Muita tinta tem corrido a respeito das manifestações no Brasil. Muitos analistas em programas televisivos também têm procurado colocar em realce o central da questão. Mas, aqui e alhures, as abordagens padecem de consistência. Falta algo, e, por vezes, sobram equívocos de análise. O texto abaixo, da lavra da Profa. Maria Franco (USP), é uma exceção a isso. Vale a pena a leitura.
Maria Sylvia Carvalho Franco
Os atuais movimentos de massa no Brasil não se devem
apenas a recentes demandas sociais, econômicas ou políticas. Essa atribuição
toma o resultado pela gênese dos eventos. Estes determinam-se no interior de um
arraigado sistema produzido em nossa história.
Destaca-se na origem da
sociedade brasileira a exploração de riquezas baseadas na escravidão moderna,
instituição constitutiva do capitalismo, articulada às mudanças
socioeconômicas, inclusive o trabalho livre, em curso na Europa. Não por acaso,
J. Locke deu forma teórica às práticas capitalistas, fundamentou o pensamento
liberal e legitimou a escravidão moderna, alicerçando-os no direito natural e
individual à propriedade: só o proprietário pertence ao gênero humano. Os sem
posses convertem-se em inferiores, justificando-se o seu jugo e a pena de morte
para quem atenta contra a propriedade, "ipso facto", contra a vida e
a liberdade.
A violência do estado de
natureza permeia a sociedade civil, garantindo --pela recusa de sua
humanidade-- a exploração do trabalhador livre e do escravo. Na vertente
moderna e cristã exposta por Locke, o escravo está expulso do estado de
natureza, segregado da religião, excluído da sociedade civil.
Entre nós, esse elenco
articulou-se ao absolutismo português gerando, em nossa concretização do
capitalismo, ampla rede de controle social arbitrário e economia espoliativa.
Por séculos, mudanças decisivas ocorreram entre dominantes e dominados, mas
subsiste a essência dessa
ordem: a produção de lucro. Distraída desse fato, Dilma caiu em ciladas,
algumas embutidas em sua própria ideologia.
A primeira delas foi acatar o
esquema de poder construído por seu antecessor, que esbanjou ardis retribuindo
os provedores de suas campanhas políticas e produziu, com astuciosa propaganda,
o mito do herói em um país próspero e venturoso. Com essa herança, Dilma
caminhou para o inferno ao cortar benesses. Perturbou o setor financeiro ao
baixar juros e introduzir impostos para o capital externo, provocando fuga
desses bens, elevação do câmbio, desequilíbrio no mercado.
Crente no "papel
histórico da burguesia nacional", cortou impostos, concedeu crédito
copioso, subsidiou o consumo, supondo que os ganhos acrescidos
se transformariam em produtividade. E veio a desaceleração industrial, o
"pibinho", as aventuras com recursos do BNDES e a volumosa remessa de
lucros. Jogou com a inflação visando lastrear o desenvolvimento, mas conseguiu
carestia e queda no consumo, suposto lastro para a ascensão social, produtor de
nova classe média, na verdade inexistente.
Classes não se formam com
artifícios de propaganda e participação rapsódica no mercado. Exemplar dessa
falácia é o Minha Casa, Minha Vida. O banco oficial não empresta os recursos
iniciais para construção, apenas ressarce o montante previamente aplicado pelo
candidato, quantia que lhe é impossível amealhar; as prestações excedem os
bolsos da família e é exorbitante o preço final do imóvel. Diante do impasse, o
bancário aconselha o cliente a procurar um construtor "acostumado a trabalhar com
a Caixa", vale dizer, com a empreiteira favorecida pelo governo.
Dilma tropeçou no rijo sistema
de privilégios e troca de favores. Nessa faina, o empresariado conta com
lobbies operando no Congresso, influenciando os partidos oligarquizados e a
burocracia estatal, com apropriação privilegiada e uso irresponsável dos
dinheiros públicos.
Contra esses interesses
destrutivos da imensa riqueza nacional, ergue-se a massa dela despojada. A
revolta contra as tarifas de transporte não é a gota d'água, o estopim que
acendeu o povo, mas parte importante da experiência diuturna de pessoas
roubadas de seus direitos. Elas têm consciência de que preços maiores visam
favorecer os concessionários que financiam eleições e ocupam cargos chaves na
administração pública.
Aqui, é nulo o perigo de
populismo tarifário e é inválida a alegação de que a estabilidade dos preços
possa bloquear investimentos e, "ipso facto", piorar o serviço. Esse
automatismo não existe; o alvo é o lucro fácil, isento de contrapartida.
O peso desse arcabouço torna
irrisória a assertiva de que a atual rebelião seria difusa, alheia a partidos,
carente de alvos precisos. Nebulosa apolítica, seria a expressão do
fortalecimento ("empowerment") do indivíduo, sujeito da consciência e
dos atos sociais, gerado no bojo da internet.
Trata-se de versão requentada
da secular ideologia liberal, em que o indivíduo é constitutivo do universo. O
poder de seres isolados --hoje como antes-- anula-se diante dos monopólios
estatais da força física, da norma jurídica e dos impostos. As massas assustam
e um recurso para aplacá-las seria dissolvê-las em seus átomos. Mais vale
compreender o sentido desses movimentos.
Eles não poderiam conjugar-se
a partidos, por serem fonte da corrupção que recusam; a liderança não poderia
ser hierárquica, pois são contra a oligarquização da política; suas demandas
são exatas, referentes a direitos que lhes são roubados e pelos quais pagam
tributos; não querem "mais", como reza a propaganda, querem o
imprescindível. Nem são amorfos: as redes sociais ensejam a organização dos
grupos e atividades.
Como toda técnica, ela é meio
para ações cujo sentido define-se por seus atores e por seus fins.
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