quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A Realidade da Abstração

A empreitada é de grande monta, mas é dela que se ocupa o  português João Esteves da Silva. Autor de trabalhos de destacada envergadura, como Para uma Teoria da História e Cinco Ensaios sobre Wittengenstein, no texto A Realidade da Abstração, João Esteves debruça-se sobre um conjunto de questões desde sempre cimeiras no pensamento social ocidental: o movimento, as deambulações do pensamento, a 'fenomenologia do espírito', os limites da lógica (formal), a metafísica, o problema do valor, etc. Claro, aí estão Hegel e Marx. Esteves chama as coisas pelos nomes, e aponta a dialética materialmente referenciada como trilha para superar as desventuras do formalismo lógico. Nesse sentido, é emblemático ao dizer, por exemplo, que "o valor só se constitui quando, no processo efetivo das trocas, se opera a metamorfose do produto em mercadoria, com o concomitante desdobramento desta em si mesma e no seu outro, o dinheiro". Ou ainda quando coloca de parte o idealismo hegeliano, para realçar que a instituição de objetividades específicas a cada passo do desenvolvimento não se refere à tomada de consciência ou do desenvolvimento do espírito, mas, sim, "trata-se de reconstituir conceptualmente esse discurso que está aí tacitamente pronunciado e em cada operação de troca, nos atos, nos gestos e palavras dos seres humanos concretos que, sem o saber, transformam os objetos, produtos do seu trabalho, em expressões uns dos outros, ao incluí-los num contexto social". Sem mais, a seguir o texto de Esteves (mantendo o grafo lusitano).


A realidade da abstracção 
 
 Há um tipo de crítica que se compraze em evacuar, sob o seu palavreado, como produtos da reflexão ou da contradição da definição, as dificuldades que residem nas determinações contraditórias das próprias coisas; é claro que o paradoxo da realidade se exprime igualmente sob forma paradoxal que vai contra o senso comum do que ‘what vulgarians mean and believe to talk of’.
(Karl Marx, ’Teorien über Mehrwert’)


Por João Esteves da Silva

O tema da minha exposição será o da realidade abstracção.
Não me surpreenderia se, a um ouvido desprevenido, a simples menção da realidade da abstracção soasse de um modo paradoxal. No entanto, até mais por isso do que apesar disso, talvez esse ouvido desprevenido estivesse mais perto da verdade do que desprevenidamente pudesse pensar se, alguma vez, nisso houvesse pensado. Com efeito, é apenas no reino do pensamento formal que a verdade foge do paradoxo como o diabo da cruz. Para quem tenda a assimilar toda a racionalidade à racionalidade formal, a abstracção real só pode configurar-se como o absolutamente impensável. O que estas considerações implicam é que, ao abordar tal tema, impensável para o pensamento formal, eu irei precisamente procurar pôr em causa essa concepção formal da racionalidade. Fá-lo-ei a partir do pensamento de Marx. Procurarei mostrar, com base numa concepção do conhecimento que envolve uma completa ruptura com o seu entendimento positivista, que é o tema da realidade da abstracção que permite a inteligibilidade do discurso de Marx conferindo-lhe uma nota de cientificidade inconfundível com a leitura positivista da ciência.
A parte mais substancial da exposição será, portanto, dedicada a Marx e à sua análise do valor. No entanto, a fim de manter alguma ligação com os temas que têm sido abordados no âmbito do nosso pequeno grupo de trabalho sobre Hegel e Kant, a sombra de Hegel continuará a pairar nesta sala, já que procurarei orientar a minha abordagem no sentido de abrir caminhos que possibilitem o encontro de algumas pistas para a solução de um problema que já aqui nos tem preocupado, a partir das magníficas exposições do João Lopes Alves, qual seja, o do modo como o pensamento hegeliano ilumina a nossa contemporaneidade, e nos faz suspeitar que Hegel tenha captado no seio da realidade algo que ainda hoje é aí operante e efectivo.
Que Marx pensava estar em condições de dar algum contributo para a solução desse problema é um facto conhecido. No entanto, na ausência das célebres páginas, que brilham precisamente pela ausência, e nas quais prometera tornar acessível ao comum dos mortais o núcleo racional da dialéctica hegeliana, ainda hoje há motivos para supor que a questão da relação Marx/Hegel não esteja completamente clarificada.
Foi este precisamente o tema que abordei no Congresso Hegel que teve lugar em Lisboa, mas não vou repetir aqui as considerações que então tive ocasião de fazer. Direi apenas que, sem ter a pretensão de oferecer uma solução definitiva de tão espinhosa questão, procurei abrir caminhos que pudessem possibilitá-la mostrando que o problema não pode resolver-se por acentuação das diferenças, mas, pelo contrário, pondo em evidência o espaço teórico onde a convergência pode ter lugar. Infelizmente, nunca mais vim a dispor do tempo nem da oportunidade de retomar o trabalho então encetado pelo que poderá ser esta a ocasião de a ela regressar;  desta feita, através da realidade da abstracção.
Antes de entrar propriamente no tema, quero ainda deixar cair a observação de que bastará ter presente que o cerne do universo lógico hegeliano reside na sua crítica da finitude, consubstanciada na proposição da Lógica segundo a qual toda a filosofia é idealismo, porquanto o finito é ideal, para que se tenha a noção de quão árduas serão as dificuldades de recuperação dos mecanismos de posição da dialéctica hegeliana quando se deixa de pensar a individualidade de qualquer objecto como uma simples prega no movimento contínuo do Absoluto, e se afirma radicalmente a independência, do real em relação à sua apropriação cognitiva. Ora, são estes os árduos problemas que têm que ser afrontados quando se quer compreender como é que Marx é sistematicamente conduzido a recorrer aos mecanismos de posição da dialéctica de Hegel, embora nunca explicite, senão muito metaforicamente, o alcance preciso deste recurso.
Para avançar desde já, se não uma tese, pelo menos uma proposta de discussão, eu diria que é através do reconhecimento da realidade da abstracção que poderemos eventualmente vir a detectar onde se situa o célebre núcleo racional da dialéctica hegeliana.
Como diz Alfred Sohn-Rethel “se admitirmos que a abstracção é obra do pensamento, e só do pensamento, tornar-se-á impossível desembaraçarmo-nos do idealismo” (1).
A questão essencial é esta: pode haver uma abstracção que não releve do pensamento? A esta questão, diz ainda Sohn-Rethel, de todos os pensadores, antigos e modernos, só Marx respondeu afirmativamente.
Mau grado o que diz Sohn-Rethel, é óbvio que, em relação a Hegel, não pode subsistir qualquer dúvida de que sustentava a realidade da abstracção; mas, porque identificava realidade e pensamento, é correcto dizer que não respondeu afirmativamente aquela mencionada questão.
É talvez aqui que reside o segredo da abelhinha. Mas é tempo de entrarmos propriamente no tema.
Muito embora possam encarar-se outros tipos de abordagem e também outros desenvolvimentos, o caso propriamente paradigmático é o do valor, ao qual Marx dedica toda a 1ª secção do Capital, e que vem a assumir depois, ao longo de toda a obra, o papel de fundamento de todas as suas articulações teóricas.
Julgo que todas as incompreensões a que a obra de Marx tem estado persistentemente voltada radicam fundamentalmente no desentendimento do que vem a ser o valor e do mecanismo de abstracção real que o constitui como realidade social objectiva.
Decorridos mais de cem anos de incompreensão parece já ser tempo de compreender que a crítica da teoria marxiana do valor levada a cabo por autores dos mais diversos quadrantes, e que não serão todos nem obtusos nem reaccionários, deverá ter razões mais profundas do que a simples cegueira ideológica.
O caso é que o entendimento do alcance da obra de Marx supõe uma concepção do discurso teórico que se situa em posição de ruptura com a ideia de racionalidade em que assentou o desenvolvimento de toda a ciência natural moderna, onde a teoria é concebida como representação formalizável destituída de qualquer peso ontológico e capaz de funcionar como modelo da realidade.
No fundo, todas as críticas dirigidas à teoria do valor ainda hoje se limitam a repetir, com algumas diferenças de acentuação, o ataque desencadeado no início deste século por um economista da escola austríaca, Bohm-Baverk, no seu livro já clássico “Karl Marx e o fechamento do seu sistema” (2); e, por seu turno, as críticas de Bohm-Baverk, apesar de muito diversificadas, entroncam todas numa só que é esta: não é possível descortinar qualquer fundamento lógico que leve a privilegiar a abstracção valor em relação à abstracção utilidade.  Como diz Bohm-Baverk, a abstracção que, a partir do valor de uso das mercadorias particulares, constrói o conceito de utilidade é, em principio, tão razoável como aquela que constrói o conceito genérico do trabalho abstracto, a partir da diversidade dos trabalhos concretos particulares.
E, com efeito, se concebermos o valor como um simples conceito genérico, um universal abstracto construído por comparação e generalização mental, o argumento é imbatível.
A teoria do valor trabalho de Ricardo não poderia efectivamente fazer-lhe frente, na medida em que Ricardo concebia precisamente o valor como um simples conceito que exprime o elemento geral e comum que se encontra em todas as mercadorias e por isso seria capaz de funcionar, sem mais, como sua medida quantitativa.
Se a teoria do valor de Marx pudesse reconduzir-se à teoria ricardiana, ela seria tão incapaz de resistir às críticas de Bohm-Baverk e dos seus seguidores, como já, no seu tempo, incapazes se mostraram os ricardianos perante as críticas de um Bailey.
Mas a teoria de Marx não é a de Ricardo; a partir da teoria ricardiana do valor trabalho, Marx introduz duas distinções fundamentais:
(1) em primeiro lugar, distingue o valor do valor de troca: o valor de troca não é o valor, mas tão só a forma fenomenal da sua manifestação;
(2) em segundo lugar, e esta é a distinção fundamental, distingue a substância do valor e a sua forma.
A primeira distinção implica, desde logo, que o valor não possa ser entendido como simples conceito destituído de toda a relevância ontológica; ao distinguir o valor da sua manifestação fenomenal, Marx não quereria certamente significar que os diferentes valores de troca fossem expressões ou manifestações do conceito de valor, tal como os indivíduos de carne e osso seriam expressões ou manifestações do conceito de Homem em geral. Quero, com isto, dizer que poderemos, desde já, começar a suspeitar que o valor tem, para Marx, uma consistência de que não gozam os conceitos representativos, como o de homem ou do animal em geral.
Mas a segunda distinção é muito mais importante e é nela que se concentram todas as dificuldades, dificuldades que, aliás, o próprio Marx ressentiu na sua exposição, e que se traduzem nas sucessivas remodelações que foi introduzindo no texto do Capital desde a 1ª edição até à tradução francesa.
Com efeito, a substância, do valor, ou seja, a sua identificação com o trabalho abstracto socialmente necessário à produção das mercadorias é aparentemente fácil de compreender, já que, como o próprio Marx observa, o valor, encarado sob esse aspecto exprime apenas aquilo que é comum à toda a vida social, independentemente das suas formas, ou seja, a repartição no tempo e no espaço da força de trabalho de uma comunidade humana qualquer, em função de uma massa de necessidades sociais determinadas.
Ainda aí há que compreender, e mais tarde voltaremos a esse ponto, que o trabalho abstracto que constitui a substância do valor não existe nos trabalhos concretos, como o elemento geral e comum a todos eles, nem apenas no espírito do teórico, que o abstrairia desses trabalhos concretos, por comparação e generalização: o trabalho abstracto só existe na mercadoria, como trabalho objectivado ou, com diz Marx, coagulado, aí onde o tempo de trabalho se dá como quietude, e não como movimento.
Com esta observação, já estamos em vias de saltar para o cerne da segunda distinção.
Em todo caso, a determinação do valor como substância é, de facto, extremamente simples e está ao alcance de qualquer criança, como observa Marx numa célebre carta a Kugelmann.
Mas a substância do valor não é o valor.
É claro que se o valor fosse apenas um conceito que exprimisse, a título de abstracção mental, o modo como cada uma e todas as mercadorias se apresentam na relação de troca, não haveria dificuldade alguma. A dificuldade só existe porque o valor é, no sentido forte, uma objectividade social constituída historicamente, e essa objectividade só se torna historicamente efectiva quando o trabalho social deixa de apresentar-se como dispêndio de uma força de trabalho social, para só se socializar quando encarnado na mercadoria, precisamente sob forma de valor ou mais exactamente sob a forma mercadoria e depois, sob a forma dinheiro, e depois ainda sob a forma capital.
As dificuldades surgem quando se trata de compreender que o valor, como forma de objectividade social específica de que os objectos trocados são expressão, só se constitui, na própria realidade e não apenas em pensamento, quando a sua substância, o trabalho abstracto, se apresenta na forma de valor. A real dificuldade reside em compreender como a substância do valor que, a título de abstracção mental, pode considerar-se tão antiga como a história, se constitui como substância formal, realidade sui generis onde não intervém um átomo de matéria.
O mais importante de tudo é não escamotear as dificuldades desta abordagem; para quem só conhece um tipo de racionalidade científica, aquela que se foi precisando na construção das ciências da natureza, e toma os seus objectos já constituídos, a consideração do valor como objectividade social imaterial de que as categorias são expressão, só pode aparecer como um paradoxo ou uma retorcida especulação metafísica.
É inclusivamente possível sustentar, como faz Hans Backaus num excelente artigo publicado na revista “Critiques de l’Économie Politique” (3), que, apesar de todas as reformulações introduzidas na redacção do capítulo 1 do Capital, subsiste uma falha na exposição de Marx. Com efeito, a necessidade da passagem da segunda para a terceira secção do capítulo 1º, só muito dificilmente é apreendida em virtude da insuficiente clareza da mediação entre a substância e a forma do valor. Realmente, como observa Backaus, “o que se grava na memória do leitor são as ideias aparentemente fáceis de compreender da substância do valor e do duplo carácter do trabalho, desenvolvidas na duas primeiras partes; mas a terceira parte, consagrada especificamente à forma do valor, é geralmente encarada como um simples ornamento dialéctico daquilo que já fora deduzido anteriormente. O facto de o “objecto geral” enquanto tal, o valor como valor não poder absolutamente apresentar-se em pessoa e só aparecer, sob forma deformada, como relação de dois valores de uso, furta-se à compreensão do leitor”.
Exceptuada a referência espúria à deformação da forma que não faz o mais pequeno sentido neste contexto, não posso deixar de considerar estas observações muito pertinentes, até porque correspondem à experiência que eu mesmo retirei da minha primeira leitura de ‘O Capital’. Contudo, tão pouco é o caso de lhe atribuir um relevo exagerado, como já anteriormente referi. Para além de eventuais insuficiências de exposição, sempre relativas, dada a complexidade do tema, há outras razões mais de fundo que explicam a incompreensão.
O certo é que, se não se põe claramente em evidência a relação entre a substância do valor e a sua forma, torna-se impossível descortinar, em toda a sua amplitude, a diferença que existe entre a teoria do valor de Marx e a da Economia Política clássica, e as críticas que vêem no conceito de valor um dogma metafísico, como faz, por exemplo, Joan Robinson, dentro de uma linhagem popperiana.
Se a teoria de Marx não se resume à determinação quantitativa do valor pelo tempo de trabalho, à maneira de Ricardo, ela só adquire sentido quando se descortina o mecanismo redutor objectivo que constitui historicamente o trabalho abstracto como realidade social efectiva, verdade prática, como diz Marx, e isto sem que o trabalho abstracto deixe de ser aquilo que efectivamente é, uma abstracção.
Este mecanismo redutor objectivo, irredutível à abstracção mental, é precisamente aquilo que designo por abstracção real; é na própria realidade social, na trama de relações que se instauram entre os homens, entre si e com os produtos do seu trabalho, que ocorre efectivamente um processo de constituição categorial que confere ao ser social a sua especificidade ontológica que o discurso teórico pode reconstituir cognitivamente a partir das abstracções determinantes que não são conceitos representativos, mas denotam, como diz Marx, condições de existência histórica.
As objectividades sociais não se oferecem em pessoa à sensibilidade dos agentes históricos; não se trata de uma objectividade sensível do mesmo tipo daquela que corresponde aos objectos naturais. Há que compreender como, no seio das práticas dos agentes históricos e das relações que entretecem entre si e com a Natureza, se constituem novos modos de ser que adquirem o estatuto de uma realidade sensível/ supra-sensível, onde os objectos se exprimem uns pelos outros - tal como nos escaninhos mais recônditos da esdrúxula dialéctica hegeliana - e as determinações formais se sobrepõem às determinações materiais e significativas. É aí que enraízam os erros simétricos e inversos que, ou encaram os seres sociais como pura materialidade, ou complementarmente como pura espiritualidade inteligível. O vício de que enfermam estas concepções não é propriamente metodológico; é a própria natureza da realidade social que implica que o seu conhecimento efectivo só possa produzir-se a partir da reconstituição da ordem de constituição ontológica da realidade, mostrando concretamente de que é que as formas são formas e como se constituem no processo das trocas, tendo a natureza por mediação fundamental.
O discurso de Marx não é uma economia política, mas uma crítica da economia política, justamente porque não se coloca, como a economia, no terreno dos objectos económicos já constituídos, sem antes procurar indagar as suas condições de existência histórica. Marx não aceita o universal já constituído sem anteriormente inquirir sobre o processo da sua constituição.
Podemos agora começar a lobrigar, embora ainda sem o aprofundamento necessário, aquilo que Marx deve fundamentalmente a Hegel: a conceptualização do real numa perspectiva de constituição, a preocupação de apreender a necessidade do objecto como coisa e de reconstituir os processos de formação através dos quais o objecto se produz, definindo o seu lugar entre diferentes ordens de realidade, umas mais reais outras mais mistificadas, antes de proceder à crítica dos diferentes discursos que sobre elas puderam ser proferidos. E o que Marx recusa, também aí de acordo com Hegel, é a redução positivista de todos os modos de objectividade a um só, e a sujeição da teoria à prova imediata dos factos; antes de confrontar a teoria com os factos, há que determinar a necessidade de cada facto, definindo o lugar que cada objecto ocupa na ordem dos seres e o tipo de necessidade que corresponde à sua racionalidade intrínseca.
Se me for permitido um pequeno excurso económico, gostaria de avançar um significativo exemplo a partir do problema da taxa média de lucro e da crítica que, a tal propósito, Marx dirige a Ricardo.
À superfície do modo de produção capitalista, é verificável o facto da perequação das taxas de lucro, fenómeno que tem, aliás, a virtude não negligenciável de tornar a mais-valia completamente inapreensível. Com efeito, em virtude da concorrência dos capitais e da possibilidade de se deslocarem de um para outro sector de produção, a taxa de lucro tende a igualizar-se nas diferentes indústrias, tornando-se proporcional à totalidade do capital investido. Este fenómeno está na base da transformação dos valores em preços de produção, tema que já fez correr rios de tinta e que não vou aprofundar aqui.
Bastará recordar que, enquanto a mais-valia é função e só função do capital variável, o lucro apresenta-se como função de todo o capital investido, sendo que o capital constante, com a evolução do sistema, assume um peso cada vez mais significativo. Os preços passam, então, a apresentar-se como o somatório dos custos de produção mais a taxa média de lucro. Assim sendo, põe-se evidentemente a questão de saber onde foi parar, a este nível empírico, a determinação do valor pelo tempo de trabalho.
Este problema era fatal para Ricardo; como concebia o valor como um simples universal abstracto, que exprime aquilo que há de comum nos diferentes fenómenos, ele era obrigado a reencontrar o valor, tal qual, nas suas diferentes formas transformadas - o salário, o lucro, a moeda, o juro. A contradição entre a determinação do valor pelo tempo de trabalho e a formação da taxa média de lucro passará a ser o fantasma com que se debaterá até ao fim dos seus dias.
A este respeito, a objecção que Marx dirige a Ricardo, e que nos nossos dias, dirigiria a Piero Sraffa, é precisamente a do carácter dado da taxa de lucro.
Eis o que escreve Marx a este respeito: “Ele supõe uma taxa geral de lucro, ou um lucro médio de igual grandeza para diversos investimentos de capital de igual grandeza, ou para várias esferas de produção onde são investidos capitais de igual grandeza, ou, o que dá no mesmo, um lucro que é função da dimensão dos capitais investidos nas diversas esferas de produção. Em vez de supor essa taxa geral de lucro, Ricardo deveria inquirir até que ponto a sua existência corresponde, em geral, à determinação do valor pelo tempo de trabalho, e teria verificado que, em vez de lhe corresponder, a contradiz “prima facie”; a própria existência da taxa média de lucro depende de uma enorme massa de mediações, um desenvolvimento muito diferente da simples subsunção sob a lei do valor. Teria assim atingido uma concepção totalmente diferente da natureza do lucro e deixaria de o identificar imediatamente com a mais-valia” (4).
Isto significa que Ricardo encara a relação entre o valor e as suas formas transformadas como uma relação de género-espécie, daí que Marx se refira à simples subsunção, pelo que o movimento que vai do valor às categorias mais complexas, seria um movimento que só tem lugar no pensamento teórico. Marx, pelo contrário, concebe essa passagem como um movimento real que se processa através de múltiplas mediações.
Marx não aceita o fenómeno como um simples dado, antes procura indagar a respeito da sua necessidade como fenómeno, e sobre quais são os processos da sua constituição. Essa é a razão pela qual ele tem que fazer recuar a análise até um nível muito mais elementar, onde a questão do valor possa ser colocada independentemente de toda a consideração do lucro. Só então poderá compreender-se como, a um nível mais elevado de concreção, os valores previamente criados marcam os limites dentro dos quais os preços fenomenicamente aparecem no seio de um processo de redistribuição da mais-valia entre as diferentes classes e fracções de classes.
Relativamente à questão dos preços de produção, Marx sabe perfeitamente que a identidade da soma dos valores e da soma dos preços não é determinável de um modo empírico. Ele sabe que a expressão não é a revelação, mas a ocultação do fundamento de onde emerge; mas também sabe que não é possível distribuir segundo os preços senão aquilo que foi criado segundo os valores e que a soma dos custos de todas as mercadorias forma uma unidade que pode contrapor-se à soma dos lucros.
Se não se lobriga o processo de constituição, a postulação da identidade da soma dos preços e da soma dos valores redunda num absurdo, como tem sido realçado por vários matemáticos desde von Bortkiewicz até Morishima. O que os matemáticos não entendem é que Marx jamais admitiria a consideração de uma soma sem entrar em linha de conta com a diferenciação dos seus membros.
Mas isso implica uma concepção da forma que não é a do formalismo matemático; há que deixar de concebê-la como um simples invólucro vazio, e evidenciar como o conteúdo é posto e desenvolvido pela própria determinação formal, ou melhor, como forma e conteúdo se determinam mutuamente.
É por isso que Marx inicia a sua análise a um nível elementar onde as mercadorias são encaradas apenas como mercadorias, antes de estarem já sobredeterminadas pelos seus preços, como produtos do capital. Só a partir deste nível, torna-se possível captar os modos de constituição dos fenómenos e conferir inteligibilidade às categorias que se mostram à superfície da vida económica.
Como diz exemplarmente J. A. Giannotti (5), o discurso de Marx é, antes de mais, a história categorial do modo de produção capitalista, discurso que procura reconstituir conceptualmente todos os passos e mediações necessárias da posição do capital, desde as suas formas mais elementares até às suas manifestações mais imediatas.
Tal como o discurso de Hegel, também o discurso de Marx é posicional; propõe e institui objectividades específicas a cada passo do seu desenvolvimento. Ao contrário, porém, do discurso do idealismo, não se trata do discurso da tomada de consciência ou do desenvolvimento do Espírito. Trata-se, sim, de reconstituir conceptualmente esse discurso que está aí tacitamente pronunciado em cada operação de troca, nos actos, nos gestos e nas palavras dos homens concretos que, sem o saber, transformam os objectos, produtos do seu trabalho, em expressões uns dos outros, ao incluí-los num contexto social.
Parafraseando ainda Giannotti, poderá dizer-se que, entre a Natureza, na cegueira do seu determinismo, e a consciência, no isolamento da sua individualidade, ocorre na própria realidade a instauração de um logos prático e objectivo, onde as significações encontram a sua génese. E são os homens que, ao longo da sua história, e no decurso da sua vida quotidiana, ao despenderem esforço físico na transformação da Natureza e de si próprios instauram e mantêm um reino de objectividades, ao mesmo tempo, lógicas e reais. É este o reino cuja exploração científica Marx iniciou, depois de Hegel o ter colonizado filosoficamente. Ao prosseguirmos o seu caminho, talvez venhamos a descortinar um dia que nem a Natureza é tão cega nem a consciência tão só.
À sombra do tal pequeno excurso económico, verifico agora que já me espraiei demasiadamente; e embora o tenha feito não de todo improdutivamente em relação ao tema fundamental da exposição, o certo é que terei deixado em suspenso a explicitação do processo de constituição do valor como abstracção real que só existe no circuito das suas múltiplas encarnações. É, pois, tempo de retomar a exposição nesse ponto.
Quando a economia clássica, e particularmente Ricardo, resolve ou dissolve o valor no tempo de trabalho, ela não se apercebe de que o essencial ainda está por fazer, pelo que não põe em evidência que o valor só se constitui, como abstracção real, quando se opera o desdobramento da mercadoria em si mesma e no seu outro, o dinheiro; há que compreender que o processo que transforma os produtos do trabalho em mercadorias opera simultaneamente o seu desdobramento em mercadoria e dinheiro.
A laboriosa análise a que Marx procede do desenvolvimento da forma-valor, desde a sua forma mais simples ou acidental até à forma moeda, passando pela forma valor desenvolvida e pela forma valor geral, é completamente incompreensível para o pensamento formal. Jamais um lógico, que seja apenas lógico como é bom de ver, poderá compreender que, sendo a igualdade uma relação simétrica, além de transitiva e reflexiva, da simples inversão dos seus membros possa resultar uma alteração substancial dos dados do problema.
A análise de Marx só se torna compreensível, e inclusivamente transparente, quando se lobriga que não se trata de uma análise simplesmente lógica, mas simultaneamente lógica e ontológica. O que Marx procura determinar é o ser de que as categorias são a expressão.
A análise da forma valor é o desvendar de um mecanismo de posição constitutivo de uma substância social que só existe nas formas em que se manifesta, sendo certo que a cada forma de expressão corresponde a posição de uma nova entidade. Pelo que é completamente absurdo supor que a forma é indiferente ao conteúdo que exprime, pois nesse caso não seria aquilo que precisamente é, uma realidade diversa da sua substância.
Uma vez que o trabalho é uma condição natural e eterna da vida humana, uma exigência comum a todas as formas de vida social, poderia parecer que, uma vez identificada a substância do valor com trabalho abstracto, o qual como puro dispêndio de energia física ou intelectual é igualmente comum a todas as formas do processo de trabalho, poderia parecer, dizia, que valor adquirisse uma existência antediluviana, pelo que até não pareceriam tão disparatadas as robinsonadas dos clássicos que faziam recuar a origem do valor até um estado rude e primitivo da sociedade onde o selvagem compararia o tempo de trabalho gasto na construção da cabana e na construção do arco e das flechas.
Se as coisas fossem exactamente assim, o valor seria, por um lado, uma simples representação, uma abstracção mental, e, por outro, poderia configurar, como qualquer outro atributo natural, como, por ex. o peso, um padrão absoluto de medida.
Toda a dificuldade reside em compreender que o valor não é um atributo natural das coisas ou dos trabalhos concretos, mas uma objectividade social abstracta que, exactamente porque é abstracta, não se oferece em pessoa ao contacto directo nem do prático nem do teórico, antes carece de encarnar em coisas tão concretas como os produtos do trabalho, que assim adquirem um duplo estatuto e uma realidade eminentemente contraditória.
É por isso que o valor só se constitui quando, no processo efectivo das trocas, se opera a metamorfose do produto em mercadoria, com o concomitante desdobramento desta em si mesmo e no seu outro, o dinheiro.
Como diz Marx: “É somente na sua troca que os produtos do trabalho adquirem, como valores, uma existência social idêntica e uniforme, distinta da sua existência natural e multiforme como objectos de uso;... a igualdade dos trabalhos, diferentes uns dos outros, só pode consistir numa abstracção da sua desigualdade real, na sua redução ao seu carácter comum de dispêndio da força humana de trabalho em geral, e é a troca apenas que opera esta redução, colocando em presença uns dos outros, em pé de igualdade, os produtos dos trabalhos mais diversos”(6).
E noutro local: “Aqueles que consideram a autonomização do valor como uma abstracção” - e aqui é óbvio que Marx se refere à abstracção mental – “esquecem que o movimento do capital industrial é essa abstracção in actu: o valor percorre aqui diversas formas, diversos movimentos, pelos quais se mantém, ao mesmo tempo que valoriza e se engrandece”.
A troca é o mecanismo redutor que, através da sua reiteração, irá conduzir à autonomização do valor como abstracção in actu.
Mas há que atender a que não é uma qualquer troca abstractamente considerada, que dá, desde logo, lugar à constituição desse idêntico que é o valor. As primeiras trocas são puramente acidentais e desenrolam-se, não no interior, mas na periferia das comunidades naturais; aí se afirmam esporadicamente algumas relações de equivalência: 100 conchas marinhas = 2 colares de pérolas. Mas isto não basta para que entre as conchas e as pérolas se instaure uma relação de equivalência que faça desses objectos de uso expressões de um idêntico pressuposto.
A constituição desse idêntico supõe que a troca se generalize e que cada objecto se reporte, não individualmente a um outro, mas a um membro qualquer de um conjunto indefinido de outros objectos, ou seja, que a troca singular seja inscrita na cadeia do mercado, e que os objectos de uso se determinem como mercadorias.
Então, cada objecto, para além do seu valor de uso, passa a possuir múltiplos valores de troca. Aqui, todos esses outros se dão como iguais entre si, exibindo uma identidade, que é posta pela troca efectiva. A existência social de cada coisa útil é agora determinada por uma abstracção, a objectividade-valor, de que cada uma se oferece como encarnação.
A mercadoria surge, então, como unidade contraditória de valor de uso e valor. Como simples valor de uso, uma mercadoria não mantém qualquer relação com as outras; como valor, porém, cada uma é referida à série de todas as outras, de tal sorte que pode ser substituída indiferentemente por qualquer delas como seu equivalente, em determinada proporção quantitativa.
Este duplo processo de igualização e de diferenciação desenha uma intenção objectiva, que de início é apenas virtual, de expulsão de uma mercadoria no processo de igualização vicariante, transformando-a no equivalente geral, manifestação imediata do valor, ao qual todas as outras se reportam. Quando esta expulsão recebe uma sanção social, passa-se da troca directa à troca monetária e o processo de constituição do valor completou-se.
É evidente que este mecanismo não opera no vazio. Para que a troca possa generalizar-se, há que pressupor que o mercado é abastecido por um processo produtivo e que cada trocador-proprietário traz ao mercado produtos do trabalho de produtores privados.
Nos processos de produção pré-mercantis, já os produtos do trabalho se determinam formalmente, na medida em que os indivíduos inter-agem através dos seus produtos, de modo a garantir a continuidade do processo produtivo e preservar a individualidade biológica e social de cada um e de todos.
O exercício do processo de trabalho opera, então, sob duas condições: de um lado, uma massa de necessidades sociais a satisfazer, de outro, o trabalho colectivo social que qualquer grupo ou comunidade precisa distribuir conscienciosamente a fim de garantir a sua sobrevivência.
Este pressuposto, nos termos do qual toda a actividade produtiva tem por parâmetros uma massa de necessidades sociais e uma massa de trabalhos sociais, mantém-se sempre como lei intransponível e sistematicamente reposta nos diversos sistemas sociais, na medida em que constitui a condição natural eterna da vida humana.
Mas o problema reside em saber como é que o pressuposto é reposto, como é que o trabalho se socializa, ou seja, como se opera a síntese social.
O grande mérito de Marx reside no facto de ter descortinado que, no seio da própria realidade social, opera uma síntese que não é, como a síntese kantiana, uma síntese mental, mas uma trama que se tece entre os homens e os seus produtos, e onde o universal se mostra efectivo, ao nível do concreto que por isso, e só por isso, pode ser reconstituído, à maneira hegeliana, como resumo de múltiplas determinações abstractas.
A grande questão com que Marx se debate é esta: quando a troca mercantil se generaliza e os indivíduos trabalhadores actuam separada e autonomamente, como é que se articulam o trabalho individual e o trabalho social?
Agora, isto é, nas sociedades mercantis, o trabalho social não se exerce sob uma forma directamente social, mas tão só como trabalho de produtores privados. As acções produtivas são insociais, pelo que a acção produtora de cada trabalhador ou de cada unidade produtiva deixa de ser permeada por um sistema de representações que abarque o sistema produtivo no seu todo. É fundamentalmente neste sentido que o trabalho é privado.
O que há de característico nas sociedades mercantis e, a fortiori, no modo de produção capitalista, é que o pressuposto da sociabilidade do trabalho, que não opera ao nível da actividade produtiva, vai ser reposto como sociabilidade do produto. É este processo de socialização pela abstracção que constitui o rationale da teoria do valor trabalho.
Quando o produto do trabalho se transforma em mercadoria, toda a referência directa aos outros parceiros sociais é abolida; em vez disso, é cada produto-mercadoria que se reporta a outras mercadorias, como expressão de uma identidade posta que subjaz aos dois membros da equação. A comparação dos trabalhos úteis particulares deixa de fazer qualquer sentido, pelo que o trabalho abstracto não resulta de qualquer comparação nem de qualquer redução a um elemento comum. É, pelo contrário, a troca efectiva que opera na prática essa redução; é porque as mercadorias são igualizadas na troca, que cada produto se apresenta como se resultasse de um trabalho indiferente identificável com qualquer outro.
O trabalho abstracto constitui um universal que se mede pelo tempo, mas este tempo pouco, ou nada, tem que ver com o tempo concreto despendido na produção de um objecto útil. Trata-se de um tempo também ele abstracto, que só existe materializado no produto, como quietude e não como movimento.
Por tudo isto o valor não pode constituir um padrão de medida absoluto, como supunha Ricardo. Diferentemente do que acontece no caso dos atributos naturais, o valor jamais institui um padrão absoluto de referência: é como se o padrão fosse sistematicamente descentrado, já que cada mercadoria encontra a medida do seu valor numa outra, e outra, e outra ainda e assim indefinidamente; basta uma qualquer alteração de algum desses outros, ou um simples excesso ou defeito em relação à massa de necessidades que visa satisfazer, para que a expressão numérica se altere, muito embora o valor permaneça inalterado.
Daí resulta toda a dificuldade de compreender, e, mesmo quando se compreende, de aceitar, a existência real desse trabalho abstracto ao nível da forma valor da mercadoria. Para tanto, é preciso descortinar na própria mercadoria, a vigência da contradição especificamente hegeliana: a mercadoria contém, no seu seio, uma oposição polar no âmbito da qual cada termo só é aquilo que é, mediante a sua reflexão no outro, com total exclusão do aspecto de indiferença recíproca dos opostos que caracteriza a kantiana oposição real. A forma natural da mercadoria apresenta-se, na relação de troca, como forma de aparecer do seu contrário, o valor, ou seja, o trabalho concreto converte-se no modo de aparecer do trabalho abstracto. É aí que reside todo o segredo da socialização pela abstracção: o trabalho privado, ao socializar-se pela mediação do mercado, assume uma forma de permutabilidade imediatamente social, pelo que o trabalho social passa a ser precisamente o trabalho abstracto de que as mercadorias são a encarnação.
Isto significa que qualquer trabalho concreto, seja qual for a sua natureza, só vale socialmente como parte alíquota do trabalho abstracto socialmente necessário. A abstracção passa a funcionar como medida da existência social do concreto.
Aqui radica a grande diferença entre o valor e outro qualquer atributo. Hoje, após a obra de Marx, é possível, como faz Giannotti (7), radicalizar a sua análise da abstracção real e sustentar que as próprias coisas naturais só adquirem a sua perdurabilidade de coisas, no interior do contexto do mundo, a partir das relações que os homens tecem entre si e com a Natureza. Deste ponto de vista, que põe em causa a concepção corrente do objecto, pode inclusivamente sustentar-se que a objectividade das coisas é sempre social e que todo o discurso e, no fundo, toda a representação assenta sobre um logos prático, um solo, semântico permanentemente cultivado por uma prática transformadora. Deste ponto de vista, em vez de aceitar a identidade como dada aos objectos, já prontos e acabados, em vias de despontar como variáveis de qualquer função proposicional, reconhece-se que há uma prática muda por detrás da loquacidade da linguagem e que só a partir dos complexos de comportamento se desenha um jogo de identificações que não escapa a processos circulares em que os objectos já se exprimem uns pelos outros e, no seio dos quais, a identidade não se separa da demarcação da diferença.
Se tomarmos o processo da constituição do peso que, aliás serve de exemplo a Marx, a passagem de “x é pesado” para “ x tem um peso de n Kg”, supõe um processo efectivo de mensuração em que um objecto padrão empresta o seu corpo a título de identidade pressuposta a fim de que o objecto a medir se determine por ela. Isto significa que a constituição do atributo nominalizado não é independente das acções de medida e que a predicação supõe uma socio-lógica, capaz de garantir-lhe a forma lógica do múltiplo, onde possa engrenar-se.
Mas a diferença, em relação ao caso do valor, é extremamente significativa como ilustração da especificidade da abstracção real. Ao passo que, no caso do peso, há uma medida pressuposta que garante a referência do atributo universal, como antecipação das operações concretas de medida, no caso do valor, o universal anteposto configura, sem mais, uma condição de existência social deste ou aquele trabalho particular. E esta diferença é essencial: em vez de representar uma antecipação social de operações sobre concretos existentes, agora é a abstracção que serve de medida para a existência social do concreto.
Como já tive ocasião de acentuar, o ponto de partida da constituição do valor não é a multiplicidade dos trabalhos nem dos produtos, como a multiplicidade das coisas pesadas o é para a instauração do peso. No caso do valor não há nenhuma diversidade prévia dos trabalhos objectivados; é apenas a efectividade da troca que, conformando o movimento do trabalho na quietude do produto, permite que seja o trabalho abstracto e geral a colocar a condição de existência social deste ou daquele trabalho particular.
É por isso que, mesmo quando se pensa que, no fundo, toda a objectividade acaba por ser social, o valor e as categorias que dele decorrem adquirem uma objectividade muito particular, na medida em que agora o atributo valor, exactamente como as categorias hegelianas, possui um princípio interno de diferenciação que falta de todo no caso dos atributos naturais como o peso ou a cor. É muito possivelmente exacto que, por detrás da identidade lógica da coisa natural - que permite a referência dos nomes próprios -, se oculte um processo de mensuração e transformação efectiva que a linguagem tende a esquecer, mas o certo é que jamais uma coisa natural aparece transformando-se noutra em virtude do princípio de diferenciação interna que Hegel postulava e que o jovem Marx tão pouco andaria muito longe de pressupor.
Em contraposição, é isso que justamente acontece no caso do valor; quando, pelo desenvolvimento da contradição ínsita na mercadoria entre a forma relativa e forma equivalente, o equivalente geral se autonomiza para se colocar como dinheiro, signo que passa a funcionar como mediador da troca efectiva, ocorre, no seio da realidade social, um processo de verdadeira autonomização da forma, dotado de uma dinâmica própria.
Ao contrário do que acontece nos processos de produção pré-mercantis, as formas adquirem uma autonomia até aí desconhecida e como que se desprendem dos comportamentos sociais em que enraízam.
É daí que resulta todo o misticismo e natureza aparentemente especulativa deste processo de socialização pela abstracção.
Num texto dos Studienausgabe II (ed. Fetcher, Frankfurt am Main, 1906, pag. 229), Marx observa: “Em vez de se dissiparem pela sua própria oposição, as determinações contraditórias da mercadoria reflectem-se aqui uma à outra. ..É como se, ao lado dos tigres, das lebres e de todos outros animais reais, existisse também o animal, encarnação individual de todo o reino zoológico“.
Num outro texto, este muito mais conhecido e que se refere igualmente à realidade do valor, Marx observa que se dissertarmos que o Direito Romano e Direito Alemão são exemplos do Direito, esta afirmação não envolve qualquer mistério, mas se afirmarmos que o Direito, essa realidade abstracta, se manifesta nos direitos concretos, as coisas assumem uma conotação mística; no entanto, é assim precisamente que tudo se passa no caso do valor.
Estará na memória de todos, o célebre texto da ‘Sagrada Família’ onde Marx procura estigmatizar aquilo a que chama o mistério da construção especulativa, através do exemplo da abstracção do fruto, contraposta aos frutos concretos, como pêras, cerejas e maçãs; ora no caso do valor tudo se passa como se, ao lado dos frutos concretos, existisse igualmente o fruto em geral. Seria absurdo que, num restaurante, alguém recusasse cerejas ou maçãs porque a sobremesa que pediu foi fruta, mas o que se passa todos os dias no mercado é que o vendedor está intitulado a recusar toda e qualquer mercadoria porque aquilo que pediu foi o valor em geral - o dinheiro.
Talvez agora se torna mais claro porque razão Marx, ao contrário do que acontecia no tempo em que redigia a ‘Sagrada Família’, é conduzido a recuperar os mecanismos de posição da dialéctica hegeliana, no preciso momento em que se afasta do antropologismo dos seus tempos de juventude e lança os fundamentos de um novo tipo de discurso teórico que se situa nos antípodas da especulação hegeliana. É que, ao reconstituir o processo de constituição da forma autonomizada, é no plano da transmutação das formas que adquire plena vigência a dialéctica da negação da negação.
Quando o mecanismo de abstracção real que procurei pôr em evidência confere autonomia a uma parte do logos prático, onde as coisas sociais adquirem uma sintaxe própria, entra em cena a boa infinidade hegeliana, onde tudo o que é natural e espontâneo passa a ser trespassado pela história, e onde todas as condições naturais pressupostas são repostas como manifestações do valor que se põe a si mesmo, à semelhança do Absoluto hegeliano.
Mas diferentemente do que se passa em Hegel não é a História que se desdobra segundo as articulações do bom infinito, mas o modo de produção capitalista que o introduz.
A dialéctica hegeliana ganha então plena vigência e torna-se inclusivamente indispensável como modo de exposição da ciência crítica das formas em que se cristalizam as relações sociais se produção.
Mas trata-se de uma dialéctica que define os seus próprios limites porque, para Marx, a história jamais se identifica com a lógica.
As intenções objectivas postas pelas estruturas formalmente definidas no processo de exposição categorial permanecem simplesmente visadas enquanto não se efectuarem na própria prática social. E esta prática social, mesmo após a autonomização da forma valor, continua a ser um processo de trabalho que, por muito que seja aspirado pela forma, jamais é devorado por ela.
Mas mesmo quando a mistificação atinge o seu cúmulo, quando o processo de desenvolvimento das formas se autonomiza até ao ponto de reflectir dentro de si a totalidade das determinações materiais, o que só acontece com a universalização do modo de produção capitalista, o processo de trabalho permanece como a pressuposição fundamental sempre reposta, seja qual for o sistema de determinações formais através das quais se socializa.
Como atrás sugeri, embora sem nenhum aprofundamento, o movimento reflexionante que está na base da dialéctica das formas pode radicalizar-se. É possível inclusivamente que, no limite, não possamos pensar senão no interior de um círculo reflexionante e tenhamos de desistir de um qualquer ponto da partida, que só poderia ser um Eu Transcendental ou uma multiplicidade primária de objectos físicos ou abstractos.
Neste sentido, a dialéctica corresponde à vigilância crítica que procura inquirir constantemente como é que o dado se constitui, pondo em questão todos os factos e todas as identidades prontas e acabadas. Mas, a menos de assumir, como Hegel, uma concepção da infinidade da teoria, temos de reconhecer que, mesmo quando através da autonomização da forma, se constitui um domínio onde os mecanismos da dialéctica passam a ter vigência prática essa dialéctica tem limites, os quais, no fundo, se reconduzem a um só: a irredutível facticidade do real, a impossibilidade da sua total reabsorção pelo Espírito postulada pelo hegelianismo e, no fundo, por toda a Metafísica ocidental.
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NOTAS:

(1) ALFRED SOHN RETHEL, Intellectual and Manual Labor, ed. Lowe and Brydone, Thetford, Norfolk, 1978.

(2) BOHM BAVERK, Karl Marx and the Close of his System, Merlin Press, London, 1975.

(3) HANS GEORG BACKAUS, Dialectique de la Forme Valeur in ‘Critiques de L’Économie
Politique’, nº 18, Oct- Dez, 1974.

(4) KARL MARX, Theorien über Mehrwert.

(5) JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, Origens da Dialéctica do Trabalho, Difusão Europeia do Livro São Paulo, 1966.
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6) KARL MARX, Das Kapital, Cap. I.

(7) JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, Trabalho e Reflexão, Ed. Brasiliense, 1983.

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Fonte: http://www.ocomuneiro.com/paginas_m_joaoestevesilva_arealidadedaabstracao.htm




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