Straight Up: Oslo em torno do Astrup Fearnley
Museum of Modern Art ; Cameron R Neilson
Ivonaldo Leite
O caminhante constitui, em relação à sua
distância, um passo próximo e um ‘distante’, um cá e outro lá. Como assinalou
Michel de Certeau, em L’invention du quotidien,
pelo facto de os advérbios cá e lá serem precisamente, na comunicação verbal,
os indicadores da instância locutora, deve-se acrescentar que essa localização
(cá-lá) necessariamente implicada pelo ato de andar e indicativa de uma
apropriação presente do espaço por um ‘eu’ tem igualmente por função implantar
o outro relativo a esse ‘eu’ e instalar assim uma articulação conjuntiva e
disjuntiva de lugares. A caminhada afiança, respeita, lança suspeita, arrisca,
transgride, etc., os percursos que ‘fala’.
Passos dados, mas não apenas no sentido
estrito de lançamento no espaço físico. Trata-se da existência e do transcurso
num contexto, num determinado cotidiano, englobado pelo permanente devir da
esfera social. O mundo não existe somente como forma de um receptáculo físico no
qual nos encontramos, ele é estruturado por padrões de sociabilidade, na medida
em que a repetição da ação configura a estrutura, quer dizer, ele é mundo
social. Mas, à Heidegger, pode dizer-se
que a vida social é o império do impessoal, é o âmbito onde o ‘todos nós’ e o
‘ninguém’ são confundidos, visto que o parâmetro que norteia o comportamento é
o que se pensa ‘no geral’.
A vida em sociedade é marcada por uma ‘noção
obscura’ de convivência, em que não predomina a singularidade do sujeito, mas,
sim, prevalece a padronização de comportamentos, um ‘impessoal sem rosto’, algo
como um ‘ninguém’ que não se identifica com esta ou aquela pessoa. Os
comportamentos planejados e esperados, frases de circunstâncias, palavras ditas
(por vezes, falsas) tão-somente para que não predomine o incômodo silêncio,
etc., são marcas características do que, não raramente, o ‘teatro’ da vida
social requer.
Daí não se tem outra coisa que não a
inautenticidade do vivido no ‘espaço publico’ do quotidiano. O ‘encobrimento’
do ser. Assim, uma analítica da existência não prosperará caso se limite a
repisar a positividade do vivido. Terá de adotar uma perspectiva inversa. A
dimensão positiva emergirá, mas através do exame negativo e inquieto dos
constituintes da existência. E assim põe-se a questão da angústia, e põe-se
porque ela não é somente um fenômeno psicológico, que diz respeito apenas a um ente, mas sim a sua ‘extensão’ é
ontológica, na media em que nos remete à totalidade da existência como
ser-no-mundo. Novamente com Heidegger, podemos dizer que a angústia começa a se apresentar quando, em meio a nossas
ocupações quotidianas, somos tomados por um certo tédio. Começamos a ficar
fartos de entes que nos rodeiam e não
encontramos em qualquer outro ente suporte
para nos livrar desse tédio. Até chegamos a acreditar que precisamos buscar
mais contacto com as coisas do mundo, para assim nos ocupar - ao invés de nos
preocupar -, e então sairmos da estranha indiferença na qual nos atira o mundo.
Contudo, com isso, ao desse modo procedermos, caímos mais ainda nos abismos da angústia.
Quando somos indagados sobre
o motivo da nossa angústia, geralmente segue-se a resposta: ‘não é nada’. Ou
seja, sente-se a angústia, mas não se identifica o objeto dela. Todavia, com a
angústia nos remetendo à
totalidade como ser-no-mundo, ela é um fenômeno que coloca a existência humana
diante de si mesma, abrindo a possibilidade de retirar o ser da sua decadência e revelando a autenticidade e inautenticidade
como possibilidades no modo de estar no mundo.
A esse respeito, um exemplo ilustrativo pode
ser buscado no romance O Muro, de
Sartre, que tem como cenário uma prisão espanhola na altura da guerra civil. Pablo
Ibbieta, personagem principal, na noite que antecede a sua execução (que não
chega a acontecer), na angústia do perecer, faz uma retrospectiva da sua vida
e, ao cabo da mesma, chega a uma clareza tal sobre a sua existência que o leva
a dizer: "no estado em que me
achava, se viessem me avisar que eu poderia voltar tranqüilamente para casa,
que a minha vida estava salva, ficaria indiferente; algumas horas ou alguns
anos de espera dá na mesma, quando se perdeu a ilusão de ser eterno". Reveladora
memória do tempo passado. Dos passos dados. Consciência dos ‘passos perdidos’.
Intermitências do tempo-existência.
O passo próximo e o passo distante fazem o caminhante
‘deslizar’ pelo tempo, em passos incertos, mas insistentes na busca de rumos. A
cansada existência. De modo semelhante à perspectiva surrealista, a memória dos
passos perdidos transmuta-se numa operação alquímica que perpassa as
enigmáticas sombras refletidas no espelho do pensamento.
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Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir... fantastique! O que me faz pensar em Novalis, com a sua máxima: "o caminho do mistério aponta para dentro".E disso, por certo, não há como fugir. Não há Mefistófeles que dê jeito.
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