O transcrevo aí abaixo um editorial do jornal Folha de São Paulo, publicado no último fim de semana. O foco é a política sobre drogas adotada pelo Uruguai, no que se refere à cannabis. O jornal intitula o texto como 'Uruguai na vanguarda', tendo em conta a fase da política uruguaia que começou no último dia 19/07 e que consiste na venda do produto num número determinado de farmácias do país, sob o controle do governo. Num exemplo de política gradual e tendo em atenção o fator saúde, a descriminalização já estava instituída entre os uruguaios. O reconhecimento do significado da política do país vizinho pela Folha nada mais faz do que constatar um fato, onde ciência e racionalidade passam a ser critérios de arbitragem, ao invés de preconceitos, insensatez e opiniões desprovidas de fundamentos, sendo exemplo dessa toada o "achismo" segundo o qual "todo defensor da descriminalização do uso da cannabis é usuário da mesma". O fracasso da dita guerra às drogas (que teve efeito contrário ao que pretendia), o controle dos presídios por organizações criminosas, o proibicionismo que alimenta o mercado do tráfico, o equívoco de encarcerar pessoas que o que precisam é dos serviços de saúde, etc., deveriam ser pontos centrais para o debate sobre as drogas num país como o Brasil, como a dimensão que tem na América Latina. Mas foi o Uruguai quem saiu na frente, e está na vanguarda. Mesmo sabendo-se que a questão das drogas é um tema complexo e não tem solução fácil, o país vizinho passa a ser uma referência na discussão sobre o assunto e, por certo, um centro que atrairá a atenção dos formuladores de políticas e dos pesquisadores que estudam as drogas.
Uruguaia mostra embalagem com cannabis comprada legalmente em farmácia de Montevidéu (legenda/registro da publicação da Folha de São Paulo) |
Editorial, Folha de São Paulo (dia 24/07/201)
Começou na quarta-feira (19)
a última fase da nova política do Uruguai para a maconha. Em 2013, lei aprovada
pelo Congresso prescreveu a legalização gradual da droga. Primeiro, autorizou o
plantio individual ou em clubes de cultivo (posse e consumo já eram liberados).
Agora, a erva passa a ser vendida às claras em 16 farmácias do país.
A
venda legal da maconha é restrita a cidadãos uruguaios ou residentes, que
precisam se registrar para adquirir até 10 g por semana. De modo inédito,
produção e distribuição ficam a cargo do Estado.
Outros
países, como Portugal e Holanda, além de Estados dos EUA, descriminalizaram uso
pessoal ou plantio caseiro. Só o Uruguai, porém, chegou à extravagância de
estatizar todo o processo, levando mais longe a bandeira dos críticos do
paradigma proibicionista.
Não
há exagero em afirmar que o vizinho de 3,5 milhões de habitantes atrairá as
atenções de boa parte do mundo. Aspectos positivos e negativos da experiência
uruguaia, ainda que limitada à maconha, serão esgrimidos no que parecem
contendas intermináveis entre quem apoia a guerra às drogas e quem advoga por
sua legalização.
Se
observado em perspectiva, contudo, esse debate está em movimento – e o segundo
grupo tem conquistado terreno.
Nos
anos 1980, quase não havia controvérsia; "proibir" era a palavra de
ordem. O consenso começou a se desfazer na década seguinte, quando diversos
países europeus passaram a preservar usuários, punindo apenas traficantes.
Consolidada
a tendência, cresceu o grupo de personalidades insuspeitas dispostas a
sustentar as vantagens da descriminalização (eliminar ou abrandar penas para o
consumidor) e da legalização (autorizar produção e venda).
Os
argumentos são sólidos. A guerra às drogas provou-se caríssima, ineficaz e
proveitosa para os traficantes. Já a legalização pode gerar recursos para o
Estado e garantir que os usuários com problemas sejam tratados em clínicas, e
não em prisões, das quais não raro saem piores do que entram.
Adversários
das medidas sempre disseram que a liberação das drogas implicaria aumento do
número de consumidores e da criminalidade. A prática tem provado que esses
temores são infundados.
No
ano que vem, o Canadá seguirá o exemplo do Uruguai. Pode-se imaginar que, em
breve, outros países farão o mesmo. De forma gradual, como deve ser, um
paradigma insensato vai cedendo a um modelo muito mais racional.