quarta-feira, 24 de julho de 2013

O que se espera de uma Dissertação de Mestrado?

Paulo Roberto de Almeida é um diplomata brasileiro com destacada verve de analista social. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas, foi Ministro-Conselheiro da Embaixada Brasileira em Washington. Tem uma considerável produção e teorização a respeito de temas centrais das ciências humanas. E coloca sobre a mesa o papel da pesquisa e da pós-graduação. Neste sentido, produziu um arguto texto de considerável valor para mestrados, mas também apropriado à leitura dos professores orientadores, sobretudo quando se considera o imprescindível nível da orientação e a qualidade dos trabalhos produzidos. Certa feita disse-me o luso-britânico Stephen Ronald Stoer, atento pesquisador da Sociologia da Educação: 'o mestrado, feito com o rigor necessário, é um passo fundamental que leva a outros passos de progressão na vida acadêmica'. Assim o é. Abaixo, reproduzo o referido texto.


teses e dissertações


Por Paulo Roberto de Almeida

Para responder sinteticamente à pergunta do título, temos de primeiro nos colocar em ambos os lados da equação. Os professores do mestrado certamente esperam muito de uma dissertação: que os alunos façam um trabalho original, bem escrito, “novedoso”, que honre o curso. Quanto aos alunos do mestrado, bem, conforme a velha lei dos comportamentos inerciais (e também aquela do menor esforço), eles desejam, sobretudo, que a dissertação possa ser feita com o mínimo de trabalho possível, rapidamente, sem muita “chateação” do professor, e que a defesa possa se fazer en douceur, isto é, sem grandes sobressaltos em face da banca. Estou exagerando, claro, e talvez sendo maldoso, pois acredito que a maior parte dos professores exerce seu trabalho conscienciosamente, assim como acredito que boa parte dos alunos trabalha seriamente seus projetos e a pesquisa e espera que o trabalho, uma vez concluído, possa lhes trazer algum benefício profissional, um engrandecimento cultural, quando não satisfação intelectual. Voilà, acho que fui mais justo desta vez. Mas, deixando esses subjetivismos de lado, vejamos como poderíamos conceber um processo de preparação, de elaboração e de defesa de uma dissertação de mestrado que mantenha padrões aceitáveis de qualidade intrínseca e que guarde coerência com os propósitos e afinidade de espírito com o mestrado em questão. Eu começaria por sumariar o que me parecem ser os principais pontos a serem observados num processo de médio prazo como é o do mestrado acadêmico. Formularei alguns comentários pessoais em função dos seguintes critérios: objeto, metodologia, desenvolvimento do trabalho, originalidade, finalidade ou “valor social”,  bibliografia e processo de avaliação.

1. Objeto:
O mestrando deve, em pleno acordo com o seu orientador, definir o tema de sua dissertação dentro do campo de estudos coberto pelo mestrado em questão. O que dele se espera é que o objeto do trabalho de pesquisa cubra temas não corriqueiros, ou seja, que ele represente algum esforço próprio do mestrando em abordar seu objeto com alguma elaboração diferente daquela que existe na literatura da área. Não é necessário que o tratamento dado nas fases de pesquisa e de redação da monografia dissertativa ou que o objeto mesmo sejam totalmente originais ou inéditos, mas a dissertação tampouco pode ser uma compilação dos text-books ou dos livros mais conhecidos existentes na área. A elaboração pode ser mais conceitual do que empírica ou de estudo de caso, mas as mesmas regras de cobertura da área e elaboração própria devem valer também para esse tipo de dissertação. Aliás, não existem regras pré-definidas quanto à maneira de se abordar qualquer objeto considerado válido ou pertinente para a dissertação: pode se ter um trabalho relativamente “estático” – de cobertura da legislação ou da situação existente numa determinada área na própria contemporaneidade –, um outro mais “evolutivo” – ou seja, historicamente linear ou recapitulativo –, ou ainda uma reflexão do autor quanto ao que ele considera uma “insuficiência” da literatura ou dos estudos de caso naquela área, que ele decide então completar por uma contribuição original com base em seu interesse pela questão. Todos os tipos de abordagem de um problema preciso são válidos, a prioriO mestrando deve saber, em primeiro lugar, delimitar precisamente o seu objeto, “dialogar” com o tema, problematizando-o, para empregar um neologismo universitário. Não é necessário, em segundo lugar, que o mestrando ofereça todas as respostas que um determinado objeto suscita naquela área de estudos, mas ele deve poder oferecer, ao menos, todas as perguntas pertinentes que se impõem em face do objeto escolhido. Não há, tampouco, necessidade de que o tema seja absolutamente inédito no conjunto dos problemas “dissertáveis” normalmente contemplados num curso de mestrado, mas o mestrando não deve realizar uma mera síntese da literatura disponível. Certos “temas de fronteira” se prestam particularmente para um tratamento de tipo “exploratório”. Como guia “estruturante” da apresentação inicial da problemática, o candidato pode se deixar guiar, onde couber, pelas famosas seis perguntas de todo jornalista: o que, quando, quem, onde, como e por quê? A última pergunta também comporta uma espécie de rationale explicativa: afinal de contas, o esforço de reflexão crítica aparece como um componente indispensável de um curso de mestrado bem sucedido. Ele é a própria razão de ser de qualquer mestrado.

2. Metodologia:
Muitos professores falam de um “marco teórico” como algo “indispensável” ao trabalho do mestrando, e com isso conseguem tirar várias noites de sono do candidato, que adentra na selva selvaggia da bibliografia pertinente – geralmente restrita a poucos “barões” da teoria em ciências humanas, de extração francesa ou alemã – em busca de algum enquadramento teórico para o seu objeto escolhido. A teoria certamente ajuda a pensar, mas ela não deve representar uma camisa de força, do contrário um candidato desprevenido, que pretenda, por exemplo, fazer uma dissertação sobre a informalidade laboral no Brasil, pode se interrogar sobre o que o inefável Foucault teria a dizer sobre isso.  A metodologia é, sobretudo, uma ferramenta analítica utilizada para descrever e discutir o objeto escolhido e a teoria é uma espécie de fundamentação conceitual desse objeto, com algumas generalizações sobre o tema em espécie. Estudos de caso e pesquisa empírica são sempre bem-vindos. Na elaboração metodológica, o candidato deve eventualmente se propor algumas hipóteses de trabalho que serão, no decurso do trabalho, confirmadas ou desmentidas pelo tratamento oferecido ao tema escolhido. Em matéria de estilo, conviria descartar, absolutamente, todos os apostos e predicados que possam ser colados a autores e situações, independentemente da ação em si: ou seja, adjetivos e advérbios de qualidade – este “insigne autor”, “numa excelente análise”, em tal “obra estupenda” – devem ser literalmente escorraçados do texto. Ficam apenas colocações fáticas, objetivas, comedidas...

3. Desenvolvimento do trabalho:
Todo trabalho redacional de caráter acadêmico (e até jornalístico), de qualquer tipo – artigo, dissertação, ensaio, tese, monografia, reportagem –, apresenta, como se sabe, começo, meio e fim (além das fontes). O que quer isso dizer, numa dissertação? No que se refere à sua estrutura formal, ela pode ser dividida, grosso modo, em quatro ou cinco partes: introdução, corpo principal do trabalho, conclusões, bibliografia e, se for o caso, apêndice. Vejamos rapidamente o que cada uma delas deve conter. A introdução, obviamente, deve ser o capítulo inaugural – já estou excluindo aqui essas coisas anódinas, do tipo prefácio, agradecimentos a Deus e à família, louvações aos professores maravilhosos etc. –, antes mesmo do início da Parte I do trabalho, se tal for a escolha. Ela deve conter uma exposição precisa do objeto da dissertação, uma descrição do conteúdo da própria dissertação, eventuais particularidades na abordagem do tema e uma antecipação de quais serão as conclusões do trabalho. Dividida em seções, a introdução pode inclusive conter a metodologia, a discussão conceitual ou o famoso “marco teórico”. Se metodologia e “marco teórico” forem suficientemente importantes no trabalho, eles podem ser objeto de um capítulo à parte, um segundo capítulo inaugural, por exemplo. O corpo do trabalho contém o desenvolvimento dos argumentos do autor. Sua estrutura formal, cela va de soi, pode variar muito. Existem teses e dissertações com mais de uma dúzia de capítulos, eventualmente divididos em duas ou mais partes, assim como existem trabalhos contendo apenas quatro ou cinco capítulos de natureza cronológico-evolutiva ou temático-funcional. A divisão entre partes e capítulos e o tratamento dado pelo autor aos diferentes subtemas do trabalho devem ser discutidos pelo candidato com o seu orientador, para evitar aquele tipo de arranjo disfuncional, com capítulos desiguais entre si, que podem acabar integrando uma cara de princesa a um corpo de Frankenstein. Conclusões são conclusões em qualquer lugar do mundo, apesar de que certos trabalhos ainda ousam discutir novos problemas – e inserir notas de rodapé – nesse único capítulo conclusivo, que nada mais faz senão recolher os resultados parciais dos capítulos ou confirmar as hipóteses iniciais do trabalho, agregando as “descobertas” do autor no decurso da pesquisa e suas reflexões críticas sobre o objeto em causa. Ponto. No máximo, o autor indicará novos problemas ou questões complementares que em sua opinião devam merecer pesquisas adicionais ou até justificar novas pesquisas e eventual tese a respeito. Quanto à bibliografia – devidamente normalizada, assim como as notas de rodapé – e eventual(is) apêndice(s) – para recolher todos aqueles suportes documentais que sobrecarregariam demasiado o corpo do texto – não é preciso se estender sobre isso, pois cada um sabe o que fazer a respeito.

4. Originalidade:
Ninguém está pedindo a reinvenção da roda, ou a “redescoberta” do Brasil, numa “simples” dissertação de mestrado, mas inovação e originalidade, sem glórias e adereços, podem ser extremamente bem-vindos, sobretudo se o autor pretende prosseguir carreira acadêmica ou fazer daquilo a alavanca de uma futura tese. Em todo caso, o trabalho será ainda mais valorizado se ele contiver, além da revisão da literatura corrente e de uma síntese no estrito limite do estado da arte, algum aporte próprio do autor, sua contribuição para uma nova visão daquele velho problema, seus próprios findings com base numa leitura crítica dos autores consagrados. Em outros termos, originalidade ma non troppo. Existe, porém, um elemento essencial e imprescindível nessa questão e ela tem a ver com a originalidade absoluta da produção do dissertando. Os chamados “empréstimos indevidos” devem ser banidos de forma rigorosa da elaboração do texto, sob risco de todo o trabalho ser recusado e o candidato se ver sumariamente eliminado do exercício. Não vou estender-me tampouco sobre essa questão, mas recomendo a leitura de um “manual” do economista Cláudio Djissey Shikida, “Honestidade Acadêmica e Plágio”, que pode ser lido neste link: http://www.pralmeida.org/06LinksColabor/ClaudioShikidaPlagio.doc.

5. Finalidade ou “valor social” do trabalho:
O “valor de uso” da dissertação é o de assegurar o sucesso do seu autor nesse rito de passagem que constitui um mestrado acadêmico. O seu “valor de troca” é representado pelo aproveitamento que ele possa fazer do trabalho fora dos limites estritos – e por vezes estreitos – da academia. Dali deve necessariamente sair um pequeno resumo para ampla divulgação – e agora a Capes passa a exigir depósito eletrônico do trabalho – e um artigo para publicação em veículo especializado. Melhor ainda se dali resultar um livro, mas o “dissertando” não deve necessariamente redigir o texto com essa idéia em vista. Em todo caso, o autor deve dialogar com um público mais vasto. A legibilidade laica de um trabalho desse tipo deve estar sempre presente no momento da redação do trabalho, por mais técnico ou especializado que ele possa parecer (e ser). Aliás, durante a própria preparação do trabalho, na fase de pesquisa, ou ainda durante os créditos do mestrado, o candidato já deve ser orientado a preparar capítulos de conteúdo substantivo como se fossem artigos “publicáveis”, o que já representa uma etapa na “valorização social” do seu trabalho de pesquisa. O autor deve poder sobreviver a essas fases árduas que os americanos chamam de ABD (all but dissertation), mas o trabalho também deve ter o mérito de “sobreviver” ao próprio autor, sob a forma de um ou mais artigos ou, hopefully, um livro comercial.

6. Bibliografia:
“Professor, o que eu preciso ler primeiro?” Essa pergunta, aceitável na graduação, já não parece mais cabível no mestrado. A apresentação de um projeto de mestrado supõe que o candidato já tenha definido pelo menos uma bibliografia inicial e elementar. Mas, claro, o mestre está ali para isso mesmo: indicar autores e títulos que lhe parecem ser obrigatórios na pesquisa e discussão daquele problema.  A bibliografia deve ser progressivamente construída pelo próprio candidato, e não apenas na base do Google e manuais da área: pesquisas em bibliotecas restam indispensáveis para qualquer trabalho bem feito. Quanto à incorporação da literatura disponível no próprio trabalho, algum meio termo é possível. Assim como certos projetos possuem mais bibliografia do que idéias claras, certas dissertações deixam a desejar em matéria de cobertura bibliográfica. Por certo que uma dissertação não precisa esgotar todo o campo da pesquisa corrente, mas a revisão da literatura relevante aparece como indispensável a um bom trabalho do gênero. Autores estrangeiros deve entrar em função do mérito próprio da discussão, e não porque  sejam mais “sapientes” que os nacionais – na maior parte dos casos eles de fato o são –, mas, também porque são mais numerosos, como se vê numa pesquisa do tipo Google Scholar (não esquecer, obviamente, de pesquisar com as palavras-chave em inglês, e não apenas em português). Por fim, apliquem, mesmo a contragosto, as normas da ABNT...

7. Processo de avaliação:
Entre o projeto e a finalização da dissertação deveria haver, idealmente, um exame de qualificação, isto é, uma avaliação intermediária para verificar se o candidato está raciocinando corretamente. Pode ser o capítulo central da obra – ainda em versão preliminar – ou uma apresentação geral do trabalho, em sessão na qual o candidato pode inclusive externar suas dúvidas, angústias e outros conflitos bibliográficos. É provável que os professores presentes façam tantas exigências e sugiram tantos títulos que o pobre candidato saia da sessão ainda mais angustiado, mas algo ele sempre vai aprender: a não
pretender abarcar o mundo da próxima vez... Pela lei dos rendimentos decrescentes, tudo tende a ficar mais difícil se o candidato delonga em demasia o exercício de redação. Este precisa ser constante, regular. Numa banca de doutoramento, na maior parte das vezes, o candidato sabe mais que os examinadores sobre o seu objeto de pesquisa, o que não é o caso nos mestrados. As palavras-chave nessas ocasiões são: confiança em si mesmo e segurança nas expressões.Tendo cumprido todas as etapas do ritual, o candidato se descobre então um feliz sobrevivente de uma navegação que costuma durar de dois a três anos (com recifes e algumas sereias pelo caminho). Chegando finalmente na sua Ítaca, ele pode descansar por mais alguns dias, antes de retomar o seu périplo. Até ali ele trabalhou pela dissertação; a partir dali, o novo mestre poderá colocar a dissertação a trabalhar por ele...


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Jeitinho e jeitão:uma tentativa de interpretação do caráter brasileiro

O pernambucano Francisco de Oliveira, ou simplesmente Chico de Oliveira, é, por certo, um dos principais intelectuais brasileiros. Dono de uma erudição entrecortada de ironia, o Professor Emérito da USP já definiu o modelo político-econômico brasileiro como um ornitorrinco - 'esse bicho que não é isso nem aquilo, um animal improvável na escala da evolução'. Agora, que muitos já o imaginavam retirado por conta da aposentadoria, ele tem dado mostras que está longe disso. Descortinou uma nova linha de investigação em um terreno que diversos cientistas sociais têm recusado, dada a dimensão da empreitada. Tendo Nobert Elias em perspectiva, Chico de Oliveira anda debruçado sobre a tarefa de esboçar uma interpretação a respeito do caráter do brasileiro. Daí resulta, por exemplo, o texto a seguir. 


Por Francisco de Oliveira 

Norbert Elias se destaca entre os modernos clássicos das ciências sociais por não recusar a investigação sobre o caráter das sociedades. É o que ele faz, brilhantemente, no seu derradeiro livro, Os Alemães, publicado em 1989, um ano antes de morrer, já nonagenário. Ali ele se pergunta, diretamente e sem rodeios, o que fez com que a Alemanha estivesse no coração das grandes tragédias modernas, a Primeira, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto.
Tinha condições subjetivas para tanto: viveu uma experiência dolorosa como soldado na Primeira Guerra Mundial; judeu, teve de se exilar da Alemanha durante o nazismo; sua mãe foi trucidada em Auschwitz. Norbert Elias tinha também credenciais intelectuais para tentar explicar como a nação que sintetizou a era das Luzes, a pátria de Kant, Hegel e Goethe, tenha desenvolvido a indústria do extermínio: estudou medicina e psicanálise, doutorou-se em filosofia e foi professor de sociologia na Inglaterra.
Para ele, o desenvolvimento tardio do capitalismo na Alemanha, a ausência de uma revolução burguesa no país, a unificação nacional sob o tacão militar de Bismarck, o culto à organização, do qual o militarismo é o emblema mais ostensivo – tudo isso criou um caráter alemão. Esse caráter distingue a sociedade germânica de todas as outras, mesmo as europeias. Para Elias, não são apenas circunstâncias históricas que explicam o surgimento de Adolf Hitler. Isso é uma meia-verdade. As ideias monomaníacas que engendraram a bestialidade fascista talvez não tivessem acolhida sem a existência prévia do caráter alemão, nos termos definidos por Norbert Elias.
Os cientistas sociais costumam recuar ante tal tipo de análise. Têm receio de serem julgados preconceituosos. E, talvez, de se virem excluídos da interlocução com a ciência social alemã, uma das mais brilhantes fontes do pensamento filosófico-social em todos os tempos.
Mas é por um caminho “norbertiano” que pretendo investigar o caráter brasileiro. Penso que o peculiar modo nacional de livrar-se de problemas, ou de falsificá-los, constitui o famoso jeitinho brasileiro.
Os clássicos do pensamento social brasileiro têm dificuldade em lidar com a questão do caráter nacional, que amalgama o subjetivo e o objetivo. Salvo, evidentemente, Gilberto Freyre. Mas o autor de Casa Grande & Senzalamascarou a sua investigação com a nostalgia de um tempo que nunca existiu, e com o enaltecimento da suposta – e ilusória – capacidade da metrópole lusitana em se adaptar aos trópicos coloniais.
Por isso, ele enxergou no Nordeste açucareiro, a primeira região importante na formação do Brasil – que o historiador Evaldo Cabral de Mello definiu como“açucarocrata” –, uma dominação “doce”. O sociólogode Apipucos construiu uma hipótese que serve de justificativa ideológica da sociedade decorrente da escravidão. A sua interpretação é, ela própria, uma das vertentes do jeitinho brasileiro.
Sérgio Buarque de Holanda enfrentou melhor a questão. O seu “homem cordial” – para quem as relações pessoais e de afeto (para o bem ou para o mal) se sobrepõem à impessoalidade da lei e à norma social – é a própria encarnação do jeitinho brasileiro.
Caio Prado Júnior não ofereceu nenhuma contribuição sobre o assunto. Embora o seu marxismo fosse criativo e original, ele ficou prisioneiro da objetividade, o mantra que impediu gerações de marxistas, aqui e alhures, de investigar o caráter das nações.
Antonio Candido, nosso clássico moderno, tratou do tema em “Dialética da malandragem”, o poderoso ensaio sobre Memórias de um Sargento de Milícias, romance de Manuel Antônio de Almeida que se passa no Rio de meados do século XIX. Ainda que se aproxime decididamente do jeitinho, faltou ao ensaio, a meu ver, um pouco de irreverência, para que ele correspondesse à ginga do malandro carioca. Candido respeita tanto o brasileiro pobre que aborda as figuras populares com uma reverência quase mística. Para ele, nossa sociedade é tão obscenamente desigual que qualquer crítica às classes dominadas não passa de preconceito – mais um – dos ricos.
Outros autores, como Roberto DaMatta, vão diretamente à problemática do caráter nacional. É o que ele faz em Carnavais, Malandros e Heróis. Não é pela vertente de DaMatta, contudo, que pretendo chegar lá. Busco desenvolver uma investida mais nitidamente materialista, mesmo sabendo que o abandono da investigação antropológica possa implicar empobrecimento da análise.
Eis a tese: o jeitinho é um atributo das classes dominantes brasileiras que se transmitiu às classes dominadas.
Conforme Marx e Engels de A Ideologia Alemã, as ideias e os hábitos das classes dominantes transformam-se em hegemonia e caráter nacional. No Brasil, a classe dominante burlou de maneira permanente e recorrente as leis vigentes, sacadas a fórceps de outros quadros históricos. O drible constante nas soluções formais propicia a arrancada rumo à informalidade generalizada. E se transforma, ao longo da perpétua formação e deformação nacionais, em predicado dos dominados.
Essa situação, que é social, se configura no malandro, o especialista no logro e na trapaça. O malandro, com sua modernidade truncada, foi primeiro o carioca. E esse carioca era geralmente pobre, mas não miserável. 
Tinha “bossa” quem dominava a aptidão para fugir ou escapar das soluções formais. Bossa que é a expressão do jeitinho, a maneira de ganhar a vida sem se submeter aos ditames da norma, de conviver sem ser reconhecido como fora da lei. A moderna música popular brasileira, nascida no Rio, com toda razão foi chamada de bossa nova. Ela foi um jeitinho de escapar das convenções musicais à la Vicente Celestino,cópia falsa do grande canto lírico italiano. E também um jeitinho de incorporar as malandragens do samba – de origem africana e escrava – ao universo das elites. 
burla das classes dominantes brasileiras às normas seria atávica? Meu horror à burguesia (esse sim quase totalmente atávico) – cujo retrato acabado foi a açucarocracia pernambucana, perdulária e arrogante – tenderia a confirmar que o jeitinho é um caso de mau-caratismo, um dado subjetivo. Mas prefiro a trilha aberta por Norbert Elias: a burla é uma forma de adotar o capitalismo como solução incompleta na periferia do sistema. Incompleta porque o capitalismo trouxe para cá a revolução das forças produtivas, mas não as soluções formais da civilidade. As classes dominantes então “se viram”, dão um jeitinho para garantir a coesão de um sistematroncho e, comme il faut, a exploração.

 Sem querer atribuir tudo aos nossos colonizadores, a semente do jeitinho já vicejava na irresolução que Portugal dá às questões de administração e governo da jovem – e enorme – colônia. Não dispondo nem de homens nem de recursos capazes da façanha de fazer a minúscula cobra engolir o enorme elefante, Portugal opta pela solução capenga das capitanias hereditárias. Na mesma época, tendo criado um novo caminho para o Oriente com Vasco da Gama, dom Manuel, o Venturoso, emprega até o fim os modestos recursosportugueses na conquista da Índia, e só consegue estabelecer relações comerciais em pontos isolados do sul do continente.
No Brasil, as capitanias são entregues a fidalgos, alguns com recursos ínfimos e a maioria quase sem nenhum capital. O resultado da colonização pelo método das capitanias foi pífio, à exceção de duas ou três. O fracasso na Índia é do mesmo porte, senão maior: Lisboa torna-se a meca das especiarias orientais, mas Portugal nunca ocupou a Índia. Sequer conseguiu com que a língua portuguesa tivesse peso expressivo entre as centenas de dialetos do país. A lembrança lusa mais forte ficou restrita a Goa e Macau. 
oltemos ao caso do Rio, lembrado a propósito da malandragem e da bossa nova. Foi Juscelino Kubitschek, outro exemplar do homem cordial, quem jogou a pá de cal nas pretensões modernas do Rio: retirou-lhe a centralidade de capital e não botou nada no lugar. Incapaz de resolver os problemas cariocas, que já se apresentavam em grau superlativo, deu um jeitinho e transferiu a capital para Brasília, nos ermos do Planalto Central.

Espanta-se quem anda hoje pelas ruas da cidade que antigamente ostentava sua modernidade: o Rio ficou a cara do Brasil. A despeito do oba-oba em torno do renascimento carioca, basta observar ao redor do Palácio do Catete, antiga residência dos presidentes da República. O bairro que se oferece à vista exibe mediocridade urbana, pobreza ostensiva e tráfico de crack.
 A fantasia da mulher carioca, linda e elegante (e que de fato disputava o topo da beleza com mulheres de outras nacionalidades, com a vantagem da miscigenação), deu lugar à imagem de mulheres – e homens – que andam com sandálias surradas e se vestem pobremente. Como não perceber aí sinais de uma modernidade truncada?
No caso de Juscelino e das classes dominantes, a mudança da capital foi um “jeitão” para deslocar um problema: criar uma nova fronteira para a expansão capitalista, catapultada pela indústria da construção civil. O jeitinho foi fazer isso por meio dos candangos, trabalhadores informais, depois abandonados à própria sorte, “sem lenço e sem documento”, como cantaria Caetano Veloso, ele próprio, conforme a análise de Roberto Schwarz, um cultor do jeitinho transformado em “verdade tropical”. O Brasil é assim, defendeCaetano, a esquerda é que não o entende. 
a segunda metade do século XIX, o café liderava a expansão econômica. Não só no Vale do Paraíba, em São Paulo ou mesmo no Brasil: o café era a mercadoria mais importante do comércio mundial. Só foi desbancado dessa posição, pelo petróleo, nos anos 40 do século XX. Mas o início da expansão do café se deu sobre o lombo dos escravos.

Qual foi o jeitão da classe dominante, no caso os cafeicultores, a partir do fim do escravismo, em 1888? Em vez de incorporar os ex-escravos à cidadania, fornecendo-lhes meios de cultivar a terra e se incorporarem ao trabalho regular, foram importar a mão de obra europeia, transformando São Paulo na maior cidade italiana do mundo. Malandramente, cheios de bossa, contornaram os problemas do fim do escravismo e se desresponsabilizaram pelos ex-escravos, de novo, como cantaria Caetano, pessoas “sem lenço e sem documento”.
Surgia o trabalho informal, quer dizer, sem formas. O jeitão da classe dominante obrigou os dominados a se virarem por meio do jeitinho do trabalho ambulante, dos camelôs que vendem churrasquinho de gato como almoço, das empregadas domésticas a bombarem de Minas e do Nordeste para as novas casas burguesas dos jardins Europa, América, Paulistano. Etambém para os apartamentos das elegantes – e já medíocres – madames de Copacabana, Ipanema e Leblon, propiciando o vexame bem brasileiro de criados negros, vestidos a rigor, servindo suco de maracujá a demoiselles que se abanavam como se estivessem nos salões parisienses.
Lá em cima, no Pernambuco açucarocrata, Gilberto Freyre podia criar então a nossa versão de E o Vento LevouCasa Grande & Senzala é a mais formidável denúncia do estupro como formador da nacionalidade, mas visto de um ângulo nostálgico. Ainda não era o tempo das madames edemoiselles, mas o dos sinhôs e das sinhás e sinhazinhas.
O mais clássico dos clássicos do pensamento social brasileiro – Antonio Candido, nossa referência moral e intelectual, considera Casa Grande & Senzalao livro mais importante das ciências sociais brasileiras – é também um pastiche. Sob determinado aspecto, ele é quase um deboche do jeitão de irresolução do problema da mão de obra e do seu rebaixamento às relações “adocicadas” – aquelas em que o filho do senhor transforma o negrinho, companheiro de travessuras, em cavalo vivo. Eis aí a lembrança mais festejada da infância dos senhores. Pais e mães da Casa Grande ensinavam aos filhos o jeitinho doce de ensinar e se divertir ensinando. Os filhos dos negros, por sua vez, aprendiam quem estaria sempre por cima, docemente... 
etúlio Vargas, o estancieiro gaúcho que liderou a Revolução de 1930, tentou formalizar o jeitinho para acabar com o jeitão. Vale dizer: buscou civilizar a classe dominante para que o proletariado existisse. Criou uma legislação trabalhista avançada, mas a expansão capitalista seguiu desobedecendo as regras e, junto com os empregos formalizados pela nova legislação, a avalanche do trabalho informal engolfava todas as relações sociais.

A informalidade é a forma, o jeitinho de substituir as relações racionais e obrigatórias pela intimidade, como já demonstrou Sérgio Buarque. Mas essa substituição, assim que se apresenta o primeiro conflito, mostra sua outra face: a informalidade se converte no rigor mais severo, no apelo à arbitrariedade e não raro em exibições de crueldade. O senhor de engenho que se deitava com sua mucama era o mesmo que a castigava no tronco quando alguma falta, suposta ou verdadeira, lhe ofendia a propriedade.
Diga-se logo, para não nos autocaricaturarmos com nosso eterno “complexo de vira-lata” (apudNelson Rodrigues), que Thomas Jefferson, o grande paladino da liberdade, também estuprava suas escravas. A diferença, essencial para distinguir o jeitinho de outras práticas de dominação, é que Jefferson deu o seu nome à sua descendência negra, coisa que nenhum dos nossos senhores de engenho chegou a fazer.
Em Pernambuco mesmo, as fábricas da Paulista, que chegaram a ser o maior complexo industrial têxtil da América Latina, eram propriedade dos Lundgren. E o membro da família que tocava a fábrica era um sueco que se deitou com 300 das suas operárias. Ele deixou uma prole enorme, mas não há notícia de pobres com sobrenome Lundgren. No máximo, na falta de sobrenome, davam-se aos negros escravos nomes de santoscatólicos. Daí a proliferação de sobrenomes “dos Santos” e de toda a corte católica dos altares.
Antes de Sérgio Buarque, Machado de Assis, ele mesmo um mulato, portanto conhecedor do truque do jeitinho, fez com que Dom Casmurro seja até hoje o retrato mais notável da classe dominante brasileira: “Por fora, bela viola, por dentro pão bolorento”, como se diz no popular. Bentinho é liberal por fora e escravista por dentro. Machado usou um jeitinho literário para legar um formidável enigma, ao qual já se dedicaram milhares de páginas: Capitu traiu mesmo ou foi vítima de uma vituperação de classe? Maria Capitolina, a Capitu, era mais pobre que o seu marido liberal, Bentinho. E, com seus “olhos de ressaca”, provavelmente tinha sangue negro.
Nascido inicialmente das contradições entre uma ordem liberal formal e uma realidade escravista, o jeitinho transformou-se em código geral de sociabilidade. 
ecordo um caso pessoal, passado há muito tempo. Eu trabalhava com Celso Furtado (rigorosamente antijeitinho), que recebia um diretor do Banco Interamericano de Desenvolvimento, por sinal conterrâneo seu. Este, vendo-mepor perto, e julgando que eu não era parte da conversa, pediu-me água. Pediu a primeira, a segunda e a terceira vez. Fui obrigado a dizer-lhe que não confundisse gentileza com servilismo, e que da próxima vez ele mesmo se servisse. Não ocorria àquele senhor que alguém que não fosse da sua grei pudesse tomar parte de uma conversa com altos representantes da banca interamericana.

 A origem do jeitinho, assim como a da cordialidade teorizada por Sérgio Buarque, se explica pela incompletude das relações mercantis capitalistas. Parece sempre que as pessoas estão “sobrando”. Elas são como que resquícios de relações não mercantis, não cabem no universo da civilidade. E às pessoas que sobram pode ser pedido qualquer coisa, já que é obrigação do dominado servir ao dominante.
Qualquer reunião brasileira está cheia de batidinhas nas costas na hora do cumprimento, impondo logo de saída uma intimidade que é intimatória e intimidatória. Um dos cumprimentos mais característicos de Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, é bater com as costas da mão na barriga dos interlocutores. Mesmo em encontros formais, o primeiro gesto de Lula ao se aproximar de qualquer pessoa é tocar-lhe a barriga.
A matriz desses gestos encontra-se evidentemente no longo período escravagista.Nele, o corpo dos negros era propriedade, podia ser tocado e usado. O surpreendente é que esses gestos e costumes tenham persistido ao longo de 100 anos de vigência de um capitalismo pleno.
O escravismo e a escravidão não explicam inteiramente a “longa duração” da informalidade generalizada e dos hábitos que a acompanham. Os Estados Unidos tiveram um sistema escravista que chegou até a organizar fazendas de criação de negros. A ruptura com o escravismo custou à nação norte-americana uma guerra civil que deixou marcas até hoje. Mas o jeitinho não foi o expediente que usaram para superar os problemas colocados pelo capitalismo que avançava.
Aqui, o jeitinho das classes dominantes se impôs na abolição da escravatura. Primeiro veio a Lei do Ventre Livre: garotos e garotas negros eram libertados em meio à escravidão. Mas como inexistia a perspectiva de terem terra, emprego ou salário, a libertação não lhes servia para quase nada.
Depois veio a Lei dos Sexagenários. Aos 60 anos, os negros que ainda estivessem vivos eram libertados. Ora, já se sabia que a vida média de um escravo não alcançava os 40 anos. Como mostrou Luiz Felipe de Alencastro em O Trato dos Viventes, depois de décadas de labuta no eito, o consumo do trabalho pelo capital não era uma metáfora: o negro era um molambo de gente, e não um homem livre, mesmo quando libertado pela Lei dos Sexagenários.
O que parecia cautela e previsão era, naverdade, o jeitinho (e o jeitão) em movimento. Gradualmente, até a chamada Lei Áurea, a escravidão persistiu. Isso criou uma superpopulação trabalhadora que o sistema produtivo não tinha como incorporar. Com a industrialização, tão sonhada pelos modernos, o problema se agravou. Tendo que copiar uma industrialização dematriz exógena, que tende sempre à economia do trabalho, os excedentes populacionais cresceram exponencialmente. 
ssim, o chamado trabalho informal tornou-se estrutural no capitalismo brasileiro. É ele que regula a taxa de salários, e não as normas trabalhistas fundadas por Vargas. A partir daí todas as burlas são permitidas e estimuladas. A pergunta que um candidato a emprego mais ouve é: com carteira ou sem carteira? O funcionário com carteira resulta em descontos para a Previdência. Ou, se o salário for um pouquinho melhor, até para o Imposto de Renda. A resposta do candidato ao emprego é óbvia: sem carteira.

Quando o trabalhador ou trabalhadora que tem consciência dos seus direitos recusam o emprego sem carteira, às vezes escuta“malandro, não quer trabalhar”.
Em qualquer setor, em qualquer atividade, o jeitinho se impõe. O executivo de terno italiano de grife, o apresentador da televisão e a atriz de um musical não são assalariados. São pessoas jurídicas, PJs, unicamente para que empresas paguem menos impostos. Advogados, dentistas e prestadores de serviços oferecem seus préstimos com ou sem recibo, e esse último é mais barato. Bancários, telefonistas, vendedores e outras tantas categorias viram suas profissões periclitar: eles são agora atendentes de call centers, terceirizados por grandes empresas.
O jeitinho é a regra não escrita, sem existência legal, mas seguida ao pé da letra nas relações micro e macrossociais. Está tão estabelecido, é tão natural que estranhá-lo (hoje menos do que ontem, reconheça-se) pode ser entendido como pedantismo, arrogância ou ignorância: “Nego metido a besta”, é a sentença. A não resolução da questão do trabalho, o seu estatuto social, é no fundo a matriz do jeitinho. Simpático, ele é uma das maiores marcas do moderno atraso brasileiro.
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sexta-feira, 19 de julho de 2013

A reveladora memória dos ‘passos perdidos’: intermitências do tempo-existência

Abaixo, o meu texto da edição do Outono (europeu) da Revista Lusitana A Página da Educação. 


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Straight Up: Oslo em torno do Astrup Fearnley Museum of Modern Art ; Cameron R Neilson



Ivonaldo Leite
O caminhante constitui, em relação à sua distância, um passo próximo e um ‘distante’, um cá e outro lá. Como assinalou Michel de Certeau, em L’invention du quotidien, pelo facto de os advérbios cá e lá serem precisamente, na comunicação verbal, os indicadores da instância locutora, deve-se acrescentar que essa localização (cá-lá) necessariamente implicada pelo ato de andar e indicativa de uma apropriação presente do espaço por um ‘eu’ tem igualmente por função implantar o outro relativo a esse ‘eu’ e instalar assim uma articulação conjuntiva e disjuntiva de lugares. A caminhada afiança, respeita, lança suspeita, arrisca, transgride, etc., os percursos que ‘fala’.
Passos dados, mas não apenas no sentido estrito de lançamento no espaço físico. Trata-se da existência e do transcurso num contexto, num determinado cotidiano, englobado pelo permanente devir da esfera social. O mundo não existe somente como forma de um receptáculo físico no qual nos encontramos, ele é estruturado por padrões de sociabilidade, na medida em que a repetição da ação configura a estrutura, quer dizer, ele é mundo social.  Mas, à Heidegger, pode dizer-se que a vida social é o império do impessoal, é o âmbito onde o ‘todos nós’ e o ‘ninguém’ são confundidos, visto que o parâmetro que norteia o comportamento é o que se pensa ‘no geral’.
A vida em sociedade é marcada por uma ‘noção obscura’ de convivência, em que não predomina a singularidade do sujeito, mas, sim, prevalece a padronização de comportamentos, um ‘impessoal sem rosto’, algo como um ‘ninguém’ que não se identifica com esta ou aquela pessoa. Os comportamentos planejados e esperados, frases de circunstâncias, palavras ditas (por vezes, falsas) tão-somente para que não predomine o incômodo silêncio, etc., são marcas características do que, não raramente, o ‘teatro’ da vida social requer.   
Daí não se tem outra coisa que não a inautenticidade do vivido no ‘espaço publico’ do quotidiano. O ‘encobrimento’ do ser. Assim, uma analítica da existência não prosperará caso se limite a repisar a positividade do vivido. Terá de adotar uma perspectiva inversa. A dimensão positiva emergirá, mas através do exame negativo e inquieto dos constituintes da existência. E assim põe-se a questão da angústia, e põe-se porque ela não é somente um fenômeno psicológico, que diz respeito apenas a um ente, mas sim a sua ‘extensão’ é ontológica, na media em que nos remete à totalidade da existência como ser-no-mundo. Novamente com Heidegger, podemos dizer que a angústia começa a se apresentar quando, em meio a nossas ocupações quotidianas, somos tomados por um certo tédio. Começamos a ficar fartos de entes que nos rodeiam e não encontramos em qualquer outro ente suporte para nos livrar desse tédio. Até chegamos a acreditar que precisamos buscar mais contacto com as coisas do mundo, para assim nos ocupar - ao invés de nos preocupar -, e então sairmos da estranha indiferença na qual nos atira o mundo. Contudo, com isso, ao desse modo procedermos,  caímos mais ainda nos abismos da angústia.
Quando somos indagados sobre o motivo da nossa angústia, geralmente segue-se a resposta: ‘não é nada’. Ou seja, sente-se a angústia, mas não se identifica o objeto dela. Todavia, com a angústia nos remetendo à totalidade como ser-no-mundo, ela é um fenômeno que coloca a existência humana diante de si mesma, abrindo a possibilidade de retirar o ser da sua decadência e revelando a autenticidade e inautenticidade como possibilidades no modo de estar no mundo.
A esse respeito, um exemplo ilustrativo pode ser buscado no romance O Muro, de Sartre, que tem como cenário uma prisão espanhola na altura da guerra civil.  Pablo Ibbieta, personagem principal, na noite que antecede a sua execução (que não chega a acontecer), na angústia do perecer, faz uma retrospectiva da sua vida e, ao cabo da mesma, chega a uma clareza tal sobre a sua existência que o leva a dizer: "no estado em que me achava, se viessem me avisar que eu poderia voltar tranqüilamente para casa, que a minha vida estava salva, ficaria indiferente; algumas horas ou alguns anos de espera dá na mesma, quando se perdeu a ilusão de ser eterno". Reveladora memória do tempo passado. Dos passos dados. Consciência dos ‘passos perdidos’. Intermitências do tempo-existência.
O passo próximo e o passo distante fazem o caminhante ‘deslizar’ pelo tempo, em passos incertos, mas insistentes na busca de rumos. A cansada existência. De modo semelhante à perspectiva surrealista, a memória dos passos perdidos transmuta-se numa operação alquímica que perpassa as enigmáticas sombras refletidas no espelho do pensamento.


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terça-feira, 16 de julho de 2013

Sustentabilidade e Educação em debate: Carlos Rodrigues Brandão na UFPB

No âmbito de um Projeto coordenado pelo Prof. Antonio Alberto, sob os auspícios do CNPq, ocorrerá, nos dias 30 e 31/07, o Encontro de Educação do Campo e Práticas Agroecológicas (ENECAPA), na UFPB/Campus do Litoral Norte. Presença do Prof. Carlos Rodrigues Brandão, nome que é uma referência histórica da Educação Popular no Brasil e na América Latina. Estará presente em dois momentos do evento: proferindo a conferência de abertura, sob o título 'Educação: Antigos e Novos Desafios frente à Sustentabilidade Sócio-econômica e Ambiental; e no segundo dia, numa 'roda de diálogo' organizada pela Coordenação de Educação Popular (COEP)/Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (PRAC)/UFPB. Abaixo, a programação completa. 

Carlos Rodrigues Brandão (direita) e Rubem Alves: campo, sustentabilidade e a busca de outra educação 


Dia 30/07
9h00 – Abertura
9h30 – Conferência
Educação: Antigos e Novos Desafios frente à Sustentabilidade Sócio-econômica e Ambiental
Conferencista: Prof. Dr. Carlos Rodrigues Brandão (Universidade de Campinas - Unicamp/SP)

14h00
Apresentação de experiências envolvendo educação e práticas agroecológicas: A Experiência da RESAB (Rede de Educadores do Semi-árido Brasileiro)

15h00 - Apresentação de experiências envolvendo educação e práticas agroecológicas: A Experiência do Pólo Sindical da Borborema

16h00 - Apresentação de experiências envolvendo educação e práticas agroecológicas: A Experiência do Projeto Formação de Agricultores Familiares para Sustentabilidade Sócio-econômica e Ambiental

Dia 31/07
09h00 – Conferência
Agroecologia e Desenvolvimento: Concepções e Práticas
Conferencista: Prof. Dr. Alexandre Eduardo de Araújo (Universidade Federal da Paraíba)
                       
14h30
Roda de Diálogo: Educação Popular e Extensão
(Diálogo entre o Professor Carlos Rodrigues Brandão, extensionistas e representantes da Coordenação de Educação Popular/Pró-reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários - PRAC)

16h00
Mesa de encerramento do Encontro: Reflexões sobre as Perspectivas da relação entre Educação do Campo e Agroecologia
(Intervenções coletivas, em forma de balanço do Encontro; presença da representação do Projeto Formação de Agricultores Familiares na Perspectiva da Sustentabilidade Sócio-econômica e Ambiental – Mesa coordenada pela discente Ana Maria Gomes, do Curso de Pedagogia)

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Armadilhas para Dilma

Muita tinta tem corrido a respeito das manifestações no Brasil. Muitos analistas em programas televisivos também têm procurado colocar em realce o central da questão. Mas, aqui e alhures, as abordagens padecem de consistência. Falta algo, e, por vezes, sobram equívocos de análise.  O texto abaixo, da lavra da Profa. Maria Franco (USP), é uma exceção a isso. Vale a pena a leitura. 




Maria Sylvia Carvalho Franco 

Os atuais movimentos de massa no Brasil não se devem apenas a recentes demandas sociais, econômicas ou políticas. Essa atribuição toma o resultado pela gênese dos eventos. Estes determinam-se no interior de um arraigado sistema produzido em nossa história.
Destaca-se na origem da sociedade brasileira a ex­ploração de riquezas baseadas na escravidão moderna, instituição constitutiva do capitalismo, articulada às mudanças socioeconômicas, inclusive o trabalho livre, em curso na Europa. Não por acaso, J. Locke deu forma teórica às práticas capitalistas, fundamentou o pensamento liberal e legitimou a escravidão moderna, alicerçando-os no direito natural e individual à propriedade: só o proprietário pertence ao gênero humano. Os sem posses convertem-se em inferiores, justificando-se o seu jugo e a pena de morte para quem atenta contra a propriedade, "ipso facto", contra a vida e a liberdade.
A violência do estado de natureza permeia a sociedade civil, garantindo --pela recusa de sua humanidade-- a exploração do trabalhador livre e do escravo. Na vertente moderna e cristã exposta por Locke, o escravo está expulso do estado de natureza, segregado da religião, excluído da sociedade civil.
Entre nós, esse elenco articulou-se ao absolutismo português gerando, em nossa concretização do capitalismo, ampla rede de controle social arbitrário e economia espoliativa. Por séculos, mudanças decisivas ocorreram entre dominantes e dominados, mas subsiste a essência dessa ordem: a produção de lucro. Distraída desse fato, Dilma caiu em ciladas, algumas embutidas em sua própria ideologia.
A primeira delas foi acatar o esquema de poder construído por seu antecessor, que esbanjou ardis retribuindo os provedores de suas campanhas políticas e produziu, com astuciosa propaganda, o mito do herói em um país próspero e venturoso. Com essa herança, Dilma caminhou para o inferno ao cortar benesses. Perturbou o setor financeiro ao baixar juros e introduzir impostos para o capital externo, provocando fuga desses bens, elevação do câmbio, desequilíbrio no mercado.
Crente no "papel histórico da burguesia nacional", cortou impostos, concedeu crédito copioso, subsidiou o consumo, supondo que os ganhos acrescidos se transformariam em produtividade. E veio a desaceleração industrial, o "pibinho", as aventuras com recursos do BNDES e a volumosa remessa de lucros. Jogou com a inflação visando lastrear o desenvolvimento, mas conseguiu carestia e queda no consumo, suposto lastro para a ascensão social, produtor de nova classe média, na verdade inexistente.
Classes não se formam com artifícios de propaganda e participação rapsódica no mercado. Exemplar dessa falácia é o Minha Casa, Minha Vida. O banco oficial não empresta os recursos iniciais para construção, apenas ressarce o montante previamente aplicado pelo candidato, quantia que lhe é impossível amealhar; as prestações excedem os bolsos da família e é exorbitante o preço final do imóvel. Diante do impasse, o bancário aconselha o cliente a procurar um construtor "acostumado a trabalhar com a Caixa", vale dizer, com a empreiteira favorecida pelo governo.
Dilma tropeçou no rijo sistema de privilégios e troca de favores. Nessa faina, o empresariado conta com lobbies operando no Congresso, influenciando os partidos oligarquizados e a burocracia estatal, com apropriação privilegiada e uso irresponsável dos dinheiros públicos.
Contra esses interesses destrutivos da imensa riqueza nacional, ergue-se a massa dela despojada. A revolta contra as tarifas de transporte não é a gota d'água, o estopim que acendeu o povo, mas parte importante da experiência diuturna de pessoas roubadas de seus direitos. Elas têm consciência de que preços maiores visam favorecer os concessionários que financiam eleições e ocupam cargos chaves na administração pública.
Aqui, é nulo o perigo de populismo tarifário e é inválida a alegação de que a estabilidade dos preços possa bloquear investimentos e, "ipso facto", piorar o serviço. Esse automatismo não existe; o alvo é o lucro fácil, isento de contrapartida.
O peso desse arcabouço torna irrisória a assertiva de que a atual rebelião seria difusa, alheia a partidos, carente de alvos precisos. Nebulosa apolítica, seria a expressão do fortalecimento ("empowerment") do indivíduo, sujeito da consciência e dos atos sociais, gerado no bojo da internet.
Trata-se de versão requentada da secular ideologia liberal, em que o indivíduo é constitutivo do universo. O poder de seres isolados --hoje como antes-- anula-se diante dos monopólios estatais da força física, da norma jurídica e dos impostos. As massas assustam e um recurso para aplacá-las seria dissolvê-las em seus átomos. Mais vale compreender o sentido desses movimentos.
Eles não poderiam conjugar-se a partidos, por serem fonte da corrupção que recusam; a liderança não poderia ser hierárquica, pois são contra a oligarquização da política; suas demandas são exatas, referentes a direitos que lhes são roubados e pelos quais pagam tributos; não querem "mais", como reza a propaganda, querem o imprescin­­dível. Nem são amorfos: as redes sociais ensejam a organização dos grupos e atividades.
Como toda técnica, ela é meio para ações cujo sentido define-se por seus atores e por seus fins.
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terça-feira, 9 de julho de 2013

'Onde está o conhecimento que perdemos na informação?'

Abaixo, mais um artigo instigante de Thomaz Wood Jr., denominado 'pensar dói', que nos faz lembrar as palavras de T. S. Eliot: onde está a vida que perdemos na existência?/Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?/Onde está o conhecimento que perdemos na informação? 



Thomaz Wood Jr
Em texto publicado no New York Times, Neal Gabler, da Universidade do Sul da Califórnia, argumenta que vivemos em uma sociedade na qual ter informações tornou-se mais importante do que pensar: uma era pós-ideias. Gabler é o autor, entre outras obras, de Vida, o Filme (Companhia das Letras), no qual afirma que, durante décadas de bombardeio pelos meios de comunicação, a distinção entre ficção e realidade foi sendo abolida. O livro tem o significativo subtítulo: Como o entretenimento conquistou a realidade.
No texto atual, Gabler troca o foco do entretenimento para a informação. Seu ponto de partida é uma constatação desconcertante: vivemos em uma sociedade vazia de grandes ideias, leia-se, conceitos e teorias influentes, capazes de mudar nossa maneira de ver o mundo. De fato, é paradoxal verificar que nossa era, com seus gigantescos aparatos de pesquisa e desenvolvimento, o acesso facilitado a informações, os recursos maciços investidos em inovação e centenas de publicações científicas, não seja capaz de gerar ideias revolucionárias, como aquelas desenvolvidas em outros tempos por Einstein, Freud e Marx.
Não somos menos inteligentes do que nossos ancestrais. A razão para a esqualidez de nossas ideias, segundo o autor, é que vivemos em um mundo no qual ideias que não podem ser rapidamente transformadas em negócios e lucros são relegadas às margens. Tal condição é acompanhada pelo declínio dos ideais iluministas – o primado da razão, da ciência e da lógica – e a ascensão da superstição e da ortodoxia. Nossos avanços tecnológicos são notáveis, porém estamos retrocedendo, trocando modos avançados de pensamento por modos primitivos.
Gabler critica o afastamento das universidades do mundo real, operando como grandes burocracias e valorizando o trabalho hiperespecializado em detrimento da ousadia. Critica também o culto da mídia por pseudoespecialistas, que defendem ideias pretensamente impactantes, porém inócuas.
No entanto, o autor aponta que a principal causa da debilidade das nossas ideias é o excesso de informações. Antes, nós coletávamos informações para construir conhecimento. Procurávamos compreender o mundo. Hoje, graças à internet, temos acesso facilitado a qualquer informação, de qualquer fonte, em qualquer parte do planeta. Colocamos a informação acima do conhecimento. Temos acesso a tantas informações que não temos tempo para processá-las. 
Assim, somos induzidos a fazer delas um uso meramente instrumental: nós as usamos para nos manter à tona, para preencher nossas reuniões profissionais e nossas relações pessoais. Estamos substituindo as antigas conversas, com seu encadeamento de ideias e sua construção de sentidos, por simples trocas de informações. Saber, ou possuir informação, tornou-se mais importante do que conhecer; mais importante porque tem mais valor, porque nos mantêm à tona, conectados em nossas infinitas redes de pseudorrelações.

As novas gerações estão adotando maciçamente as mídias sociais, fazendo delas sua forma primária de comunicação. Para Glaber, tais mídias fomentam hábitos mentais que são opostos àqueles necessários para gerar ideias. Elas substituem raciocínios lógicos e argumentos por fragmentos de comunicação e opiniões descompromissadas.
O mesmo fenômeno atinge as gerações mais velhas. Nas empresas, muitos executivos passam parte considerável de seu tempo captando fragmentos de notícias sobre mercados, concorrentes e clientes. Seu comportamento é o mesmo no mundo virtual e no mundo real: eles navegam pela internet como navegam por reuniões de negócios. Vivem a colher informações e distribuí-las, sem vontade ou tempo para analisá-las. Tornam-se máquinas de captação e reprodução. À noite, em casa, repetem o comportamento nas mídias sociais. Seguem a vida dos amigos e dos amigos dos amigos; comunicam-se por uma orgia de imagens e frases curtas, signos cheios de significado e vazios de sentido. 
O futuro aponta para a disponibilidade cada vez maior de informações. A consequência para a sociedade, segundo Gabler, é a desvalorização das ideias, dos pensadores e da ciência. A considerar a velocidade com que livros e outros textos estão sendo digitalizados e disponibilizados na internet, estamos no limiar de ter todas as informações existentes no mundo ao nosso dispor. O problema é que, quando chegarmos lá, não haverá mais ninguém para pensar a respeito delas.

Pode-se acusar o ensaísta de nostalgia infundada ou ludismo. Porém, ele não está só. Felizmente, há sempre um grupo de livres pensadores a se colocar contra o conformismo massacrante das modas tecnológicas e comportamentais, nesta e em outras eras.
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