Dizem os historiadores que 'a consciência da história' tem dessas coisas: a cada dia, a cada semana, a cada mês, a cada ano, lançar um olhar melancólico sobre o passado, para ver o que, no tempo pretérito, na mesma altura do tempo presente, estava a se passar. É assim que um amigo me lembra que, há 50 anos, em 1964, Jean-Paul Sartre ganhava o Prêmio Nobel de Literatura, recusando, contudo, recebê-lo. Difícil imaginar algo similar nos dias presentes, onde, intelectualmente, a busca da autopromoção praticamente faz a propaganda pela propaganda, posto que, ao fim e ao cabo, os que andam ansiosamente à procura de palco nada têm a apresentar como efetiva criação intelectiva - mas, mesmo assim, assumem um tom de arrogância que é de abalar as pirâmides do Egito. No final das contas, os abalados são eles. Por ocasião da recusa de Sartre ao Nobel, Deleuze escreveu um texto emblemático. Começa por falar da 'tristeza das gerações sem mestres'. Pode ser lido aí abaixo.
Gilles Deleuze, Jean-Paul Sartre (ao fundo, no centro) e Michel Foucault
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“Ele foi meu mestre” (1)
[1964]
Por Gilles Deleuze
Tristeza
das gerações sem "mestres". Nossos mestres não são apenas os professores
públicos, ainda que tenhamos uma grande necessidade de professores. No momento
em que atingimos a idade adulta, nossos mestres são aqueles que nos tocam com
uma novidade radical, aqueles que sabem inventar uma técnica artística ou
literária e encontrar as maneiras de pensar que correspondem à nossa modernidade,
quer dizer, tanto às nossas dificuldades como aos nossos entusiasmos difusos.
Sabemos que existe apenas um valor de arte e até mesmo de verdade: a
"primeira mão", a novidade autêntica daquilo que se diz, a
"musiquinha" com a qual aquilo é dito. Sartre foi isso para nós (para
a geração que tinha vinte anos no momento da Liberação). Quem, na época, soube
dizer algo de novo além de Sartre? Quem nos ensinou novas maneiras de pensar?
Por mais brilhante e profunda que tenha sido, a obra de Merleau-Ponty era
professoral e dependia daquela de Sartre em muitos aspectos. (Sartre assimilava
de bom grado a existência do homem ao não-ser de um “buraco” no mundo: pequenos
lagos de nada, dizia. Mas Merleau-Ponty os considerava como dobras, simples
dobras e dobramentos. Assim se distinguiam um existencialismo duro e penetrante
e um existencialismo mais brando, mais reservado.) E Camus, ai! Ora se
tratava de um virtuosismo afetado, ora de uma absurdidade de segunda mão. Camus
valia-se de pensadores malditos, mas toda sua filosofia nos conduzia a Lalande
e a Meyerson, autores já bem conhecidos dos alunos do terceiro grau. Os novos
temas, um certo estilo novo, uma nova maneira polêmica e agressiva de levantar
os problemas, tudo isso veio de Sartre. Na desordem e nas esperanças da
Liberação, descobria-se, redescobria-se tudo: Kafka, o romance americano,
Husserl e Heidegger, os acertos de contas sem fim com o marxismo, o impulso em
direção a um novo romance…Tudo passava por Sartre, não apenas porque, sendo um
filósofo, possuía um gênio da totalização, mas porque sabia inventar o novo. As
primeiras representações de As Moscas, a aparição de O Ser
e o nada, a conferência O Existencialismo é um humanismo foram
acontecimentos: aprendia-se aí, depois de longas noites, a identidade do
pensamento e da liberdade.
Os
"pensadores privados" opõem-se, de uma certa maneira, aos
"professores públicos". Até mesmo a Sorbonne precisa de uma anti-Sorbonne,
e os estudantes só escutam bem seus professores quando têm também outros
mestres. Nietzsche, no seu tempo, deixara de ser professor para tornar-se
pensador privado: também Sartre o fez, num outro contexto e com uma outra
saída. Os pensadores privados têm duas características: uma espécie de solidão
que permanece como propriamente sua em qualquer circunstância; mas também uma
certa agitação, uma certa desordem do mundo, na qual eles surgem e falam. Além
do mais, só falam em seu próprio nome, sem "representar" nada; e
solicitam presenças brutas no mundo, potências nuas que de modo algum são
"representáveis". Já em Que é a literatura? Sartre
traçava o ideal do escritor: "O escritor retomará o mundo tal e qual, todo
nu, todo suado, todo fedido, todo cotidiano, para apresentá-lo às liberdades
fundado sobre uma liberdade… Não é suficiente conceder ao escritor a liberdade
de dizer tudo! É preciso que ele escreva a um público que tenha a liberdade de
mudar tudo, o que significa – além da supressão das classes – a abolição de
toda ditadura, a renovação perpétua dos cargos, a derrubada contínua da ordem –
a partir do momento em que ameaça se fixar. Em uma só palavra, a literatura é
essencialmente a subjetividade de uma sociedade em revolução permanente”(2).
Desde o início Sartre concebeu o escritor sob a forma de um homem como os
outros, dirigindo-se aos outros do ponto de vista único de sua liberdade. Toda
sua filosofia se inseria num movimento especulativo que contestava a noção de representação,
a própria ordem da representação: a filosofia mudava de lugar,
abandonava a esfera do juízo, para se instalar no mundo mais colorido do
"pré-judicativo", do "sub-representativo". Sartre acaba de
recusar o prêmio Nobel. Continuação prática da mesma atitude, horror à idéia de
representar algo praticamente, ainda que seja dos valores espirituais ou,
como ele, diz, de ser institucionalizado.
O
pensador privado precisa de um mundo que comporte um mínimo de desordem, mesmo
que seja apenas uma esperança revolucionária, um grão de revolução
permanente. Em
Sartre, há uma espécie de fixação na Liberação, nas esperanças desiludidas
desse momento. Foi preciso a guerra da Argélia para reencontrar algo da luta
política ou da agitação liberatória e, então, em condições muito mais complexas,
já que não éramos mais os oprimidos mas, precisamente, aqueles que deviam se
voltar contra si mesmos. Ah! juventude. Só resta Cuba e a guerrilha
venezuelana. Porém, maior ainda do que a solidão do pensador privado, há a
solidão dos que buscam um mestre, dos que gostariam de um mestre e que só
poderiam encontrá-lo num mundo agitado. A ordem moral, a ordem
"representativa" fechou-se sobre nós. Até o medo atômico tomou ares
de um medo burguês. Agora acontece até de propor-se aos jovens Teilhard de
Chardin como modelo de pensador. Tem-se o que se merece. Depois de Sartre, não
apenas Simone Weil, mas a Simone Weil da imitação. Porém, não é que não existam
coisas profundamente novas na literatura atual. Citemos ao acaso: o
novo-romance, os livros de Gombrowicz, os contos de Klossowski, a sociologia de
Lévi-Strauss, o teatro de Genet e de Gatti, a filosofia da "desrazão"
que Foucault elabora… Mas o que falta hoje, o que Sartre soube reunir e
encarnar para a geração precedente, são as condições de uma totalização:
aquela em que a política, o imaginário, a sexualidade, o inconsciente, a
vontade se reúnem nos direitos da totalidade humana. Hoje nós subsistimos com
os membros esparsos. Sartre dizia de Kafka: sua obra é "uma reação livre e
unitária ao mundo judeo-cristão da Europa central; seus romances são o
ultrapassamento sintético de sua situação de homem, de judeu, de tcheco, de
noivo relutante, de tuberculoso etc."(3). Mas o próprio Sartre: sua obra é
uma reação ao mundo burguês, tal como o comunismo o põe em questão. Ela exprime
o ultrapassamento de sua própria situação de intelectual burguês, de ex-aluno
da École Normale, de noivo livre, de homem feio (já que Sartre se apresentava
freqüentemente assim)… etc.: tudo isso que se reflete e ecoa no movimento de
seus livros.
Falamos
de Sartre como se ele pertencesse a uma época acabada. Mas ai! Nós é que
estamos já acabados na ordem moral e no conformismo atual. Pelo menos Sartre
nos permite uma vaga espera dos momentos futuros, de retomadas nas quais o
pensamento se reformará e refará suas totalidades, como potência ao mesmo tempo
coletiva e privada. É por isso que Sartre continua sendo nosso
mestre. O último livro de Sartre, A crítica da razão dialética, é
um dos livros mais belos e mais importantes surgidos nestes últimos anos. Ele
dá a O ser e o nada seu complemento necessário, no sentido em
que as exigências coletivas completam a subjetividade da pessoa. E quando
pensamos novamente em O ser e o nada é para reencontrar o
espanto que tínhamos diante em face dessa renovação da filosofia. Agora já
sabemos melhor que as relações de Sartre com Heidegger, sua dependência de
Heidegger, eram falsos problemas que se apoiavam em mal-entendidos. O que nos
tocava em O ser e o nada era unicamente sartreano e dava a
envergadura da contribuição de Sartre: a teoria da má-fé, em que a
consciência, no seu interior, brincava com a sua dupla potência de não ser o
que é e de ser o que não é; a teoria do Outrem, em que o olhar de
outrem bastava para fazer o mundo vacilar e "roubá –lo" de mim;
a teoria da liberdade, em que esta se limitava a si mesma ao se
constituir em situações; a psicanálise existencial,
onde se podia reencontrar asescolhas de base de um indivíduo no
centro de sua vida concreta. E cada vez, a essência e o exemplo entravam em
relações complexas que davam um estilo novo à filosofia. O garçom do café, a
moça apaixonada, o homem feio e, principalmente, meu
amigo-Pierre-que-nunca-estava-presente, formavam verdadeiros romances na obra
filosófica e percutiam as essências ao ritmo de seus exemplos existenciais. Por
toda parte brilhava uma sintaxe violenta, feita de rachaduras e de
estiramentos, lembrando as duas obsessões sartreanas: os lagos de não-ser, as
viscosidades da matéria.
A recusa
do prêmio Nobel é uma boa notícia. Finalmente, alguém que não tenta explicar que é um
delicioso paradoxo para um escritor, para um pensador privado, aceitar honras e
representações públicas. Muitos espertinhos já tentam levar Sartre à
contradição: demonstram-lhe sentimentos de despeito, vindo o prêmio tarde
demais; objetam dizendo que, de qualquer maneira, ele representa algo;
recordam-lhe que, de todo modo, seu sucesso foi e permanece sendo burguês;
deixam entender que sua recusa não é nem sensata nem adulta; mostram-lhe o
exemplo daqueles que aceitaram-recusando, dando pelo menos o dinheiro à
caridade. Melhor seria não provocar muito, Sartre é um polemista perigoso…Não
há gênio sem paródia de si mesmo. Mas qual é a melhor paródia? Tornar-se um
velho adaptado, uma autoridade espiritual coquete? Ou então querer ser o
abobado da Liberação? Quem não vê a diferença de qualidade, a diferença de gênio, a diferença
vital entre essas duas escolhas ou essas duas paródias? Ao que Sartre é fiel?
Sempre ao amigo Pierre-que-nunca-está-presente. É o destino desse
autor trazer ar puro quando ele fala, mesmo que seja difícil respirar esse ar
puro, o ar das ausências.
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(1) Arts, 28 de novembro de 1964, p. 8-9. Um mês antes, Sartre tinha recusado o prêmio Nobel de literatura.
(2) Qu’est-ce que la litérature? Paris,
Gallimard, coll. Folio Essais, p.162-163.
(3) Qu’est-ce que la litérature ?, ibid.,
p.293.
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Tradução
de Francisca Maria Cabrera.
Fonte: http://intermidias.blogspot.com.br/2011/04/gilles-deleuze-declara-sobre-sartre-ele.html
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