Trabalho do australiano Matthew Weatherstone, da série 'The Disconnect', 'Humanity' e By 'Light and Day'
IHU On-Line – Quais são as
peculiaridades da revolução na obra do jovem Marx? Em que aspectos sua teoria
se modifica em seus escritos posteriores?
Michael Löwy – Nas Teses sobre Feuerbach
(1845) – o germe genial de uma nova concepção do mundo, segundo Engels – e na
Ideologia alemä (1846), Marx inventa uma nova teoria, que se poderia definir
como filosofia da práxis (o termo é de Gramsci). Superando dialeticamente o
idealismo neo-hegeliano – para o qual a mudança da sociedade começa com a
mudança das consciências – e o materialismo vulgar – para o qual é necessário
primeiro mudar as “circunstâncias” materiais –, Marx afirma, na Tese n. III
sobre Feuerbach: na práxis revolucionária, coincidem a mudança das circunstâncias
e automodificação dos indivíduos. Como ele explica pouco depois na Ideologia
alemã : uma consciência comunista de massas só pode surgir da ação, da
experiência, da luta revolucionária das massas; a revolução é não apenas
necessária para derrubar a classe dominante, mas também para que a classe
subversiva se liberte da ideologia dominante. Em outras palavras: a única
emancipação verdadeira é a autoemancipação revolucionária. Essa tese vai ser um
fio vermelho, através de toda sua obra, mesmo que as formulações sejam mais
diretamente políticas e menos filosóficas. Por exemplo, no célebre preâmbulo
dos Estatutos da Primeira Internacional (1871): “A emancipação dos
trabalhadores será a obra dos próprios trabalhadores”. Mas isso vale também
para o Manifesto Comunista , para os escritos sobre a Comuna de Paris, etc.
IHU On-Line – Como pode ser
compreendida a ditadura do proletariado face a democracia que emana da teoria
da revolução comunista?
Michael Löwy – A expressão “ditadura do
proletariado” foi pouco feliz. Mas como o demonstrou o socialista americano Hal
Draper, o que Marx e Engels queriam dizer com isso era o poder democrático dos
trabalhadores, tal como o conheceu a Comuna de Paris, que teve eleições
democráticas, pluripartidarismo, liberdade de expressão, etc. No século XX,
essa expressão serviu para justificar políticas autoritárias em nome do
comunismo, que não correspondem ao pensamento de Marx.
IHU On-Line – O que mudou na
esquerda desde o lançamento da primeira edição de A revolução comunista na obra
do jovem Marx?
Michael Löwy – O título da primeira
edição (não da tese de doutorado) era A teoria da revolução no jovem Marx,
publicado pelas Editions Maspero, em 1971. Desde então muita água correu nas
margens do Sena, e a versão estalinista da esquerda, que predominou durante boa
parte do século XX, entrou em crise e praticamente desmoronou no mundo inteiro.
Fica então confirmada, pela via negativa, a tese de Marx: a única revolução
verdadeira é a autoemancipação dos oprimidos.
IHU On-Line – Em termos gerais, o
senhor considera que a esquerda em suas diferentes experiências (União
Soviética, Leste Europeu, América Latina, Europa e Brasil) compreendeu Marx de
forma equivocada? Por quê?
Michael Löwy – Na URSS, em seus
primeiros anos, existiu talvez uma compreensão equivocada do marxismo, uma
leitura autoritária de certos textos. Mas a partir do stalinismo, em meados dos
anos 1920, já não se trata de equívoco, mas de uma ideologia de Estado,
pretensamente marxista-leninista, visando justificar o poder totalitário da
burocracia e suas políticas oportunistas. Infelizmente, os partidos comunistas
da Europa, América Latina e Brasil seguiram, durante muitos anos, a orientação
stalinista. Mas já a partir de 1956 e, sobretudo, de 1968 (invasão da
Tchecoslováquia), muitos comunistas começaram a questionar esta ideologia. Na
América Latina foi a Revolução Cubana que provocou uma profunda crise no
movimento comunista.
IHU On-Line – A revolução
permanente de Trotsky é uma categoria adequada para se pensar a esquerda hoje?
Por quê?
Michael Löwy – A teoria da revolução
permanente de Trotsky – que havia sido formulada por José Carlos Mariategui ,
no contexto latino-americano, desde 1928 – é a única que dá conta da dinâmica
das revoluções do século XX: revoluções russa de 1917, chinesa, iugoslava,
vietnamita, cubana. Em todos estes países, uma revolução democrática, agrária
e/ou anticolonial se transforma num processo ininterrupto – permanente – em
revolução socialista. Infelizmente, em todos estes processos – com a exceção parcial
de Cuba – acabou se dando uma degeneração burocrática. Isso não é uma
fatalidade, mas o produto de circunstâncias históricas. O que vale ainda hoje é
a visão estratégica: as revoluções na periferia do sistema serão revoluções
socialistas, democráticas, agrárias e anti-imperialistas ao mesmo tempo; ou
então serão “caricaturas de revolução”, como dizia Che Guevara. Dito isso, não
se pode considerar a teoria de Trotsky como um dogma infalível: ele previa,
nestas revoluções, um papel dirigente da classe operária, que só se deu no caso
russo de 1917.
IHU On-Line – Como concilia a
militância socialista e surrealista? Como essas vertentes se complementam e
confluem para o trotskismo?
Michael Löwy – O surrealismo é um
movimento romântico revolucionário, de reencantamento do mundo, que tem uma
vocação eminentemente subversiva: é, portanto, perfeitamente compatível com a
militância socialista. Aliás, muitos surrealistas, como o poeta Benjamin Péret
– que esteve vários anos no Brasil – nunca deixou de militar, e combateu em
1936-37, nas fileiras antifascistas na guerra civil espanhola.
Em 1938, André Breton , o fundador do surrealismo,
viajou ao México para encontrar Leon Trotsky, então exilado em Coyacan. Os dois
redigiram juntos um manifesto, intitulado Por
uma arte revolucionária independente, contra qualquer controle de partido
ou Estado sobre atividade poética ou artística. Pouco depois, será fundada a
Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente – FIARI, na qual
participam surrealistas, trotskistas, e outros. Mas o surrealismo não se
relacionou somente com o trotskismo: teve também vínculos com o anarquismo, em
particular nos anos 1950, e chegou a se aproximar de Cuba revolucionária nos
anos 1960. Suas simpatias vão a todo movimento autenticamente revolucionário.
(...)
IHU On-Line – O filósofo como
cabeça e o proletariado como coração da revolução. Até que ponto essa ideia de
Marx inspira a esquerda do nosso tempo?
Michael Löwy – Essa ideia, de corte
tipicamente neo-hegeliano, foi defendida por Marx no começo de 1844. Mas pouco
depois, impactado pelo levante dos tecedores da Silésia (norte da Alemanha), de
junho de 1844, ele descobre que o proletariado alemão é “filosófico”, não precisa
esperar pelos neo-hegelianos para se sublevar. Ainda hoje, encontramos na
esquerda essa visão idealista, neo-hegeliana, que faz do filósofo, ou da
vanguarda, ou do partido, a “cabeça” da revolução. A revolução é um belo
monstro com mil cabeças.
(...)
IHU On-Line – Quais são os
principais limites do pensamento marxista? O que explica que o marxismo seja
visto por muitos setores da academia como retrógrado?
Michael Löwy – O marxismo é um
pensamento em movimento, que trata de superar os limites que estão presentes na
própria obra de Marx e Engels: por exemplo, um tratamento muito insuficiente da
questão ecológica. Alguns setores da academia confundem o marxismo com sua
caricatura retrógrada, a ideologia do assim chamado “socialismo real”. Outros,
identificados com a ideologia dominante, pretendem que o desenvolvimento
capitalista represente o “progresso”, sendo o marxismo “arcaico”, por se opor à
expansão do mercado e à acumulação do capital.
Penso que tinha razão Jean Paul-Sartre ao dizer que
o marxismo é o horizonte intelectual de nossa época; as tentativas de
“superá-lo” – pós-modernidade, pós-marxismo, etc. – acabam sendo regressões
políticas e culturais.
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