Por Rafael Barros de Oliveira
Quando recebeu o título de professor emérito da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), em 1997, o geógrafo Milton Santos pronunciou um discurso intitulado O intelectual e a universidade estagnada. Nessa intervenção, indagando-se sobre as possibilidades de
produção adequada de conhecimento num mundo em constante mudança,
questionou: Como fazê-lo no
Brasil, onde a vida intelectual está organizada em torno de clubes, de clãs e
do enturmamento, sendo às vezes mais útil passar as noites em reuniões com os
colegas que mandam, do que queimar as pestanas, como antigamente se dizia, em
frente dos livros?
Santos aponta para um fenômeno bastante comum na paisagem universitária
nacional, a saber: a endogamia. Formam-se grupos de poder e de influência entre os membros da
comunidade acadêmica, os quais aparelham e capturam as instituições, mandando,
desmandando e ditando seus rumos e perpetuando-se nas posições de chefia. Nesses
casos, como disse o geógrafo, vale mais a pena investir o tempo em cópulas
sociais – quando não físicas – com colegas influentes do que em estudos,
pesquisas e publicações.
Outro aspecto dessa formação de panelinhas é a endogenia: a produção das futuras gerações
acadêmicas no interior da própria universidade, sem muito espaço para
influências externas. Isso está bem documentado por uma pesquisa do
departamento de ciência da computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sobre circulação de pesquisadores no
Brasil. Analisando cerca de seis mil pesquisadores brasileiros, o grupo
observou que apenas 20% (um quinto do total, portanto) constroem suas carreiras
profissionais a mais de quinhentos quilômetros (500km) de onde fizeram sua
formação universitária.
O efeito mais pernicioso dessa estrutura de reprodução endogâmica e
endogênica é o engessamento e a falta de circulação – não só de pessoas, mas de ideias.
Gerações atuais costumam repetir ou, na melhor das hipóteses, reformular os
trabalhos realizados por seus orientadores e orientadoras e, consequentemente,
treinar gerações futuras para seguir na mesma toada: a repetição da
repetição, ad nauseam. Ora, a força das universidades e da vida acadêmica reside precisamente
em sua capacidade de abertura a novas ideias. Sem ela, é impossível à universidade realizar sua
tarefa mais vital, da qual sua sobrevivência depende estritamente, como bem
apontou Santos:
A universidade, aliás, é, talvez, a
única instituição que pode sobreviver apenas se aceitar críticas, de dentro
dela própria, de uma ou outra forma. Se a universidade pede aos seus
participantes que calem, ela está se condenando ao silêncio, isto é, à morte,
pois seu destino é falar. A fidelidade reclamada não pode ser à universidade, e
a ela não temos razão para ser fiéis. Nossa única fidelidade é com a ideia de
universidade. E é a partir da ideia sempre renovada de universidade que
julgamos as universidades concretas e sugerimos mudanças.
Pois bem, embora não se configurem estritamente como casos de nepotismo – o favorecimento de parentes na
nomeação de cargos – porque não se tratam de relações consanguíneas, há de se
convir que a atuação de padrinhos e madrinhas acadêmicos é decisiva na construção de
carreiras na universidade. Além de impedir a renovação científica, intelectual
e crítica das instituições, pressupostos de seu fortalecimento, essa prática
provoca distorções quanto à primazia da qualidade acadêmica ou promoção de
certa meritocracia.
Para além de razões culturais, antropológicas e sociológicas que invocam
traços da formação brasileira como compadrio, uma das causas desse fenômeno
está na própria estrutura de carreira das universidades brasileiras, especialmente as públicas. Uma vez
aprovado(a) no concurso, o(a) docente adquire estabilidade no cargo após um
período de experiência de alguns anos – normalmente três.
Como combater esse problema? Engana-se quem pensa que a solução esteja
na extinção da estabilidade. Países anglófonos, como Estados Unidos, Inglaterra e Austrália, por
exemplo, concedem estabilidade a uma parcela cada vez menor de docentes, o que
gera uma massa de profissionais com contratos temporários instáveis e
precários, sobrecarregados por obrigações e impossibilitados de desenvolver
pesquisas de médio-longo prazo – o que, irônica e paradoxalmente, lhes
qualificaria para postos permanentes. Países como Alemanha, França e Itália têm
soluções locais para promover algum grau de circulação em seus sistemas
universitários, mas essas costumam estar intimamente ligadas à história e à
constituição desses.
Não é necessário, entretanto, importar soluções. Um caminho se encontra
disponível no Brasil, nas carreiras jurídicas, por exemplo. Carreiras federais
são organizadas nacionalmente, e os ingressantes distribuídos pelas diversas
Unidades da Federação de acordo com a demanda e disponibilidade de vagas de
cada uma delas (exemplo: Ministério Público Federal). Ao longo da carreira, a
cada x anos, o(a) profissional pode optar por se transferir
para outra localidade – novamente de acordo com a demanda e a disponibilidade
de vagas. O mesmo acontece em esfera estadual (exemplo: magistratura estadual).
Isso tudo sem prejuízo da estabilidade no cargo.
Por que não tentar algo semelhante na carreira acadêmica? Docentes e
pesquisadores poderiam prestar concursos federais e estaduais, após cuja
aprovação seriam alocados nas instituições que carecessem de profissionais.
Alguns anos depois, poderiam solicitar transferência para outras, se for de seu
interesse.
Naturalmente, não se trata de uma solução perfeita. Ela não impede a
captura de bancas de concursos por grupos de influência e distorções
sistêmicas. No entanto, já é mais do que se tem feito hoje para combater esse
grave problema: nada. Dado o que está em jogo, vale a aposta.