Paulo Roberto de Almeida é um diplomata brasileiro com destacada verve de analista social. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas, foi Ministro-Conselheiro da Embaixada Brasileira em Washington. Tem uma considerável produção e teorização a respeito de temas centrais das ciências humanas. E coloca sobre a mesa o papel da pesquisa e da pós-graduação. Neste sentido, produziu um arguto texto de considerável valor para mestrados, mas também apropriado à leitura dos professores orientadores, sobretudo quando se considera o imprescindível nível da orientação e a qualidade dos trabalhos produzidos. Certa feita disse-me o luso-britânico Stephen Ronald Stoer, atento pesquisador da Sociologia da Educação: 'o mestrado, feito com o rigor necessário, é um passo fundamental que leva a outros passos de progressão na vida acadêmica'. Assim o é. Abaixo, reproduzo o referido texto.
Por Paulo
Roberto de Almeida
Para
responder sinteticamente à pergunta do título, temos de primeiro nos colocar em
ambos os lados da equação. Os professores do mestrado certamente esperam muito
de uma dissertação: que os alunos façam um trabalho original, bem escrito,
“novedoso”, que honre o curso. Quanto aos alunos do mestrado, bem, conforme a
velha lei dos comportamentos inerciais (e também aquela do menor esforço), eles
desejam, sobretudo, que a dissertação possa ser feita com o mínimo de trabalho
possível, rapidamente, sem muita “chateação” do professor, e que a defesa possa
se fazer en douceur, isto é, sem
grandes sobressaltos em face da banca. Estou exagerando, claro, e talvez sendo
maldoso, pois acredito que a maior parte dos professores exerce seu trabalho
conscienciosamente, assim como acredito que boa parte dos alunos trabalha
seriamente seus projetos e a pesquisa e espera que o trabalho, uma vez
concluído, possa lhes trazer algum benefício profissional, um engrandecimento cultural,
quando não satisfação intelectual. Voilà,
acho que fui mais justo desta vez. Mas, deixando esses subjetivismos de lado,
vejamos como poderíamos conceber um processo de preparação, de elaboração e de
defesa de uma dissertação de mestrado que
mantenha padrões aceitáveis de qualidade intrínseca e que guarde coerência com
os propósitos e afinidade de espírito com o mestrado em questão. Eu começaria
por sumariar o que me parecem ser os principais pontos a serem observados num
processo de médio prazo
como é o do mestrado acadêmico. Formularei alguns comentários pessoais em
função dos seguintes critérios: objeto, metodologia, desenvolvimento do
trabalho, originalidade, finalidade ou “valor social”, bibliografia e processo de avaliação.
1.
Objeto:
O
mestrando deve, em pleno acordo com o seu orientador, definir o tema de sua dissertação
dentro do campo de estudos coberto pelo mestrado em questão. O que dele se espera
é que o objeto do trabalho de pesquisa cubra temas não corriqueiros, ou seja,
que ele represente algum esforço próprio do mestrando em abordar seu objeto com
alguma elaboração diferente daquela que existe na literatura da área. Não é
necessário que o tratamento dado nas fases de pesquisa e de redação da
monografia dissertativa ou que o objeto
mesmo sejam totalmente originais ou inéditos, mas a dissertação tampouco pode ser
uma compilação dos text-books ou dos
livros mais conhecidos existentes na área. A elaboração pode ser mais
conceitual do que empírica ou de estudo de caso, mas as mesmas regras de
cobertura da área e elaboração própria devem valer também para esse tipo de
dissertação. Aliás, não existem regras pré-definidas quanto à maneira de se abordar
qualquer objeto considerado válido ou pertinente para a dissertação: pode se
ter um
trabalho relativamente “estático” – de cobertura da legislação ou da situação
existente numa determinada área na própria contemporaneidade –, um outro mais
“evolutivo” – ou seja, historicamente linear ou recapitulativo –, ou ainda uma
reflexão do autor quanto ao que ele considera uma “insuficiência” da literatura
ou dos estudos de caso naquela área, que ele decide então completar por uma
contribuição original com base em seu interesse pela questão. Todos os tipos de
abordagem de um problema preciso são válidos, a priori. O
mestrando deve saber, em primeiro lugar, delimitar precisamente o seu objeto, “dialogar”
com o tema, problematizando-o, para empregar um neologismo universitário. Não é
necessário, em segundo lugar, que o mestrando ofereça todas as respostas que um
determinado objeto suscita naquela área de estudos, mas ele deve poder
oferecer, ao menos, todas as perguntas pertinentes que se impõem em face do
objeto escolhido. Não há,
tampouco, necessidade de que o tema seja absolutamente inédito no conjunto dos problemas
“dissertáveis” normalmente contemplados num curso de mestrado, mas o mestrando
não deve realizar uma mera síntese da literatura disponível. Certos “temas de fronteira”
se prestam particularmente para um tratamento de tipo “exploratório”. Como guia
“estruturante” da apresentação inicial da problemática, o candidato pode se
deixar guiar, onde couber, pelas famosas seis perguntas de todo jornalista: o
que, quando, quem, onde, como e por quê? A última pergunta também comporta uma
espécie de
rationale explicativa: afinal de
contas, o esforço de reflexão crítica aparece como um componente indispensável
de um curso de mestrado bem sucedido. Ele é a própria razão de ser de qualquer
mestrado.
2. Metodologia:
Muitos
professores falam de um “marco teórico” como algo “indispensável” ao trabalho
do mestrando, e com isso conseguem tirar várias noites de sono do candidato, que
adentra na selva selvaggia da
bibliografia pertinente – geralmente restrita a poucos “barões” da teoria em
ciências humanas, de extração francesa ou alemã – em busca de algum
enquadramento teórico para o seu objeto escolhido. A teoria certamente ajuda a pensar,
mas ela não deve representar uma camisa de força, do contrário um candidato desprevenido,
que pretenda, por exemplo, fazer uma dissertação sobre a informalidade laboral
no Brasil, pode se interrogar sobre o que o inefável Foucault teria a dizer
sobre isso. A metodologia é, sobretudo,
uma ferramenta analítica utilizada para descrever e discutir o objeto escolhido
e a teoria é uma espécie de fundamentação conceitual desse objeto, com algumas
generalizações sobre o tema em espécie. Estudos de caso e pesquisa empírica são
sempre bem-vindos. Na elaboração metodológica, o candidato deve eventualmente
se propor algumas hipóteses de trabalho que serão, no decurso do trabalho,
confirmadas ou desmentidas pelo tratamento oferecido ao tema escolhido. Em
matéria de estilo, conviria descartar, absolutamente, todos os apostos e predicados
que possam ser colados a autores e situações, independentemente da ação em si:
ou seja, adjetivos e advérbios de qualidade – este “insigne autor”, “numa
excelente análise”, em tal “obra estupenda” – devem ser literalmente
escorraçados do texto. Ficam apenas colocações fáticas, objetivas, comedidas...
3. Desenvolvimento do
trabalho:
Todo
trabalho redacional de caráter acadêmico (e até jornalístico), de qualquer tipo
– artigo, dissertação, ensaio, tese, monografia, reportagem –, apresenta, como
se sabe, começo, meio e fim (além das fontes). O que quer isso dizer, numa
dissertação? No
que se refere à sua estrutura formal, ela pode ser dividida, grosso modo, em quatro
ou cinco partes: introdução, corpo principal do trabalho, conclusões,
bibliografia e, se for o caso, apêndice. Vejamos rapidamente o que cada uma
delas deve conter. A introdução, obviamente, deve ser o capítulo inaugural – já
estou excluindo aqui essas coisas anódinas, do tipo prefácio, agradecimentos a
Deus e à família, louvações aos professores maravilhosos etc. –, antes mesmo do
início da Parte I do trabalho, se tal for a escolha. Ela deve conter uma
exposição precisa do objeto da dissertação, uma descrição do conteúdo da
própria dissertação, eventuais particularidades na abordagem do tema e uma
antecipação de quais serão as conclusões do trabalho. Dividida em seções, a
introdução pode inclusive conter a metodologia, a discussão conceitual ou o
famoso “marco teórico”. Se metodologia e “marco teórico” forem suficientemente
importantes no trabalho, eles podem ser objeto de um capítulo à parte, um
segundo capítulo inaugural, por exemplo. O corpo do trabalho contém o
desenvolvimento dos argumentos do autor. Sua estrutura formal, cela va de soi, pode variar muito.
Existem teses e dissertações com mais de uma dúzia de capítulos, eventualmente
divididos em duas ou mais partes, assim como existem trabalhos contendo apenas
quatro ou cinco capítulos de natureza cronológico-evolutiva ou
temático-funcional. A divisão entre partes e capítulos e o tratamento dado pelo
autor aos diferentes subtemas do trabalho devem ser discutidos pelo candidato
com o seu orientador, para evitar aquele tipo de arranjo disfuncional, com
capítulos desiguais entre si, que podem acabar integrando uma cara de princesa
a um corpo de Frankenstein. Conclusões
são conclusões em qualquer lugar do mundo, apesar de que certos trabalhos
ainda ousam discutir novos problemas – e inserir notas de rodapé – nesse único capítulo
conclusivo, que nada mais faz senão recolher os resultados parciais dos
capítulos ou confirmar as hipóteses iniciais do trabalho, agregando as
“descobertas” do autor no decurso da pesquisa e suas reflexões críticas sobre o
objeto em causa. Ponto. No máximo, o autor indicará novos problemas ou questões
complementares que em sua opinião devam merecer pesquisas adicionais ou até
justificar novas pesquisas e eventual tese a respeito. Quanto à bibliografia –
devidamente normalizada, assim como as notas de rodapé – e eventual(is)
apêndice(s) – para recolher todos aqueles suportes documentais que sobrecarregariam
demasiado o corpo do texto – não é preciso se estender sobre isso, pois cada um
sabe o que fazer a respeito.
4. Originalidade:
Ninguém
está pedindo a reinvenção da roda, ou a “redescoberta” do Brasil, numa “simples”
dissertação de mestrado, mas inovação e originalidade, sem glórias e adereços, podem
ser extremamente bem-vindos, sobretudo se o autor pretende prosseguir carreira acadêmica
ou fazer daquilo a alavanca de uma futura tese. Em todo caso, o trabalho será ainda
mais valorizado se ele contiver, além da revisão da literatura corrente e de uma
síntese no estrito limite do estado da arte, algum aporte próprio do autor, sua
contribuição para
uma nova visão daquele velho problema, seus próprios findings com base numa leitura crítica dos autores consagrados. Em
outros termos, originalidade ma non
troppo. Existe, porém, um elemento essencial e imprescindível nessa questão
e ela tem a ver com a originalidade absoluta da produção do dissertando. Os
chamados “empréstimos indevidos” devem ser banidos de forma rigorosa da
elaboração do texto, sob risco de todo o trabalho ser recusado e o candidato se
ver sumariamente eliminado do exercício. Não vou
estender-me tampouco sobre essa questão, mas recomendo a leitura de um “manual”
do economista Cláudio Djissey Shikida, “Honestidade Acadêmica e Plágio”, que
pode ser lido neste link: http://www.pralmeida.org/06LinksColabor/ClaudioShikidaPlagio.doc.
5. Finalidade ou
“valor social” do trabalho:
O
“valor de uso” da dissertação é o de assegurar o sucesso do seu autor nesse
rito de passagem que constitui um mestrado acadêmico. O seu “valor de troca” é
representado pelo aproveitamento que ele possa fazer do trabalho fora dos
limites estritos – e por vezes estreitos – da academia. Dali deve
necessariamente sair um pequeno resumo para ampla divulgação – e agora a Capes
passa a exigir depósito eletrônico do trabalho – e um artigo para publicação em
veículo especializado. Melhor ainda se dali resultar um livro, mas o “dissertando”
não deve necessariamente redigir o texto com essa idéia em vista. Em todo caso,
o autor deve dialogar com um público mais vasto. A legibilidade laica de um
trabalho desse tipo deve estar sempre presente no momento da redação do
trabalho, por mais técnico ou especializado que ele possa parecer (e ser). Aliás,
durante a própria preparação do trabalho, na fase de pesquisa, ou ainda durante
os créditos do mestrado, o candidato já deve ser orientado a preparar capítulos
de conteúdo substantivo como se fossem artigos “publicáveis”, o que já
representa uma etapa na “valorização social” do seu trabalho de pesquisa. O
autor deve poder sobreviver a essas fases árduas que os americanos chamam de
ABD (all but dissertation), mas o trabalho
também deve ter o mérito de “sobreviver” ao próprio autor, sob a forma de um ou
mais artigos ou, hopefully, um livro
comercial.
6. Bibliografia:
“Professor,
o que eu preciso ler primeiro?” Essa pergunta, aceitável na graduação, já não
parece mais cabível no mestrado. A apresentação de um projeto de mestrado supõe
que o candidato já tenha definido pelo menos uma bibliografia inicial e
elementar. Mas, claro, o mestre está ali para isso mesmo: indicar autores e
títulos que lhe parecem ser obrigatórios na pesquisa e discussão daquele
problema. A bibliografia deve ser
progressivamente construída pelo próprio candidato, e não apenas na base do
Google e manuais da área: pesquisas em bibliotecas restam indispensáveis para
qualquer trabalho bem feito. Quanto à incorporação da literatura disponível no
próprio trabalho, algum meio termo é possível. Assim como certos projetos
possuem mais bibliografia do que idéias claras, certas dissertações deixam a
desejar em matéria de cobertura bibliográfica. Por certo que uma dissertação
não precisa esgotar todo o campo da pesquisa corrente, mas a revisão da
literatura relevante aparece como indispensável a um bom trabalho do gênero. Autores
estrangeiros deve entrar em função do mérito próprio da discussão, e não porque
sejam mais “sapientes” que os nacionais
– na maior parte dos casos eles de fato o são –, mas, também porque são mais
numerosos, como se vê numa pesquisa do tipo Google Scholar (não esquecer,
obviamente, de pesquisar com as palavras-chave em inglês, e não apenas
em português). Por fim, apliquem, mesmo a contragosto, as normas da ABNT...
7. Processo de
avaliação:
Entre
o projeto e a finalização da dissertação deveria haver, idealmente, um exame de
qualificação, isto é, uma avaliação intermediária para verificar se o candidato
está raciocinando corretamente. Pode ser o capítulo central da obra – ainda em
versão preliminar – ou uma apresentação geral do trabalho, em sessão na qual o
candidato pode inclusive externar suas dúvidas, angústias e outros conflitos
bibliográficos. É provável que os professores presentes façam tantas exigências
e sugiram tantos títulos que o pobre candidato saia da sessão ainda mais
angustiado, mas algo ele sempre vai aprender: a não
pretender
abarcar o mundo da próxima vez... Pela lei dos rendimentos decrescentes, tudo
tende a ficar mais difícil se o candidato delonga em demasia o exercício de
redação. Este precisa ser constante, regular. Numa banca de doutoramento, na
maior parte das vezes, o candidato sabe mais que os examinadores sobre o seu
objeto de pesquisa, o que não é o caso nos mestrados. As palavras-chave nessas
ocasiões são: confiança em si mesmo e segurança nas expressões.Tendo cumprido
todas as etapas do ritual, o candidato se descobre então um feliz sobrevivente
de uma navegação que costuma durar de dois a três anos (com recifes e algumas
sereias pelo caminho). Chegando finalmente na sua Ítaca, ele pode descansar por mais
alguns dias, antes de retomar o seu périplo. Até ali ele trabalhou pela
dissertação; a partir dali, o novo mestre poderá colocar a dissertação a
trabalhar por ele...
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Fonte: http://www.pralmeida.org
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