o texto
em português parece até mesmo mais fiel ao estilo seco de Euclides.
***
A geometria
nasceu no Egito antigo como ciência empírica, um conjunto de métodos de
mensuração necessários para reconstituir os limites das propriedades em seguida
às inundações anuais do Nilo. O gênio grego a transformou em um sistema
dedutivo, gigantesco salto.
Os gregos viram
que os conhecimentos geométricos não poderiam depender da experiência ou da
evidência sensorial, pois uma e outra nunca nos permitiriam entrar em contato com
pontos, retas e planos, meras abstrações. Esses conhecimentos dependeriam de
demonstrações. Sabiam, porém, que era impossível demonstrar tudo, pois isso
provocaria uma regressão ao infinito, com cada afirmação sendo sempre remetida
a afirmações anteriores. Para evitar
isso, era preciso buscar o que Aristóteles chamou de “primeiros princípios”,
que, sendo evidentes, dispensariam as provas. A partir dessa âncora, a lógica
nos conduziria a conhecimentos válidos,
constituindo-se assim uma “ciência demonstrativa”. Coube a Euclides
realizar esse ideal.
Em um sistema
desse tipo, hoje denominado axiomático, a escolha das proposições primeiras, ou
postulados, devia atender três exigências principais: consistência (a partir
deles não se podem deduzir logicamente proposições contraditórias), completude
(entre quaisquer duas proposições contraditórias formuladas nos termos do
sistema, uma pode ser corretamente demonstrada) e independência (nenhum
postulado pode ser demonstrado a partir dos demais). (Em 1931,
Kurt Gödel provou
que sistemas axiomáticos
usuais, como a aritmética e a
teoria dos conjuntos, não podem preencher o requisito da completude, mas isso
ultrapassa o tema deste artigo.)
Euclides
deduziu toda a sua geometria – 372 teoremas e 93 construções – a partir de cinco postulados,
que aparecem acompanhados de 23 definições e cinco noções comuns.
Quando
Michelangelo foi perguntado como conseguira esculpir a
Pietà a partir de um bloco de mármore, deu a famosa resposta: “Ela já
estava lá; eu só tirei o excesso.”
Euclides poderia dizer o mesmo, lidando agora não com a matéria, mas com o
espírito. Os postulados aparecem no início dos Elementos, mas isso não deve nos enganar: eles são o ponto de
chegada de uma longa reflexão prévia que
vai desbastando o pensamento, muitas vezes tendo teoremas como ponto de
partida. A ordem expositiva do sistema, de natureza lógica, não segue o caminho
percorrido na sua formulação.
A escolha de
apenas cinco postulados – todos simples, por definição – para deles derivar uma
geometria completa é um trabalho de gênio. É o momento mais difícil da
construção, pois as proposições que estamos acostumados a usar derivam de
outras proposições, cujos pontos de partida desconhecemos.
***
Euclides é
exaustivo no que Leibniz chamou de “arte de demonstrar”. Qualquer um de nós dispensaria diversas de
suas demonstrações, por óbvias, mas não devemos criticar essa obsessão: a
cultura helênica estava repleta de sofistas habilíssimos em contestar as
verdades mais evidentes.
O esforço para
superá-los resultou em uma construção intelectual de magnífica concepção: as
proposições primeiras, indemonstráveis, são enunciadas
explicitamente; os termos usados são objeto de definição prévia; e os teoremas
são demonstrados (às vezes, com redução ao absurdo) sem o recurso aos sentidos ou à experiência empírica. Novas provas
se sucedem, sempre por
lógica, com base naquilo que foi provado antes. O resultado é uma
rede na qual todas as proposições se comunicam, sustentando-se umas às
outras. No lugar da compilação de receitas práticas ou de enunciados empíricos,
legados por egípcios e babilônios, surge assim uma ciência racional.
O êxito foi
inigualável. É o único caso, na história, em que um só livro fundou uma
disciplina científica, instituindo um padrão que passou a servir de referência
ao pensamento rigoroso. Graças a Euclides, a unidade e a estabilidade da
geometria foram excepcionais. Durante mais de 2 mil anos ela permaneceu
fundamentalmente a mesma, com acréscimos, é claro, mas sem crises,
confundindo-se por isso com os fundamentos da razão. Os demais ramos do conhecimento deviam
inspirar-se nela.
A obra de
Newton reforçou a importância da de Euclides. Na juventude, Newton foi traído
pela aparente simplicidade dos Elementos,
cuja leitura iniciou e largou, por considerá-la banal. Redimiu-se adulto:
depois de reestudar o livro, percebeu que nos seus postulados estão implícitas,
como veremos, as propriedades do espaço, tal como ele mesmo veio a conceber no
seu sistema do mundo: um meio homogêneo, imutável, intemporal, infinito e
infinitamente divisível, que existe independentemente do conteúdo físico que
contém. Embora esse espaço absoluto tenha se tornado desnecessário na física
contemporânea, não se deve subestimar a profundidade de sua concepção: nenhuma
de tais características é acessível aos sentidos. A ideia euclidiana de uma
extensão pura e de um espaço sem qualidades é extremamente abstrata.
No fim do
século XVIII, os Elementos, de
Euclides, e os Principia, de Newton,
davam ao conhecimento científico uma base imponente, sobre a qual Kant,
maravilhado, filosofou. Ele viu uma geometria dotada de validade universal,
construída de modo racional e, ao mesmo tempo, passível de ser aplicada ao
mundo físico. Identificou nisso um problema profundo: como um conhecimento que
se desenvolve sem recorrer à realidade sensível pode ser a chave para
decifrá-la? Como uma pura criação da razão humana pode representar, com tamanha
perfeição, o mundo exterior? Que estranha conexão é essa, entre a mente do homem e as coisas?
Tendo Euclides
e Newton como principais referências, Kant concluiu que espaço e tempo são
“intuições puras”, estruturas do próprio sujeito. A intuição a priori do espaço nos possibilita os
juízos a priori da geometria,
enquanto a intuição a priori do tempo
funda as operações do cálculo, que se sucedem e duram.
A construção
kantiana sofreu duro golpe quando, primeiro,
a geometria euclidiana e, depois, a física newtoniana perderam seu
caráter universal. Para entender isso, no caso da geometria, precisamos
contemplar os cinco postulados.
***
Uso a tradução
de Irineu Bicudo, mas faço a ressalva de que o que Euclides chama de “reta” é o
que hoje chamamos de “segmento de reta”.
1.
Fique postulado traçar uma reta a partir de
todo ponto até todo ponto.
2.
Também prolongar uma reta limitada,
continuamente, sobre uma reta.
3.
E, com todo centro e distância, descrever um círculo.
4.
E serem iguais entre si todos os ângulos retos.
5.
E, caso uma reta, caindo sobre
duas retas, faça ângulos interiores e do mesmo lado menores que dois retos,
sendo prolongadas as duas retas, ilimitadamente, encontrarem-se no lado no qual
estão os menores que dois retos.
O primeiro
postulado diz que somente uma reta pode ser desenhada entre dois pontos
quaisquer, o que equivale a dizer que, se dois segmentos de reta têm as mesmas
extremidades, todo o seu comprimento coincide; logo, o espaço é contínuo. O
segundo postulado diz que quaisquer retas podem ser prolongadas
indefinidamente; logo, o espaço é infinito em todas as direções. O terceiro
postulado afirma a existência do círculo e enfatiza que o espaço, além de
infinito, é infinitamente divisível, pois diz que o raio de um círculo pode ter
qualquer comprimento.
O quarto
postulado é desconcertante por sua aparente trivialidade. Note-se, no entanto,
que Euclides não diz que os ângulos retos são retos, o que seria uma
redundância; ele diz que são “iguais entre si”, uma ideia que não está contida na definição de ângulo reto. Ao
estabelecer que as figuras podem ocupar quaisquer posições e conservar suas
formas, permanecendo “iguais entre si”,
o postulado implica um espaço homogêneo.
Os postulados,
como se vê, definem as características do espaço – hoje seria mais rigoroso dizer de um tipo de
espaço – e estabelecem a existência de pontos, retas e círculos, os elementos
básicos da geometria de Euclides, com os quais ele demonstrará a existência de
todas as outras figuras que define.
Mas Euclides
sentiu a necessidade de também postular a existência de paralelas, necessárias
em muitas demonstrações. Era uma encrenca,
pois exigia encontrar
uma afirmação que fosse evidente
e, ao mesmo tempo, se referisse ao
que acontece no espaço remoto: paralelas são retas coplanares que nunca se
encontram. A solução do geômetra, mais uma vez, foi muito engenhosa: propôs um
postulado que só fala de retas secantes, cuja existência é indiscutível, mas mantém implícita a existência
de paralelas.
Mesmo assim,
ele logo foi reconhecido como problemático. Ouçamos Proclo: “O fato de que as
retas convergem quando os ângulos retos são diminuídos é certo e necessário;
mas a afirmação de que chegarão a se encontrar é apenas verossímil, mas não
necessária, na falta de um argumento que prove que isso é verdade para duas
linhas retas. Pois o fato de que existam algumas linhas que se aproximam
indefinidamente mas permanecem sem se tocar [asýmptotoi], por mais improvável e paradoxal que pareça, também é
certo e está comprovado em relação a linhas de outro tipo. Por que, no
caso das retas, não é possível ocorrer
o mesmo que ocorre com as linhas mencionadas?” Proclo conclui que o quinto
postulado “deve ser riscado dos postulados, pois se trata de um teorema repleto
de dificuldades”.
O debate sobre
isso envolveu os grandes geômetras gregos, árabes e europeus durante mais de 2
mil anos, sem solução. Cresceram as suspeitas de que não se tratava de um
verdadeiro postulado, mas as tentativas de manejá-lo como um teorema exigiam
introduzir novos postulados igualmente problemáticos, que eram meros
equivalente lógicos do postulado de Euclides; configurava-se assim o erro que
os filósofos chamam de petição de princípio, ou seja, adotar como ponto de
partida de uma demonstração o mesmo argumento que será provado no fim dela.
Tentou-se deduzir o quinto postulado dos demais, até que se provou que
isso era impossível. Buscaram-se formulações alternativas, todas insuficientes.
E, quando ele era simplesmente retirado, o sistema perdia o requisito da
completude: muitos teoremas não podiam mais ser demonstrados.
Parecia
impossível inserir a afirmação de Euclides em seu próprio sistema,
consistentemente. O postulado das paralelas, como ficou conhecido, permanecia
como um corpo estranho, um expediente que preenchia uma
lacuna no encadeamento lógico. D’Alembert disse que ele era “o escândalo
da geometria”, pois a credibilidade dos teoremas não pode ser maior do que
o grau de credibilidade associado ao
postulado que tenha menor credibilidade.
Dois pensadores
estiveram perto da solução, o árabe al-Khayyami (1048-1131) e o jesuíta
italiano Girolamo Saccheri (1667-1733). Ambos adotaram o caminho da redução ao
absurdo. Aceitando o restante do sistema euclidiano e negando o quinto
postulado, pretendiam chegar a contradições, o que demonstraria a validade e a
necessidade dele. Não sabemos bem até onde foi al-Khayyami, mas Saccheri
abandonou a empreitada quando começou a encontrar o que denominou “teoremas
estranhos”.
Teve nas mãos o
bilhete premiado, mas não percebeu. Começara a descobrir uma outra geometria,
mas viu nisso um erro. Estava preso à ideia milenar de que só a geometria de
Euclides podia existir.
***
Só no século
XIX, um matemático de valor excepcional, o alemão Carl Friedrich Gauss, e dois
matemáticos jovens, o húngaro János Bolyai e o russo Nicolai Lobachevski,
trabalhando de forma independente, ousaram prosseguir até o fim na dedução dos
“teoremas estranhos”. Em vez de encontrar contradições, como esperavam,
chegaram a geometrias consistentes e completas, diferentes da euclidiana, mas
sem defeito lógico.
Gauss não
divulgou seu trabalho, pois acreditou que ninguém o compreenderia. O
inseguro Bolyai entregou
o manuscrito ao
pai, também matemático, que
o enviou a Gauss sem saber que este último já tinha percorrido o mesmo caminho.
O texto pioneiro de Lobachevski, por sua vez, denominava-se “Geometria
imaginária”. Os descobridores pisavam em ovos: viam que as descobertas eram
deveras estranhas. Não era para menos: Bolyai
e Lobachevski, por exemplo, adotaram como postulado a afirmação de
que por um ponto fora de uma reta é
possível fazer passar mais de uma paralela à reta dada...
O trabalho dos
três foi completado depois, magistralmente, por um aluno de Gauss, Bernhard
Riemann, cuja geometria nega a existência de paralelas. Ao contrário do espaço
infinito de Euclides, o espaço de Riemann é finito, mas ilimitado, pois ele
aplicou a noção de curvatura ao espaço tridimensional, em uma formulação muito
abstrata, quase sempre mal compreendida. (Muito depois, essa “geometria
imaginária” foi decisiva na formulação da relatividade geral, a teoria física
mais importante do século XX.)
Para dar só um
exemplo dos resultados discrepantes, em cada uma das geometrias a soma dos
ângulos de um triângulo é diferente: sempre igual a
180 graus em
Euclides, sempre menor que esse valor em Lobachevski e Bolyai, sempre maior em Riemann.
Eugênio
Beltrami, Felix Klein, Henri Poincaré e David Hilbert demonstraram em
sequência, por diversas vias, que as novas geometrias tinham a mesma validade que a geometria de
Euclides. Mais ainda: demonstraram que a eventual inconsistência de uma delas
implicaria a inconsistência do próprio sistema euclidiano. Nunca mais poderíamos,
como Saccheri, nos livrar dos “teoremas estranhos”. Desde então, as geometrias
se multiplicaram, mas, para nosso consolo, Sophus Lie demonstrou que elas não
são infinitas.
Como é possível
essa existência múltipla da verdade? Qual, afinal, a geometria verdadeira?
Ouçamos Einstein: “Não podemos nos interrogar se é verdade que por dois pontos
passa uma única reta. Podemos apenas dizer que
a geometria de Euclides trata de figuras, que ela chama de ‘retas’, às
quais atribui a propriedade de serem determinadas univocamente por dois de seus
pontos. O conceito de ‘verdadeiro’ não se aplica aos enunciados da geometria
pura, pois com ‘verdadeiro’ nós costumamos, em última análise, designar a
correspondência com um objeto ‘real’. Porém, a geometria não se ocupa da
relação entre seus conceitos e os objetos da experiência, mas apenas com os
nexos lógicos desses conceitos entre si.”
Teoremas
incompatíveis entre si podem ser igualmente verdadeiros se estiverem
perfeitamente integrados em diferentes sistemas lógicos. Compreender isso foi a
culminância do ideal da ciência grega, de um modo que nem os gregos ousaram pensar.
***
Sempre que
avança, a ciência cria problemas novos. Por isso, sua marcha não pode ter fim.
Se a matemática passou a admitir diferentes geometrias, qual delas se aplica ao
mundo físico? No século XIX, a questão era inédita. Gauss concluiu que a
resposta dependeria da observação empírica. Com medições geodésicas, lançou-se
em busca de uma prova experimental, mas seus esforços não foram conclusivos:
nas escalas humanas, as geometrias convergem para padrões euclidianos.
(Poincaré propôs outra solução: as geometrias são convenções, de modo que todas
são aplicáveis; a euclidiana é apenas mais cômoda.)
Paradoxalmente,
a culminação do ideal grego redimiu a geometria praticada por egípcios e
babilônios, que ele mesmo havia superado. Seria mais correto dizer que houve
uma bifurcação. Pois, ao lado de uma geometria física, novamente empírica, as
pesquisas em geometria pura foram impulsionadas na direção de formulações ainda
mais abstratas, em busca de procedimentos lógicos mais rigorosos.
Hilbert
elaborou novos postulados de modo a apartá-los de qualquer representação
sensível. Em vez de evocar objetos especificados, buscam estabelecer relações
entre objetos genéricos, representados por letras, e são manejados sem que
contenham nenhum sentido, segundo regras puramente formais. Esse caráter
hiperabstrato da matemática contemporânea foi sintetizado, não sem ironia, por
Bertrand Russell: “A matemática é uma
ciência na qual nunca sabemos do que estamos falando, nem se aquilo que
estamos falando é verdadeiro.”
Pobre Kant. Se
a matemática trabalha com proposições destituídas de sentido, adaptáveis a
qualquer conteúdo, então se desfaz o problema que o atormentou. A
aplicabilidade das leis matemáticas ao real não decorre de uma harmonia
maravilhosa entre o espírito e as coisas. Tais leis valem em nosso mundo
simplesmente porque valem em todos os mundos possíveis.
-----------------Fonte: http://www.contrapontoeditora.com.br/arquivos/artigos/201008020426300.Euclid es_e_a_geometria.pdf. Título original: Euclides e a Geometria.