A empreitada é de grande monta, mas é dela que se ocupa o português João Esteves da Silva. Autor de trabalhos de destacada envergadura, como Para uma Teoria da História e Cinco Ensaios sobre Wittengenstein, no texto A Realidade da Abstração, João Esteves debruça-se sobre um conjunto de questões desde sempre cimeiras no pensamento social ocidental: o movimento, as deambulações do pensamento, a 'fenomenologia do espírito', os limites da lógica (formal), a metafísica, o problema do valor, etc. Claro, aí estão Hegel e Marx. Esteves chama as coisas pelos nomes, e aponta a dialética materialmente referenciada como trilha para superar as desventuras do formalismo lógico. Nesse sentido, é emblemático ao dizer, por exemplo, que "o valor só se constitui quando, no processo efetivo das trocas, se opera a metamorfose do produto em mercadoria, com o concomitante desdobramento desta em si mesma e no seu outro, o dinheiro". Ou ainda quando coloca de parte o idealismo hegeliano, para realçar que a instituição de objetividades específicas a cada passo do desenvolvimento não se refere à tomada de consciência ou do desenvolvimento do espírito, mas, sim, "trata-se de reconstituir conceptualmente esse discurso que está aí tacitamente pronunciado e em cada operação de troca, nos atos, nos gestos e palavras dos seres humanos concretos que, sem o saber, transformam os objetos, produtos do seu trabalho, em expressões uns dos outros, ao incluí-los num contexto social". Sem mais, a seguir o texto de Esteves (mantendo o grafo lusitano).
A realidade da
abstracção
Há um tipo de crítica que se compraze em evacuar, sob o seu palavreado, como produtos da reflexão ou da contradição da definição, as dificuldades que residem nas determinações contraditórias das próprias coisas; é claro que o paradoxo da realidade se exprime igualmente sob forma paradoxal que vai contra o senso comum do que ‘what vulgarians mean and believe to talk of’.
(Karl Marx, ’Teorien
über Mehrwert’)
Por João Esteves da
Silva
O tema da minha exposição será o da
realidade abstracção.
Não me surpreenderia se, a um ouvido
desprevenido, a simples menção da realidade da abstracção soasse de um modo
paradoxal. No entanto, até mais por isso do que apesar disso, talvez esse
ouvido desprevenido estivesse mais perto da verdade do que desprevenidamente
pudesse pensar se, alguma vez, nisso houvesse pensado. Com efeito, é apenas no
reino do pensamento formal que a verdade foge do paradoxo como o diabo da cruz.
Para quem tenda a assimilar toda a racionalidade à racionalidade formal, a
abstracção real só pode configurar-se como o absolutamente impensável. O que
estas considerações implicam é que, ao abordar tal tema, impensável para o
pensamento formal, eu irei precisamente procurar pôr em causa essa concepção
formal da racionalidade. Fá-lo-ei a partir do pensamento de Marx. Procurarei
mostrar, com base numa concepção do conhecimento que envolve uma completa
ruptura com o seu entendimento positivista, que é o tema da realidade da
abstracção que permite a inteligibilidade do discurso de Marx conferindo-lhe
uma nota de cientificidade inconfundível com a leitura positivista da ciência.
A parte mais substancial da exposição
será, portanto, dedicada a Marx e à sua análise do valor. No entanto, a fim de
manter alguma ligação com os temas que têm sido abordados no âmbito do nosso
pequeno grupo de trabalho sobre Hegel e Kant, a sombra de Hegel continuará a
pairar nesta sala, já que procurarei orientar a minha abordagem no sentido de
abrir caminhos que possibilitem o encontro de algumas pistas para a solução de
um problema que já aqui nos tem preocupado, a partir das magníficas exposições
do João Lopes Alves, qual seja, o do modo como o pensamento hegeliano ilumina a
nossa contemporaneidade, e nos faz suspeitar que Hegel tenha captado no seio da
realidade algo que ainda hoje é aí operante e efectivo.
Que Marx pensava estar em condições de dar algum contributo para a solução desse problema é um facto conhecido. No entanto, na ausência das célebres páginas, que brilham precisamente pela ausência, e nas quais prometera tornar acessível ao comum dos mortais o núcleo racional da dialéctica hegeliana, ainda hoje há motivos para supor que a questão da relação Marx/Hegel não esteja completamente clarificada.
Que Marx pensava estar em condições de dar algum contributo para a solução desse problema é um facto conhecido. No entanto, na ausência das célebres páginas, que brilham precisamente pela ausência, e nas quais prometera tornar acessível ao comum dos mortais o núcleo racional da dialéctica hegeliana, ainda hoje há motivos para supor que a questão da relação Marx/Hegel não esteja completamente clarificada.
Foi este precisamente o tema que
abordei no Congresso Hegel que teve lugar em Lisboa, mas não vou repetir aqui
as considerações que então tive ocasião de fazer. Direi apenas que, sem ter a
pretensão de oferecer uma solução definitiva de tão espinhosa questão, procurei
abrir caminhos que pudessem possibilitá-la mostrando que o problema não pode
resolver-se por acentuação das diferenças, mas, pelo contrário, pondo em
evidência o espaço teórico onde a convergência pode ter lugar. Infelizmente, nunca
mais vim a dispor do tempo nem da oportunidade de retomar o trabalho então
encetado pelo que poderá ser esta a ocasião de a ela regressar; desta feita, através da realidade da
abstracção.
Antes de entrar propriamente no tema,
quero ainda deixar cair a observação de que bastará ter presente que o cerne do
universo lógico hegeliano reside na sua crítica da finitude, consubstanciada na
proposição da Lógica segundo a qual toda a filosofia é idealismo, porquanto o
finito é ideal, para que se tenha a noção de quão árduas serão as dificuldades
de recuperação dos mecanismos de posição da dialéctica hegeliana quando se
deixa de pensar a individualidade de qualquer objecto como uma simples prega no
movimento contínuo do Absoluto, e se afirma radicalmente a independência, do
real em relação à sua apropriação cognitiva. Ora, são estes os árduos problemas
que têm que ser afrontados quando se quer compreender como é que Marx é
sistematicamente conduzido a recorrer aos mecanismos de posição da dialéctica
de Hegel, embora nunca explicite, senão muito metaforicamente, o alcance preciso
deste recurso.
Para avançar desde já, se não uma tese,
pelo menos uma proposta de discussão, eu diria que é através do reconhecimento
da realidade da abstracção que poderemos eventualmente vir a detectar onde se
situa o célebre núcleo racional da dialéctica hegeliana.
Como diz Alfred Sohn-Rethel “se
admitirmos que a abstracção é obra do pensamento, e só do pensamento,
tornar-se-á impossível desembaraçarmo-nos do idealismo” (1).
A questão essencial é esta: pode haver
uma abstracção que não releve do pensamento? A esta questão, diz ainda
Sohn-Rethel, de todos os pensadores, antigos e modernos, só Marx respondeu
afirmativamente.
Mau grado o que diz Sohn-Rethel, é
óbvio que, em relação a Hegel, não pode subsistir qualquer dúvida de que
sustentava a realidade da abstracção; mas, porque identificava realidade e
pensamento, é correcto dizer que não respondeu afirmativamente aquela
mencionada questão.
É talvez aqui que reside o segredo da
abelhinha. Mas é tempo de entrarmos propriamente no tema.
Muito embora possam encarar-se outros
tipos de abordagem e também outros desenvolvimentos, o caso propriamente
paradigmático é o do valor, ao qual Marx dedica toda a 1ª secção do Capital, e
que vem a assumir depois, ao longo de toda a obra, o papel de fundamento de
todas as suas articulações teóricas.
Julgo que todas as incompreensões a que
a obra de Marx tem estado persistentemente voltada radicam fundamentalmente no desentendimento
do que vem a ser o valor e do mecanismo de abstracção real que o constitui como
realidade social objectiva.
Decorridos mais de cem anos de
incompreensão parece já ser tempo de compreender que a crítica da teoria
marxiana do valor levada a cabo por autores dos mais diversos quadrantes, e que
não serão todos nem obtusos nem reaccionários, deverá ter razões mais profundas
do que a simples cegueira ideológica.
O caso é que o entendimento do alcance
da obra de Marx supõe uma concepção do discurso teórico que se situa em posição
de ruptura com a ideia de racionalidade em que assentou o desenvolvimento de
toda a ciência natural moderna, onde a teoria é concebida como representação
formalizável destituída de qualquer peso ontológico e capaz de funcionar como
modelo da realidade.
No fundo, todas as críticas dirigidas à
teoria do valor ainda hoje se limitam a repetir, com algumas diferenças de
acentuação, o ataque desencadeado no início deste século por um economista da
escola austríaca, Bohm-Baverk, no seu livro já clássico “Karl Marx e o
fechamento do seu sistema” (2);
e, por seu turno, as críticas de Bohm-Baverk, apesar de muito diversificadas,
entroncam todas numa só que é esta: não é possível descortinar qualquer
fundamento lógico que leve a privilegiar a abstracção valor em relação à
abstracção utilidade. Como diz
Bohm-Baverk, a abstracção que, a partir do valor de uso das mercadorias
particulares, constrói o conceito de utilidade é, em principio, tão razoável
como aquela que constrói o conceito genérico do trabalho abstracto, a partir da
diversidade dos trabalhos concretos particulares.
E, com efeito, se concebermos o valor
como um simples conceito genérico, um universal abstracto construído por
comparação e generalização mental, o argumento é imbatível.
A teoria do valor trabalho de Ricardo
não poderia efectivamente fazer-lhe frente, na medida em que Ricardo concebia
precisamente o valor como um simples conceito que exprime o elemento geral e
comum que se encontra em todas as mercadorias e por isso seria capaz de
funcionar, sem mais, como sua medida quantitativa.
Se a teoria do valor de Marx pudesse
reconduzir-se à teoria ricardiana, ela seria tão incapaz de resistir às
críticas de Bohm-Baverk e dos seus seguidores, como já, no seu tempo, incapazes
se mostraram os ricardianos perante as críticas de um Bailey.
Mas a teoria de Marx não é a de
Ricardo; a partir da teoria ricardiana do valor trabalho, Marx introduz duas
distinções fundamentais:
(1) em primeiro lugar, distingue o valor do valor de troca: o valor de troca não é o valor, mas tão só a forma fenomenal da sua manifestação;
(2) em segundo lugar, e esta é a distinção fundamental, distingue a substância do valor e a sua forma.
(1) em primeiro lugar, distingue o valor do valor de troca: o valor de troca não é o valor, mas tão só a forma fenomenal da sua manifestação;
(2) em segundo lugar, e esta é a distinção fundamental, distingue a substância do valor e a sua forma.
A primeira distinção implica, desde
logo, que o valor não possa ser entendido como simples conceito destituído de
toda a relevância ontológica; ao distinguir o valor da sua manifestação
fenomenal, Marx não quereria certamente significar que os diferentes valores de
troca fossem expressões ou manifestações do conceito de valor, tal como os
indivíduos de carne e osso seriam expressões ou manifestações do conceito de
Homem em geral. Quero, com isto, dizer que poderemos, desde já, começar a
suspeitar que o valor tem, para Marx, uma consistência de que não gozam os
conceitos representativos, como o de homem ou do animal em geral.
Mas a segunda distinção é muito mais
importante e é nela que se concentram todas as dificuldades, dificuldades que,
aliás, o próprio Marx ressentiu na sua exposição, e que se traduzem nas
sucessivas remodelações que foi introduzindo no texto do Capital desde a 1ª
edição até à tradução francesa.
Com efeito, a substância, do valor, ou
seja, a sua identificação com o trabalho abstracto socialmente necessário à
produção das mercadorias é aparentemente fácil de compreender, já que, como o
próprio Marx observa, o valor, encarado sob esse aspecto exprime apenas aquilo
que é comum à toda a vida social, independentemente das suas formas, ou seja, a
repartição no tempo e no espaço da força de trabalho de uma comunidade humana
qualquer, em função de uma massa de necessidades sociais determinadas.
Ainda aí há que compreender, e mais
tarde voltaremos a esse ponto, que o trabalho abstracto que constitui a
substância do valor não existe nos trabalhos concretos, como o elemento geral e
comum a todos eles, nem apenas no espírito do teórico, que o abstrairia desses
trabalhos concretos, por comparação e generalização: o trabalho abstracto só
existe na mercadoria, como trabalho objectivado ou, com diz Marx, coagulado, aí
onde o tempo de trabalho se dá como quietude, e não como movimento.
Com esta observação, já estamos em vias
de saltar para o cerne da segunda distinção.
Em todo caso, a determinação do valor
como substância é, de facto, extremamente simples e está ao alcance de qualquer
criança, como observa Marx numa célebre carta a Kugelmann.
Mas a substância do valor não é o
valor.
É claro que se o valor fosse apenas um
conceito que exprimisse, a título de abstracção mental, o modo como cada uma e
todas as mercadorias se apresentam na relação de troca, não haveria dificuldade
alguma. A dificuldade só existe porque o valor é, no sentido forte, uma objectividade
social constituída historicamente, e essa objectividade só se torna
historicamente efectiva quando o trabalho social deixa de apresentar-se como
dispêndio de uma força de trabalho social, para só se socializar quando
encarnado na mercadoria, precisamente sob forma de valor ou mais exactamente
sob a forma mercadoria e depois, sob a forma dinheiro, e depois ainda sob a
forma capital.
As dificuldades surgem quando se trata
de compreender que o valor, como forma de objectividade social específica de que
os objectos trocados são expressão, só se constitui, na própria realidade e não
apenas em pensamento, quando a sua substância, o trabalho abstracto, se
apresenta na forma de valor. A real dificuldade reside em compreender como a
substância do valor que, a título de abstracção mental, pode considerar-se tão
antiga como a história, se constitui como substância formal, realidade sui generis onde não intervém um átomo
de matéria.
O mais importante de tudo é não
escamotear as dificuldades desta abordagem; para quem só conhece um tipo de
racionalidade científica, aquela que se foi precisando na construção das
ciências da natureza, e toma os seus objectos já constituídos, a consideração
do valor como objectividade social imaterial de que as categorias são expressão,
só pode aparecer como um paradoxo ou uma retorcida especulação metafísica.
É inclusivamente possível sustentar,
como faz Hans Backaus num excelente artigo publicado na revista “Critiques de
l’Économie Politique” (3),
que, apesar de todas as reformulações introduzidas na redacção do capítulo 1 do
Capital, subsiste uma falha na exposição de Marx. Com efeito, a necessidade da
passagem da segunda para a terceira secção do capítulo 1º, só muito
dificilmente é apreendida em virtude da insuficiente clareza da mediação entre
a substância e a forma do valor. Realmente, como observa Backaus, “o que se
grava na memória do leitor são as ideias aparentemente fáceis de compreender da
substância do valor e do duplo carácter do trabalho, desenvolvidas na duas
primeiras partes; mas a terceira parte, consagrada especificamente à forma do
valor, é geralmente encarada como um simples ornamento dialéctico daquilo que já
fora deduzido anteriormente. O facto de o “objecto geral” enquanto tal, o valor
como valor não poder absolutamente apresentar-se em pessoa e só aparecer, sob
forma deformada, como relação de dois valores de uso, furta-se à compreensão do
leitor”.
Exceptuada a referência espúria à
deformação da forma que não faz o mais pequeno sentido neste contexto, não
posso deixar de considerar estas observações muito pertinentes, até porque
correspondem à experiência que eu mesmo retirei da minha primeira leitura de ‘O
Capital’. Contudo, tão pouco é o caso de lhe atribuir um relevo exagerado, como
já anteriormente referi. Para além de eventuais insuficiências de exposição,
sempre relativas, dada a complexidade do tema, há outras razões mais de fundo
que explicam a incompreensão.
O certo é que, se não se põe claramente
em evidência a relação entre a substância do valor e a sua forma, torna-se
impossível descortinar, em toda a sua amplitude, a diferença que existe entre a
teoria do valor de Marx e a da Economia Política clássica, e as críticas que vêem
no conceito de valor um dogma metafísico, como faz, por exemplo, Joan Robinson,
dentro de uma linhagem popperiana.
Se a teoria de Marx não se resume à
determinação quantitativa do valor pelo tempo de trabalho, à maneira de Ricardo,
ela só adquire sentido quando se descortina o mecanismo redutor objectivo que
constitui historicamente o trabalho abstracto como realidade social efectiva,
verdade prática, como diz Marx, e isto sem que o trabalho abstracto deixe de
ser aquilo que efectivamente é, uma abstracção.
Este mecanismo redutor objectivo,
irredutível à abstracção mental, é precisamente aquilo que designo por
abstracção real; é na própria realidade social, na trama de relações que se
instauram entre os homens, entre si e com os produtos do seu trabalho, que
ocorre efectivamente um processo de constituição categorial que confere ao ser
social a sua especificidade ontológica que o discurso teórico pode reconstituir
cognitivamente a partir das abstracções determinantes que não são conceitos
representativos, mas denotam, como diz Marx, condições de existência histórica.
As objectividades sociais não se
oferecem em pessoa à sensibilidade dos agentes históricos; não se trata de uma
objectividade sensível do mesmo tipo daquela que corresponde aos objectos
naturais. Há que compreender como, no seio das práticas dos agentes históricos
e das relações que entretecem entre si e com a Natureza, se constituem novos
modos de ser que adquirem o estatuto de uma realidade sensível/ supra-sensível,
onde os objectos se exprimem uns pelos outros - tal como nos escaninhos mais
recônditos da esdrúxula dialéctica hegeliana - e as determinações formais se
sobrepõem às determinações materiais e significativas. É aí que enraízam os
erros simétricos e inversos que, ou encaram os seres sociais como pura
materialidade, ou complementarmente como pura espiritualidade inteligível. O
vício de que enfermam estas concepções não é propriamente metodológico; é a
própria natureza da realidade social que implica que o seu conhecimento
efectivo só possa produzir-se a partir da reconstituição da ordem de
constituição ontológica da realidade, mostrando concretamente de que é que as
formas são formas e como se constituem no processo das trocas, tendo a natureza
por mediação fundamental.
O discurso de Marx não é uma economia
política, mas uma crítica da economia política, justamente porque não se
coloca, como a economia, no terreno dos objectos económicos já constituídos,
sem antes procurar indagar as suas condições de existência histórica. Marx não
aceita o universal já constituído sem anteriormente inquirir sobre o processo
da sua constituição.
Podemos agora começar a lobrigar,
embora ainda sem o aprofundamento necessário, aquilo que Marx deve
fundamentalmente a Hegel: a conceptualização do real numa perspectiva de
constituição, a preocupação de apreender a necessidade do objecto como coisa e
de reconstituir os processos de formação através dos quais o objecto se produz,
definindo o seu lugar entre diferentes ordens de realidade, umas mais reais
outras mais mistificadas, antes de proceder à crítica dos diferentes discursos
que sobre elas puderam ser proferidos. E o que Marx recusa, também aí de acordo
com Hegel, é a redução positivista de todos os modos de objectividade a um só,
e a sujeição da teoria à prova imediata dos factos; antes de confrontar a
teoria com os factos, há que determinar a necessidade de cada facto, definindo
o lugar que cada objecto ocupa na ordem dos seres e o tipo de necessidade que
corresponde à sua racionalidade intrínseca.
Se me for permitido um pequeno excurso
económico, gostaria de avançar um significativo exemplo a partir do problema da
taxa média de lucro e da crítica que, a tal propósito, Marx dirige a Ricardo.
À superfície do modo de produção capitalista,
é verificável o facto da perequação das taxas de lucro, fenómeno que tem, aliás,
a virtude não negligenciável de tornar a mais-valia completamente
inapreensível. Com efeito, em virtude da concorrência dos capitais e da
possibilidade de se deslocarem de um para outro sector de produção, a taxa de
lucro tende a igualizar-se nas diferentes indústrias, tornando-se proporcional
à totalidade do capital investido. Este fenómeno está na base da transformação
dos valores em preços de produção, tema que já fez correr rios de tinta e que
não vou aprofundar aqui.
Bastará recordar que, enquanto a
mais-valia é função e só função do capital variável, o lucro apresenta-se como
função de todo o capital investido, sendo que o capital constante, com a
evolução do sistema, assume um peso cada vez mais significativo. Os preços
passam, então, a apresentar-se como o somatório dos custos de produção mais a
taxa média de lucro. Assim sendo, põe-se evidentemente a questão de saber onde
foi parar, a este nível empírico, a determinação do valor pelo tempo de
trabalho.
Este problema era fatal para Ricardo;
como concebia o valor como um simples universal abstracto, que exprime aquilo
que há de comum nos diferentes fenómenos, ele era obrigado a reencontrar o
valor, tal qual, nas suas diferentes formas transformadas - o salário, o lucro,
a moeda, o juro. A contradição entre a determinação do valor pelo tempo de
trabalho e a formação da taxa média de lucro passará a ser o fantasma com que
se debaterá até ao fim dos seus dias.
A este respeito, a objecção que Marx
dirige a Ricardo, e que nos nossos dias, dirigiria a Piero Sraffa, é
precisamente a do carácter dado da taxa de lucro.
Eis o que escreve Marx a este respeito:
“Ele supõe uma taxa geral de lucro, ou um lucro médio de igual grandeza para
diversos investimentos de capital de igual grandeza, ou para várias esferas de
produção onde são investidos capitais de igual grandeza, ou, o que dá no mesmo,
um lucro que é função da dimensão dos capitais investidos nas diversas esferas
de produção. Em vez de supor essa taxa geral de lucro, Ricardo deveria inquirir
até que ponto a sua existência corresponde, em geral, à determinação do valor
pelo tempo de trabalho, e teria verificado que, em vez de lhe corresponder, a
contradiz “prima facie”; a própria existência da taxa média de lucro depende de
uma enorme massa de mediações, um desenvolvimento muito diferente da simples
subsunção sob a lei do valor. Teria assim atingido uma concepção totalmente
diferente da natureza do lucro e deixaria de o identificar imediatamente com a
mais-valia” (4).
Isto significa que Ricardo encara a
relação entre o valor e as suas formas transformadas como uma relação de
género-espécie, daí que Marx se refira à simples subsunção, pelo que o
movimento que vai do valor às categorias mais complexas, seria um movimento que
só tem lugar no pensamento teórico. Marx, pelo contrário, concebe essa passagem
como um movimento real que se processa através de múltiplas mediações.
Marx não aceita o fenómeno como um
simples dado, antes procura indagar a respeito da sua necessidade como
fenómeno, e sobre quais são os processos da sua constituição. Essa é a razão
pela qual ele tem que fazer recuar a análise até um nível muito mais elementar,
onde a questão do valor possa ser colocada independentemente de toda a
consideração do lucro. Só então poderá compreender-se como, a um nível mais
elevado de concreção, os valores previamente criados marcam os limites dentro
dos quais os preços fenomenicamente aparecem no seio de um processo de
redistribuição da mais-valia entre as diferentes classes e fracções de classes.
Relativamente à questão dos preços de
produção, Marx sabe perfeitamente que a identidade da soma dos valores e da
soma dos preços não é determinável de um modo empírico. Ele sabe que a
expressão não é a revelação, mas a ocultação do fundamento de onde emerge; mas
também sabe que não é possível distribuir segundo os preços senão aquilo que
foi criado segundo os valores e que a soma dos custos de todas as mercadorias
forma uma unidade que pode contrapor-se à soma dos lucros.
Se não se lobriga o processo de
constituição, a postulação da identidade da soma dos preços e da soma dos
valores redunda num absurdo, como tem sido realçado por vários matemáticos
desde von Bortkiewicz até Morishima. O que os matemáticos não entendem é que
Marx jamais admitiria a consideração de uma soma sem entrar em linha de conta
com a diferenciação dos seus membros.
Mas isso implica uma concepção da forma
que não é a do formalismo matemático; há que deixar de concebê-la como um
simples invólucro vazio, e evidenciar como o conteúdo é posto e desenvolvido
pela própria determinação formal, ou melhor, como forma e conteúdo se
determinam mutuamente.
É por isso que Marx inicia a sua
análise a um nível elementar onde as mercadorias são encaradas apenas como
mercadorias, antes de estarem já sobredeterminadas pelos seus preços, como
produtos do capital. Só a partir deste nível, torna-se possível captar os modos
de constituição dos fenómenos e conferir inteligibilidade às categorias que se
mostram à superfície da vida económica.
Como diz exemplarmente J. A.
Giannotti (5),
o discurso de Marx é, antes de mais, a história categorial do modo de produção
capitalista, discurso que procura reconstituir conceptualmente todos os passos
e mediações necessárias da posição do capital, desde as suas formas mais
elementares até às suas manifestações mais imediatas.
Tal como o discurso de Hegel, também o
discurso de Marx é posicional; propõe e institui objectividades específicas a
cada passo do seu desenvolvimento. Ao contrário, porém, do discurso do
idealismo, não se trata do discurso da tomada de consciência ou do
desenvolvimento do Espírito. Trata-se, sim, de reconstituir conceptualmente
esse discurso que está aí tacitamente pronunciado em cada operação de troca,
nos actos, nos gestos e nas palavras dos homens concretos que, sem o saber,
transformam os objectos, produtos do seu trabalho, em expressões uns dos
outros, ao incluí-los num contexto social.
Parafraseando ainda Giannotti, poderá
dizer-se que, entre a Natureza, na cegueira do seu determinismo, e a
consciência, no isolamento da sua individualidade, ocorre na própria realidade
a instauração de um logos prático e objectivo, onde as significações encontram
a sua génese. E são os homens que, ao longo da sua história, e no decurso da
sua vida quotidiana, ao despenderem esforço físico na transformação da Natureza
e de si próprios instauram e mantêm um reino de objectividades, ao mesmo tempo,
lógicas e reais. É este o reino cuja exploração científica Marx iniciou, depois
de Hegel o ter colonizado filosoficamente. Ao prosseguirmos o seu caminho,
talvez venhamos a descortinar um dia que nem a Natureza é tão cega nem a
consciência tão só.
À sombra do tal pequeno excurso
económico, verifico agora que já me espraiei demasiadamente; e embora o tenha
feito não de todo improdutivamente em relação ao tema fundamental da exposição,
o certo é que terei deixado em suspenso a explicitação do processo de
constituição do valor como abstracção real que só existe no circuito das suas
múltiplas encarnações. É, pois, tempo de retomar a exposição nesse ponto.
Quando a economia clássica, e
particularmente Ricardo, resolve ou dissolve o valor no tempo de trabalho, ela
não se apercebe de que o essencial ainda está por fazer, pelo que não põe em
evidência que o valor só se constitui, como abstracção real, quando se opera o
desdobramento da mercadoria em si mesma e no seu outro, o dinheiro; há que
compreender que o processo que transforma os produtos do trabalho em
mercadorias opera simultaneamente o seu desdobramento em mercadoria e dinheiro.
A laboriosa análise a que Marx procede
do desenvolvimento da forma-valor, desde a sua forma mais simples ou acidental
até à forma moeda, passando pela forma valor desenvolvida e pela forma valor
geral, é completamente incompreensível para o pensamento formal. Jamais um
lógico, que seja apenas lógico como é bom de ver, poderá compreender que, sendo
a igualdade uma relação simétrica, além de transitiva e reflexiva, da simples
inversão dos seus membros possa resultar uma alteração substancial dos dados do
problema.
A análise de Marx só se torna
compreensível, e inclusivamente transparente, quando se lobriga que não se
trata de uma análise simplesmente lógica, mas simultaneamente lógica e
ontológica. O que Marx procura determinar é o ser de que as categorias são a
expressão.
A análise da forma valor é o desvendar
de um mecanismo de posição constitutivo de uma substância social que só existe
nas formas em que se manifesta, sendo certo que a cada forma de expressão
corresponde a posição de uma nova entidade. Pelo que é completamente absurdo supor
que a forma é indiferente ao conteúdo que exprime, pois nesse caso não seria
aquilo que precisamente é, uma realidade diversa da sua substância.
Uma vez que o trabalho é uma condição
natural e eterna da vida humana, uma exigência comum a todas as formas de vida
social, poderia parecer que, uma vez identificada a substância do valor com
trabalho abstracto, o qual como puro dispêndio de energia física ou intelectual
é igualmente comum a todas as formas do processo de trabalho, poderia parecer,
dizia, que valor adquirisse uma existência antediluviana, pelo que até não
pareceriam tão disparatadas as robinsonadas dos clássicos que faziam recuar a
origem do valor até um estado rude e primitivo da sociedade onde o selvagem
compararia o tempo de trabalho gasto na construção da cabana e na construção do
arco e das flechas.
Se as coisas fossem exactamente assim,
o valor seria, por um lado, uma simples representação, uma abstracção mental,
e, por outro, poderia configurar, como qualquer outro atributo natural, como,
por ex. o peso, um padrão absoluto de medida.
Toda a dificuldade reside em
compreender que o valor não é um atributo natural das coisas ou dos trabalhos
concretos, mas uma objectividade social abstracta que, exactamente porque é
abstracta, não se oferece em pessoa ao contacto directo nem do prático nem do
teórico, antes carece de encarnar em coisas tão concretas como os produtos do
trabalho, que assim adquirem um duplo estatuto e uma realidade eminentemente
contraditória.
É por isso que o valor só se constitui
quando, no processo efectivo das trocas, se opera a metamorfose do produto em
mercadoria, com o concomitante desdobramento desta em si mesmo e no seu outro,
o dinheiro.
Como diz Marx: “É somente na sua troca
que os produtos do trabalho adquirem, como valores, uma existência social
idêntica e uniforme, distinta da sua existência natural e multiforme como
objectos de uso;... a igualdade dos trabalhos, diferentes uns dos outros, só
pode consistir numa abstracção da sua desigualdade real, na sua redução ao seu
carácter comum de dispêndio da força humana de trabalho em geral, e é a troca
apenas que opera esta redução, colocando em presença uns dos outros, em pé de
igualdade, os produtos dos trabalhos mais diversos”(6).
E noutro local: “Aqueles que consideram
a autonomização do valor como uma abstracção” - e aqui é óbvio que Marx se
refere à abstracção mental – “esquecem que o movimento do capital industrial é
essa abstracção in actu: o valor
percorre aqui diversas formas, diversos movimentos, pelos quais se mantém, ao
mesmo tempo que valoriza e se engrandece”.
A troca é o mecanismo redutor que,
através da sua reiteração, irá conduzir à autonomização do valor como
abstracção in actu.
Mas há que atender a que não é uma qualquer
troca abstractamente considerada, que dá, desde logo, lugar à constituição
desse idêntico que é o valor. As primeiras trocas são puramente acidentais e
desenrolam-se, não no interior, mas na periferia das comunidades naturais; aí
se afirmam esporadicamente algumas relações de equivalência: 100 conchas
marinhas = 2 colares de pérolas. Mas isto não basta para que entre as conchas e
as pérolas se instaure uma relação de equivalência que faça desses objectos de
uso expressões de um idêntico pressuposto.
A constituição desse idêntico supõe que
a troca se generalize e que cada objecto se reporte, não individualmente a um
outro, mas a um membro qualquer de um conjunto indefinido de outros objectos,
ou seja, que a troca singular seja inscrita na cadeia do mercado, e que os
objectos de uso se determinem como mercadorias.
Então, cada objecto, para além do seu
valor de uso, passa a possuir múltiplos valores de troca. Aqui, todos esses
outros se dão como iguais entre si, exibindo uma identidade, que é posta pela
troca efectiva. A existência social de cada coisa útil é agora determinada por
uma abstracção, a objectividade-valor, de que cada uma se oferece como
encarnação.
A mercadoria surge, então, como unidade
contraditória de valor de uso e valor. Como simples valor de uso, uma
mercadoria não mantém qualquer relação com as outras; como valor, porém, cada
uma é referida à série de todas as outras, de tal sorte que pode ser
substituída indiferentemente por qualquer delas como seu equivalente, em
determinada proporção quantitativa.
Este duplo processo de igualização e de
diferenciação desenha uma intenção objectiva, que de início é apenas virtual,
de expulsão de uma mercadoria no processo de igualização vicariante,
transformando-a no equivalente geral, manifestação imediata do valor, ao qual
todas as outras se reportam. Quando esta expulsão recebe uma sanção social,
passa-se da troca directa à troca monetária e o processo de constituição do
valor completou-se.
É evidente que este mecanismo não opera
no vazio. Para que a troca possa generalizar-se, há que pressupor que o mercado
é abastecido por um processo produtivo e que cada trocador-proprietário traz ao
mercado produtos do trabalho de produtores privados.
Nos processos de produção
pré-mercantis, já os produtos do trabalho se determinam formalmente, na medida
em que os indivíduos inter-agem através dos seus produtos, de modo a garantir a
continuidade do processo produtivo e preservar a individualidade biológica e
social de cada um e de todos.
O exercício do processo de trabalho
opera, então, sob duas condições: de um lado, uma massa de necessidades sociais
a satisfazer, de outro, o trabalho colectivo social que qualquer grupo ou
comunidade precisa distribuir conscienciosamente a fim de garantir a sua
sobrevivência.
Este pressuposto, nos termos do qual
toda a actividade produtiva tem por parâmetros uma massa de necessidades
sociais e uma massa de trabalhos sociais, mantém-se sempre como lei
intransponível e sistematicamente reposta nos diversos sistemas sociais, na medida
em que constitui a condição natural eterna da vida humana.
Mas o problema reside em saber como é
que o pressuposto é reposto, como é que o trabalho se socializa, ou seja, como
se opera a síntese social.
O grande mérito de Marx reside no facto
de ter descortinado que, no seio da própria realidade social, opera uma síntese
que não é, como a síntese kantiana, uma síntese mental, mas uma trama que se
tece entre os homens e os seus produtos, e onde o universal se mostra efectivo,
ao nível do concreto que por isso, e só por isso, pode ser reconstituído, à
maneira hegeliana, como resumo de múltiplas determinações abstractas.
A grande questão com que Marx se debate
é esta: quando a troca mercantil se generaliza e os indivíduos trabalhadores
actuam separada e autonomamente, como é que se articulam o trabalho individual
e o trabalho social?
Agora, isto é, nas sociedades
mercantis, o trabalho social não se exerce sob uma forma directamente social,
mas tão só como trabalho de produtores privados. As acções produtivas são
insociais, pelo que a acção produtora de cada trabalhador ou de cada unidade
produtiva deixa de ser permeada por um sistema de representações que abarque o
sistema produtivo no seu todo. É fundamentalmente neste sentido que o trabalho
é privado.
O que há de característico nas
sociedades mercantis e, a fortiori,
no modo de produção capitalista, é que o pressuposto da sociabilidade do
trabalho, que não opera ao nível da actividade produtiva, vai ser reposto como
sociabilidade do produto. É este processo de socialização pela abstracção que
constitui o rationale da teoria do
valor trabalho.
Quando o produto do trabalho se
transforma em mercadoria, toda a referência directa aos outros parceiros
sociais é abolida; em vez disso, é cada produto-mercadoria que se reporta a
outras mercadorias, como expressão de uma identidade posta que subjaz aos dois
membros da equação. A comparação dos trabalhos úteis particulares deixa de
fazer qualquer sentido, pelo que o trabalho abstracto não resulta de qualquer
comparação nem de qualquer redução a um elemento comum. É, pelo contrário, a
troca efectiva que opera na prática essa redução; é porque as mercadorias são
igualizadas na troca, que cada produto se apresenta como se resultasse de um
trabalho indiferente identificável com qualquer outro.
O trabalho abstracto constitui um
universal que se mede pelo tempo, mas este tempo pouco, ou nada, tem que ver
com o tempo concreto despendido na produção de um objecto útil. Trata-se de um
tempo também ele abstracto, que só existe materializado no produto, como
quietude e não como movimento.
Por tudo isto o valor não pode
constituir um padrão de medida absoluto, como supunha Ricardo. Diferentemente
do que acontece no caso dos atributos naturais, o valor jamais institui um
padrão absoluto de referência: é como se o padrão fosse sistematicamente
descentrado, já que cada mercadoria encontra a medida do seu valor numa outra,
e outra, e outra ainda e assim indefinidamente; basta uma qualquer alteração de
algum desses outros, ou um simples excesso ou defeito em relação à massa de
necessidades que visa satisfazer, para que a expressão numérica se altere,
muito embora o valor permaneça inalterado.
Daí resulta toda a dificuldade de
compreender, e, mesmo quando se compreende, de aceitar, a existência real desse
trabalho abstracto ao nível da forma valor da mercadoria. Para tanto, é preciso
descortinar na própria mercadoria, a vigência da contradição especificamente
hegeliana: a mercadoria contém, no seu seio, uma oposição polar no âmbito da
qual cada termo só é aquilo que é, mediante a sua reflexão no outro, com total
exclusão do aspecto de indiferença recíproca dos opostos que caracteriza a
kantiana oposição real. A forma natural da mercadoria apresenta-se, na relação
de troca, como forma de aparecer do seu contrário, o valor, ou seja, o trabalho
concreto converte-se no modo de aparecer do trabalho abstracto. É aí que reside
todo o segredo da socialização pela abstracção: o trabalho privado, ao
socializar-se pela mediação do mercado, assume uma forma de permutabilidade
imediatamente social, pelo que o trabalho social passa a ser precisamente o
trabalho abstracto de que as mercadorias são a encarnação.
Isto significa que qualquer trabalho
concreto, seja qual for a sua natureza, só vale socialmente como parte alíquota
do trabalho abstracto socialmente necessário. A abstracção passa a funcionar
como medida da existência social do concreto.
Aqui radica a grande diferença entre o
valor e outro qualquer atributo. Hoje, após a obra de Marx, é possível, como faz
Giannotti (7),
radicalizar a sua análise da abstracção real e sustentar que as próprias coisas
naturais só adquirem a sua perdurabilidade de coisas, no interior do contexto
do mundo, a partir das relações que os homens tecem entre si e com a Natureza.
Deste ponto de vista, que põe em causa a concepção corrente do objecto, pode
inclusivamente sustentar-se que a objectividade das coisas é sempre social e
que todo o discurso e, no fundo, toda a representação assenta sobre um logos
prático, um solo, semântico permanentemente cultivado por uma prática
transformadora. Deste ponto de vista, em vez de aceitar a identidade como dada
aos objectos, já prontos e acabados, em vias de despontar como variáveis de
qualquer função proposicional, reconhece-se que há uma prática muda por detrás
da loquacidade da linguagem e que só a partir dos complexos de comportamento se
desenha um jogo de identificações que não escapa a processos circulares em que
os objectos já se exprimem uns pelos outros e, no seio dos quais, a identidade
não se separa da demarcação da diferença.
Se tomarmos o processo da constituição
do peso que, aliás serve de exemplo a Marx, a passagem de “x é pesado” para “ x
tem um peso de n Kg”, supõe um processo efectivo de mensuração em que um
objecto padrão empresta o seu corpo a título de identidade pressuposta a fim de
que o objecto a medir se determine por ela. Isto significa que a constituição
do atributo nominalizado não é independente das acções de medida e que a
predicação supõe uma socio-lógica, capaz de garantir-lhe a forma lógica do
múltiplo, onde possa engrenar-se.
Mas a diferença, em relação ao caso do
valor, é extremamente significativa como ilustração da especificidade da
abstracção real. Ao passo que, no caso do peso, há uma medida pressuposta que
garante a referência do atributo universal, como antecipação das operações
concretas de medida, no caso do valor, o universal anteposto configura, sem mais,
uma condição de existência social deste ou aquele trabalho particular. E esta
diferença é essencial: em vez de representar uma antecipação social de
operações sobre concretos existentes, agora é a abstracção que serve de medida
para a existência social do concreto.
Como já tive ocasião de acentuar, o
ponto de partida da constituição do valor não é a multiplicidade dos trabalhos
nem dos produtos, como a multiplicidade das coisas pesadas o é para a
instauração do peso. No caso do valor não há nenhuma diversidade prévia dos
trabalhos objectivados; é apenas a efectividade da troca que, conformando o
movimento do trabalho na quietude do produto, permite que seja o trabalho
abstracto e geral a colocar a condição de existência social deste ou daquele
trabalho particular.
É por isso que, mesmo quando se pensa
que, no fundo, toda a objectividade acaba por ser social, o valor e as
categorias que dele decorrem adquirem uma objectividade muito particular, na
medida em que agora o atributo valor, exactamente como as categorias
hegelianas, possui um princípio interno de diferenciação que falta de todo no
caso dos atributos naturais como o peso ou a cor. É muito possivelmente exacto
que, por detrás da identidade lógica da coisa natural - que permite a
referência dos nomes próprios -, se oculte um processo de mensuração e
transformação efectiva que a linguagem tende a esquecer, mas o certo é que
jamais uma coisa natural aparece transformando-se noutra em virtude do
princípio de diferenciação interna que Hegel postulava e que o jovem Marx tão
pouco andaria muito longe de pressupor.
Em contraposição, é isso que justamente
acontece no caso do valor; quando, pelo desenvolvimento da contradição ínsita
na mercadoria entre a forma relativa e forma equivalente, o equivalente geral
se autonomiza para se colocar como dinheiro, signo que passa a funcionar como
mediador da troca efectiva, ocorre, no seio da realidade social, um processo de
verdadeira autonomização da forma, dotado de uma dinâmica própria.
Ao contrário do que acontece nos
processos de produção pré-mercantis, as formas adquirem uma autonomia até aí
desconhecida e como que se desprendem dos comportamentos sociais em que
enraízam.
É daí que resulta todo o misticismo e
natureza aparentemente especulativa deste processo de socialização pela
abstracção.
Num texto dos Studienausgabe II (ed.
Fetcher, Frankfurt am Main, 1906, pag. 229), Marx observa: “Em vez de se
dissiparem pela sua própria oposição, as determinações contraditórias da
mercadoria reflectem-se aqui uma à outra. ..É como se, ao lado dos tigres, das
lebres e de todos outros animais reais, existisse também o animal, encarnação
individual de todo o reino zoológico“.
Num outro texto, este muito mais
conhecido e que se refere igualmente à realidade do valor, Marx observa que se
dissertarmos que o Direito Romano e Direito Alemão são exemplos do Direito,
esta afirmação não envolve qualquer mistério, mas se afirmarmos que o Direito,
essa realidade abstracta, se manifesta nos direitos concretos, as coisas
assumem uma conotação mística; no entanto, é assim precisamente que tudo se
passa no caso do valor.
Estará na memória de todos, o célebre
texto da ‘Sagrada Família’ onde Marx procura estigmatizar aquilo a que chama o
mistério da construção especulativa, através do exemplo da abstracção do fruto,
contraposta aos frutos concretos, como pêras, cerejas e maçãs; ora no caso do
valor tudo se passa como se, ao lado dos frutos concretos, existisse igualmente
o fruto em geral. Seria absurdo que, num restaurante, alguém recusasse cerejas
ou maçãs porque a sobremesa que pediu foi fruta, mas o que se passa todos os
dias no mercado é que o vendedor está intitulado a recusar toda e qualquer mercadoria
porque aquilo que pediu foi o valor em geral - o dinheiro.
Talvez agora se torna mais claro porque
razão Marx, ao contrário do que acontecia no tempo em que redigia a ‘Sagrada
Família’, é conduzido a recuperar os mecanismos de posição da dialéctica
hegeliana, no preciso momento em que se afasta do antropologismo dos seus
tempos de juventude e lança os fundamentos de um novo tipo de discurso teórico
que se situa nos antípodas da especulação hegeliana. É que, ao reconstituir o
processo de constituição da forma autonomizada, é no plano da transmutação das
formas que adquire plena vigência a dialéctica da negação da negação.
Quando o mecanismo de abstracção real
que procurei pôr em evidência confere autonomia a uma parte do logos prático,
onde as coisas sociais adquirem uma sintaxe própria, entra em cena a boa
infinidade hegeliana, onde tudo o que é natural e espontâneo passa a ser
trespassado pela história, e onde todas as condições naturais pressupostas são
repostas como manifestações do valor que se põe a si mesmo, à semelhança do
Absoluto hegeliano.
Mas diferentemente do que se passa em
Hegel não é a História que se desdobra segundo as articulações do bom infinito,
mas o modo de produção capitalista que o introduz.
A dialéctica hegeliana ganha então plena
vigência e torna-se inclusivamente indispensável como modo de exposição da
ciência crítica das formas em que se cristalizam as relações sociais se
produção.
Mas trata-se de uma dialéctica que
define os seus próprios limites porque, para Marx, a história jamais se
identifica com a lógica.
As intenções objectivas postas pelas
estruturas formalmente definidas no processo de exposição categorial permanecem
simplesmente visadas enquanto não se efectuarem na própria prática social. E
esta prática social, mesmo após a autonomização da forma valor, continua a ser
um processo de trabalho que, por muito que seja aspirado pela forma, jamais é
devorado por ela.
Mas mesmo quando a mistificação atinge
o seu cúmulo, quando o processo de desenvolvimento das formas se autonomiza até
ao ponto de reflectir dentro de si a totalidade das determinações materiais, o
que só acontece com a universalização do modo de produção capitalista, o
processo de trabalho permanece como a pressuposição fundamental sempre reposta,
seja qual for o sistema de determinações formais através das quais se
socializa.
Como atrás sugeri, embora sem nenhum
aprofundamento, o movimento reflexionante que está na base da dialéctica das
formas pode radicalizar-se. É possível inclusivamente que, no limite, não
possamos pensar senão no interior de um círculo reflexionante e tenhamos de
desistir de um qualquer ponto da partida, que só poderia ser um Eu
Transcendental ou uma multiplicidade primária de objectos físicos ou
abstractos.
Neste sentido, a dialéctica corresponde
à vigilância crítica que procura inquirir constantemente como é que o dado se
constitui, pondo em questão todos os factos e todas as identidades prontas e
acabadas. Mas, a menos de assumir, como Hegel, uma concepção da infinidade da
teoria, temos de reconhecer que, mesmo quando através da autonomização da
forma, se constitui um domínio onde os mecanismos da dialéctica passam a ter
vigência prática essa dialéctica tem limites, os quais, no fundo, se reconduzem
a um só: a irredutível facticidade do real, a impossibilidade da sua total
reabsorção pelo Espírito postulada pelo hegelianismo e, no fundo, por toda a
Metafísica ocidental.
______________
NOTAS:
NOTAS:
(1) ALFRED SOHN RETHEL, Intellectual
and Manual Labor, ed. Lowe and Brydone, Thetford, Norfolk, 1978.
(3) HANS GEORG BACKAUS, Dialectique de la Forme
Valeur in ‘Critiques de L’Économie
Politique’, nº 18, Oct- Dez, 1974.
Politique’, nº 18, Oct- Dez, 1974.
(5)
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, Origens da
Dialéctica do Trabalho, Difusão Europeia do Livro São Paulo, 1966.
6) KARL MARX, Das Kapital, Cap. I.
(7)
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, Trabalho e
Reflexão, Ed. Brasiliense, 1983.
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Fonte: http://www.ocomuneiro.com/paginas_m_joaoestevesilva_arealidadedaabstracao.htm
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