Dizem os economistas Abhijit Banerjee e Esther Duflo que ignorância e
inércia são, dentre outros, fortes adversários do desenvolvimento pessoal e
social, assim como bloqueadores do
raciocínio analítico. O que só faz “embaralhar” a percepção da realidade e a
compreensão dos dispositivos de mudança social. De qualquer forma, não é padrão
que o erro humano seja, de todo, “aleatório”, na medida em que as tomadas de
decisões decorrem de "deambulações mentais" que podem gerar resultados previsíveis e,
ao mesmo tempo, distantes do que seria o mais apropriado para o indivíduo e a
sociedade – se fossem resultados oriundos de decisões assentes num “código de
racionalidade”. O ser humano parece propenso a estabelecer vínculos imediatos
de causa e efeito em tudo o que presencia e vivencia. É preciso, portanto,
conhecimento sistematizado, análise e equilíbrio para evitar o autoengano e o enviesamento de
entendimento perante a realidade em geral e os fatos que instigam o sentido da
vida cotidiana.
Pois bem, nos últimos tempos, no Brasil,
parece que não temos marchado por aí numa esfera fundamental: o da pesquisa
social/educacional. Uma ilustração empírica a esse respeito: uma credível
pesquisa feita recentemente (com uma amostragem representativa de um universo
de 17 milhões de jovens com idade entre 15 e 19 anos) revelou que, para 85,2%
dos discentes do Ensino Médio, o principal problema da escola é a questão da
segurança. Enquanto isso, por outro lado, paradoxalmente, “algumas pautas educativas” e “determinados
pesquisadores educacionais” andam a alimentar uma agenda que, inteiramente
desconectada da realidade dos sujeitos em formação, regozija-se ora com modas
acadêmicas, ora com a repetição estéril de enfoques que, se no passado tiveram
relevância, atualmente se revelam impertinentes como dispositivos analíticos,
e, desse modo, uma das suas utilidades - para os que os repisam como “bens do
mercado cognitivo” - é servir de degrau
para a autopromoção e o marketing pessoal.
Posto
isto, o realce é para dizer que o livro Educação e Sociedade: Perspectivas sobre
Saúde, Ambiente e Formação, que
organizo e brevemente estará disponível, com o selo da Editora Universitária
CCTA e sob a chancela do CNPq, procura seguir uma trilha diferente.
Pesquisadores estrangeiros e de diferentes universidades brasileiras buscam desenvolver abordagens tendo como
propósito tratar analiticamente das questões que a realidade coloca como
desafio e, por outra parte, aportar conceitos e procedimentos para as enfrentar
no terreno da prática social. Segue, aí abaixo, a Introdução do livro.
Em um dos seus últimos trabalhos, o geógrafo brasileiro Milton
Santos, ao ter em perspectiva os cenários do início do século XXI, assinalou:
“Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido.”[1]
Em seguida, indagava se existiria nisto um paradoxo pedindo uma explicação, e
afirmava que há, por um lado, um extraordinário progresso das ciências e das
técnicas e, por outro, as vertigens que a aceleração contemporânea cria, a
começar pela própria velocidade. Porém, tudo isso, conforme o seu entendimento,
são inventos de um mundo criado pelos próprios seres humanos, cuja utilização,
aliás, permite que o mundo se torne esse mundo confuso e confusamente percebido.
Dessa forma, para entender a realidade que estamos a viver, enfatizava ele: “Explicações
mecanicistas são insuficientes. É a maneira como, sobre essa base material
[contemporânea], se produz a história humana que é a verdadeira responsável
pela criação da torre de babel em que vive a nossa era.” [2]
Entender a nossa era, em suas múltiplas dimensões, é, portanto, um
desafio. Para isso, é necessário método, ou seja, conforme a etimologia da
palavra indica, é preciso definir um caminho de estudo e de abordagem. Nesse
sentido, ao publicar o seu clássico trabalho “A Sociedade em Rede”,[3]
Manuel Castells foi paradigmático ao delinear uma perspectiva: “Proponho
a hipótese de que todas as maiores tendências de mudança em nosso mundo novo e
confuso são afins e que podemos entender o seu inter-relacionamento. E acredito
que observar, analisar e teorizar é um modo de ajudar a construir um mundo
diferente e melhor.”
De forma geral, o presente livro assume essa perspectiva como
pressuposto. O que mais, no entanto, nele, aglutina autores de diferentes
países (Brasil, Uruguai, Portugal e Espanha) e oriundos de distintas tradições
acadêmicas? Dentre outros, podem ser mencionados mais dois aspectos
inter-relacionados.
O primeiro é a busca por desenvolver enfoques inter/transdisciplinares,
o que significa então procurar superar a fragmentação disciplinar, que separa
na teoria o que está unido na empiria, e assim ergue fronteiras estanques
classificando “pedaços da realidade” de acordo com os “interesses corporativos
da cada ciência específica” (e de seus agentes). Como decorrência, o segundo aspecto
diz respeito à tentativa de construir novos enfoques e paradigmas em torno das
questões abordadas pelo livro.
Tendo o referido norte, a obra se estrutura em torno de cinco
eixos temáticos: educação e saúde; drogas e sociedade; educação em espaços não
formais; ambiente e educação; epistemologia e sociedade.
Em relação ao primeiro eixo, o texto de Ivonaldo Leite faz uma
incursão retrospectiva na relação educação e saúde, seguida de uma abordagem
sobre as configurações dessa relação na contemporaneidade e de um enfoque
considerando a pesquisa no campo da saúde, tendo em conta a formação
profissional. Por sua vez, Paulo Santana, apoiando-se nos estudos da
complexidade desenvolvidos por Edgar Morin, realiza um movimento analítico em
que discute o processo saúde-doença, o conceito de saúde e coloca em realce um
histórico da construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Em perspectiva
semelhante, mas com uma dimensão sociológica mais acentuada, segue o texto de
Nildo Viana tratando do processo saúde-doença como processo social e das causas
das doenças relacionadas às condições de vida das classes sociais.
O tema das drogas (lícitas e ilícitas) é o fio condutor do segundo
eixo. Nele, Renata Monteiro Garcia problematiza analiticamente a medicalização
da infância e destaca o grau de gravidade ao qual se chegou a prescrição da
chamada “droga legal” no cotidiano escolar, referindo, nesse sentido, o uso do
medicamento metilfenidato, também conhecido pelos nomes de Ritalina e Concerta. Trata-se, por certo, de uma questão que coloca
significativos desafios ao trabalho pedagógico na infância, constituindo-se,
além disso, num problema preocupante quando se consideram as consequências que
o uso de metilfenidato tem sobre os corpos e o desenvolvimento das crianças. Por
sua vez, Ione Gomes e Patrícia Souza passam em revista o debate sobre a
descriminalização ou não das drogas ilícitas. Trata-se de uma discussão, sem
dúvida, de significativa relevância no contexto brasileiro, onde, muitas vezes,
os preconceitos e a desinformação em matéria científica impedem a devida
compreensão do assunto e, portanto, bloqueiam a formulação de políticas
apropriadas a respeito. Da sua parte, Fernando Bessa Ribeiro, David Pereira e Cristina Macieirinha dão a conhecer a
experiência do seu país, Portugal, no tocante à política de drogas, experiência
marcada por já mais de 15 anos de descriminalização e que tem recebido menções,
na comunidade científica, como referência a ser considerada no que concerne à
apreciação de ações para lidar com a questão.[4]
Daí que, sugestivamente, os autores intitulem o seu texto como “Interpelando o
proibicionismo: o caso português como possibilidade de outros caminhos para as
políticas da droga?” O Uruguai também tem sido destaque por sua política
alternativa em relação às drogas, com uma perspectiva mais ousada do que
Portugal, e, de lá, Valentín Magnone aporta um texto ao livro, enfocando
as políticas de drogas e o conceito de governamentalidade. Um aspecto pouco
abordado, e mesmo despercebido, é o abuso de substâncias psicoativas por
estudantes com deficiência, e é disso que, fechando o segundo eixo da obra, se
ocupa Fernanda Jorge Guimarães e colaboradores, tratando de intervenções
educativas preventivas.
O
terceiro eixo do livro é voltado ao fenômeno educativo nos contextos não
formais. A esse respeito, Sheyla Fontenele, Iandra Caldas e Francicleide
Cesário têm em apreciação o hospital como espaço educativo e tratam da formação
ético-profissional do pedagogo para atuação na esfera hospitalar. As autoras
enfatizam que a Pedagogia Hospitalar é uma prática educativa organizada,
voltada a um ambiente educacional específico, requerendo, portanto, que os cursos
de Pedagogia revejam os seus componentes curriculares, considerando esse âmbito
de ensino-aprendizagem. Pedagogia Social
e Educador Social são expressões que, sobretudo nos últimos tempos, têm marcado
o campo da educação não formal no Brasil, existindo, todavia, por outro lado,
um amplo desconhecimento das suas definições e significados. Em seu texto,
Milene Rejane debruça-se sobre o assunto e coloca em realce uma perspectiva
histórico-conceitual a respeito do perfil do Educador Social, considerando
também a sua configuração como profissão no Brasil.
O
quarto eixo refere-se ao tema ambiente e educação. Tema, por si, propenso a
aglutinar enfoques disciplinares diversos, ele tem essa expressão confirmada no
texto de Sérgio Botton Barcellos. O autor, um interveniente na questão
ambiental no extremo sul do Brasil, realiza uma incursão relacionando, por
exemplo, educação ambiental e saúde, a partir de um projeto social desenvolvido
no município de Santa Maria/RS. Também aliando atuação acadêmica e intervenção no
contexto da temática ambiental no extremo sul do Brasil, Carlos Machado enfoca,
junto com Kathleen Aguirre e Eron
Rodrigues, a relação entre Educação
Ambiental e o emergente campo da História Ambiental. Eles discutem a produção e a reprodução do real nas/das relações sociais, o contexto
brasileiro e a configuração do real relacional desigual, assim como o lugar da
Educação Ambiental e da História Ambiental perante esses delineamentos.
A reflexão sobre corpo e sociedade, acerca do social
e do natural, bem como a respeito da sociedade e dos processos neurais,
estrutura a base de enfoque do quinto e último eixo do livro. Nesse sentido,
Gilmar Leite realiza uma abordagem aproximativa do tema corpo e natureza,
realçando notas propedêuticas, constantes do pensamento moderno e contemporâneo,
e que se constituem como uma espécie de convite a uma incursão mais
pormenorizada no assunto. A busca de estreitamento de relação entre as
neurociências e as ciências humanas tem sido algo fortemente valorizado na
Espanha, principalmente quando está em apreciação a busca de novas alternativas
educativas, resultando disso, por exemplo, formulações como neuroeducação.[5]
Dando expressão a esse empenho analítico do seu país, Vicente
Huici Urmeneta encerra o livro com um texto que, aproximando neurociências e o
contexto social, delineia um novo campo do conhecimento: a neurosociologia.
Tendo a
forma e o conteúdo que se acaba de descrever, este livro apresenta-se, por um
lado, como um contributo ao debate em torno dos temas que ele aborda e, por
outro lado, como obra cuja leitura pretende ser um ponto de maturação de
procedimentos para tratar dos problemas que desafiam a prática social.
Por fim,
cabe deixar consignado que a sua publicação é levada a cabo sob a chancela do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
[1] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à
consciência universal. 10 ed. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 09.
[2] Ibidem, p. 09.
[3] CASTELLS, Manuel. The rise of the
network society. Vol. I. Cambridge, MA; Oxford, UK: Blackwell, 1996.
[4] Ver, por
exemplo, HUGHES, Caitlin E.; STEVENS, Alex. What Can We Learn From The Portuguese
Decriminalization of Illicit Drugs? In: The British
Journal of Criminology, vol. 50, nº 06, 2010, p. 999-1022.