Área científica emergente, o surgimento da Sociologia da Infância no mundo de língua portuguesa tem se dado basicamente a partir do contexto lusitano. A Sociologia da Infância difere da Sociologia da Educação, ou é uma área desta? Incógnitas à parte, é de se reconhecer que é urgente, como tenho vindo a realçar, a necessidade de passarmos a um enfoque sociológico sobre a educação e a escola onde, sem colocar de parte os condicionamentos mais gerais, tenha-se em atenção, de modo detido, os constituintes específicos da relação de ensino-aprendizagem, o desenrolar do cotidiano escolar, as sociabilidades efetivas de crianças, jovens e adolescentes. Originalmente com forte tradição francesa, assim emerge a Sociologia da Infância. Trata-se de uma área científica tão necessária quanto mais vemos os processos de 'adultização' das crianças, em função do consumo, acelerados pelos mecanismos de mercado da sociedade da informação. Abaixo, um artigo-síntese a respeito da Sociologia da Infância, de autoria de Régine Sirota.
Emergência de uma sociologia da infância: evolução do objeto e do
olhar
Régine Sirota
Institut National de Recherche Pédagogique — Université René
Descartes — Paris V
Tradução: Neide Luzia de Rezende
Nas duas primeiras questões que apresentei, meio
social para a criança e o problema das gerações, vê-se como a sociologia da
infância pode servir a todas as partes da sociologia e à própria sociologia
geral. Por outro lado, na terceira questão, a das técnicas do corpo, vemos como
a sociologia, em geral, serve e deve servir à educação da infância
(Três observações sobre a sociologia da infância,
excerto de uma comunicação que Mauss devia apresentar por ocasião de um
congresso de sociologia da infância em 1937, redescoberta e publicada por
Fournier)
Como testemunham
essas poucas linhas de Mauss, a questão da construção de uma sociologia da
infância não é nova, embora desdenhada e ignorada pelos pesquisadores até
recentemente. De onde vem essa redescoberta? Que etapas percorre? O que ela
aporta? Em que medida esse campo de fato existe? Para responder a essas
questões, mesclam-se de imediato fatores ligados tanto à história das ciências
sociais, à sociologia geral e suas divisões de campos, quanto à evolução
específica da sociologia da educação, os quais refletem diretamente a evolução
do objeto social e os debates públicos particularmente intensos que o envolvem.
O objeto deste número
e mais precisamente desta introdução é de ter em perspectiva, para colocá-los
em sinergia, os diferentes elementos que resultam na emergência desse campo,
pois ele se caracteriza por uma certa fragmentação e por tentativas múltiplas,
mas relativamente compartimentadas de estruturação.
DESAPARIÇÃO
E REEMERGÊNCIA DE UM PEQUENO SUJEITO OU DE UM PEQUENO OBJETO?
Desenhar e dar a ler
a cartografia atual do campo implica mesclar aspectos institucionais e
publicações com a finalidade de revelar as diferentes linhas de força e a
efervescência que estruturam a aparição desse "pequeno objeto" de
início freqüentemente qualificado pelos sociólogos como "fantasma
onipresente", "terra incógnita", "refugo",
"mudo", ou como "quimera", na literatura de língua
francesa; "marginalizado", "excluído",
"invisível", ou como "categoria minoritária" na literatura
de língua inglesa. Ato de nascimento marcado pois, por uma constatação geral de
carência, de fragmentação do objeto, onde se entrelaçam o imaginário social e
considerações teóricas, e que aponta uma das primeiras dificuldades da
construção do objeto: libertá-lo, por um lado, do implícito, por outro
desvinculá-lo do combate militante, para fazê-lo emergir por inteiro no
discurso científico como objeto de trabalho. Pode-se, de imediato, reconhecer
aí, mediante essa tensão, características presentes por ocasião do surgimento
de novos objetos de pesquisa, tais como o "gênero" ou a escolarização
dos filhos de migrantes. Tratar-se-á de uma pesquisa voltada para "aqueles
que não têm a palavra", segundo a origem etimológica— in-fans, aquele que não fala — que citam Durkheim e
Buisson já nas primeiras linhas do artigo "Infância" do famoso dicionário?
Definida como um
período de crescimento, "quer dizer, essa época em que o indivíduo, tanto
do ponto de vista físico quanto moral, não existe ainda, em que ele se faz, se
desenvolve e se forma", a infância representa o período normal da educação
e da instrução. A infância é suficientemente frágil para que deva ser educada e
suficientemente móvel para poder sê-lo. A criança é, pois, aqui considerada
antes de tudo como aquilo que os anglo-saxões denominam um "future
being", um ser futuro, em devir: "ela [a infância] apresenta ao
educador não um ser formado, não uma obra realizada e um produto acabado, mas
um devir, um começo de ser, uma pessoa em vias de formação. Não importa que
período da infância consideremos, sempre nos encontramos em presença de uma
inteligência tão fraca, tão frágil, tão recentemente formada, de constituição
tão delicada, com faculdades tão limitadas e exercendo-se por um tal milagre
que, quando pensamos nisso tudo, não há como não se temer por essa esplêndida e
frágil máquina. A condição a ser criada parece se localizar no oposto daquilo
que nos é dado como ponto de partida".
A atenção dos
sociólogos estará portanto voltada para as instâncias encarregadas desse
trabalho de socialização, para fazer acontecer o ser social, principalmente num
quadro estrutural-funcionalista. A sociologia em geral, particularmente a
sociologia da educação, seja ela de língua francesa ou inglesa, permaneceu
durante muito tempo implicitamente circunscrita a essa definição durkheimiana,
desenvolvendo, em perspectivas autônomas de pesquisa, diferentes olhares sobre
a infância, configurados segundo os modos de apreensão institucional do objeto
social. Estes são, pois, os pontos de partida do apagamento da infância ou de
sua marginalização (Qvortrup, 1994; Corsaro, 1997) como objeto sociológico,
contrariamente às proposições de Mauss. A infância será essencialmente
reconstruída como objeto sociológico através dos seus dispositivos
institucionais, como a escola, a família, a justiça, por exemplo.
É principalmente por
oposição a essa concepção da infância, considerada como um simples objeto
passivo de uma socialização regida por instituições, que vão surgir e se fixar
os primeiros elementos de uma sociologia da infância.
Isso deriva de um
movimento geral da sociologia, seja ela de língua inglesa ou francesa, de resto
largamente descrito, que se volta para o ator, e de um novo interesse pelos
processos de socialização. A redescoberta da sociologia interacionista, a
dependência da fenomenologia, as abordagens construcionistas vão fornecer os
paradigmas teóricos dessa nova construção do objeto. Essa releitura crítica do
conceito de socialização e de suas definições funcionalistas leva a
reconsiderar a criança como ator.
Essa visão da
infância como uma construção social, dependente ao mesmo tempo do contexto
social e do discurso intelectual, foi iniciada pelo trabalho do historiador
Ariès. A criança e a vida familiar no Antigo Regime, publicado em 1960. A
partir de então, a tese inicial do autor a respeito de um novo sentimento da
infância será retomada e discutida por um grande número de trabalhos, que
contribuirão para o interesse pelo objeto, tanto entre os historiadores quanto
no conjunto das ciências sociais, em virtude de um movimento de interesse mais
geral pela análise da vida privada. Entretanto, restringimo-nos aqui a retomar
a observação de Becchi e Julia (1998), em sua mais recente introdução a uma
história da infância, quanto às dificuldades da recepção inicial do livro de
Ariès entre os historiadores: "ele atrapalha os quadros tradicionais de
exposição". O mesmo ocorre no interior da sociologia. A emergência do
objeto infância questiona os modos de abordagem, não só no plano teórico como
também no disciplinar ou metodológico, o que obriga a uma recomposição de
campos, tanto entre disciplinas das ciências sociais quanto entre
subdisciplinas.
UMA
EMERGÊNCIA CIENTÍFICA ATRAVÉS DE MOVIMENTOS PARALELOS E CONVERGENTES
A leitura da paisagem
científica mostra um primeiro recorte, caracterizado por seu estancamento e
paralelismo, entre a esfera de língua francesa e a de língua inglesa.
O setor de língua
francesa se distingue pela multiplicidade e, apesar de uma profunda
convergência, pela ignorância recíproca, das manifestações e publicações que
tentam organizar o campo. Alguns encontram o objeto infância na curva da
evolução geral da disciplina ou da subdisciplina, outros tentam constituí-la em
objeto de pesquisa.
Uma das primeiras
publicações em francês que tenta revelar o objeto é um número da Revue
de l'Institut de Sociologie de Bruxelles intitulado
"Infâncias e ciências sociais", publicado em 1994, produto do
seminário do grupo de pesquisa internacional "Modo de vida das
crianças", ligado ao grupo maior de pesquisa sobre "Modos de
vida", do CNRS, existente desde 1990. Na introdução, Mollo-Bouvier assim
exprime o objetivo da publicação:
...construir o objeto
criança com base no que deveria ser uma banalidade: as crianças são atores
sociais, participam das trocas, das interações, dos processos de ajustamento
constantes que animam, perpetuam e transformam a sociedade. As crianças têm uma
vida cotidiana, cuja análise não se reduz à das instituições.
O afastamento em
relação à posição durkheimiana é claro. Trata-se de romper a cegueira das
ciências sociais para acabar com o paradoxo da ausência das crianças na análise
científica da dinâmica social com relação a seu ressurgimento nas práticas
consumidoras e no imaginário social. Decorre daí a proposta de Javeau de
trabalhar para o conhecimento da infância como um grupo social em si, como
"um povo" com traços específicos. Assim se retoma a proposição de
Mauss de considerar a infância como um meio social para a criança, desse modo,
articulando essa abordagem à sociologia geral. Trata-se, no âmbito dessas
contribuições, de tomar com seriedade esse ator social que é a criança,
interrogando-se sobre os quadros teóricos disponíveis ou necessários.
No interior da
Associação Internacional dos Sociólogos de Língua Francesa, dois comitês de
pesquisa também se interessaram pela infância. Por um lado, os sociólogos da
família, com a associação canadense dos sociólogos e antropólogos de língua
francesa, organizaram em Montreal, em 1995, um encontro intitulado
"Infâncias". Após apontar a falta de comunicação interdisciplinar, tanto
no âmbito da língua inglesa quanto francesa, os trabalhos se detiveram nos
traços contrastantes que uma leitura social da infância propicia, destacando,
numa perspectiva comparativa internacional, os modos de construção social da
infância contemporânea. Permanecendo no âmbito de problemáticas da sociologia
da família, ao discutir sobre os atores que agem na construção social da
infância, seja a família, a escola ou o Estado, esses trabalhos fazem emergir a
criança como um parceiro ou um ator, em sentido pleno, na estrutura familiar.
Por sua vez, os
sociólogos da educação, na ocasião do colóquio "Por um novo balanço da
sociologia da educação", em 1993, destinado a atualizar a evolução do
campo, formam uma comissão "Sociologia da Infância", onde se pode
observar a passagem de estudos sociodemográficos aos estudos etnográficos, no
âmbito de uma socioantropologia da infância. Tendem a revelar a criança, e não
mais simplesmente o aluno, enquanto ator social no quadro de uma
desescolarização da sociologia da educação.
Essa investigação
prossegue no seminário parisiense "Infância e Política. Tentativa de
construção de objeto" (Institut National de Recherche Pédagogique/École
des Hautes Études en Sciences Sociales), que procurou romper a fragmentação
disciplinar e construir uma rede, hoje na origem da elaboração deste número.
Com uma abordagem
inteiramente distinta, na conclusão do ano da família, em 1994, alguns
demógrafos organizaram sob a égide do Institut National d'Études Démographiques
— Ined —, um colóquio com o título "A criança na família, vinte anos de
mudanças", publicado pela revista Population. Diante
da evolução da família, cujo único ponto fixo parece ser a criança, é
necessário, para uma disciplina que sempre considerou indiretamente a infância,
redescobrir essa variável que é a criança. Essa perspectiva de trabalho foi
retomada no âmbito da Comissão "Transformações da família: o ponto de
vista das crianças", do Congresso Geral da População em Pequim, em 1996.
Mais recentemente, o
Colóquio anual da Sociedade de Etnologia Francesa teve como tema
"Sociedades e culturas infantis", em Lille, 1997. O ponto de vista se
torna essencialmente "internalista" mediante a exploração da hipótese
da existência de sociedades infantis e, mais especialmente, de culturas
infantis, pretendendo contribuir para definir o que poderia ser uma etnologia
da infância.
A atualização
científica se intensifica, pois paralelamente à demanda de certos parceiros
institucionais da pesquisa na qual os mesmos se tornam implementadores de
trabalhos, de reflexões teóricas e de sínteses sobre esse assunto. Assim, por
exemplo, na França, a revista Informations Sociales da
Caisse d'Alocations Familiales organiza um número sobre a evolução do lugar da
criança e, mais especificamente, sobre o aparecimento de "A palavra da
criança", cruzando essa problemática com as questões colocadas pela
evolução de seu estatuto jurídico. A Federação dos alunos da escola pública, em
parceria com a Mutuelle Générale de l'Éducation Nationale, cria um
"Observatório da Criança na França", voltado mais especificamente
para as dificuldades e sofrimentos das crianças e adolescentes, como: maus
tratos, exploração, delinqüência, violência, visando também lazer, saúde e, por
último, escola. O concurso sobre "Educação das crianças e dos
adolescentes", promovido pelos organismos ministeriais franceses, a Missão
Interministerial de Pesquisa e o Ministério da Educação Nacional, suscita um
certo número de pesquisas, que trabalham a intersecção da responsabilidade
escolar e social.
Assim, no final dos
anos 80, historiadores, sociólogos, demógrafos e etnólogos de língua francesa
assim como um certo número de profissionais da infância começam a trabalhar, no
interior de suas comunidades respectivas, com esse novo objeto. Esses encontros
e o conjunto das publicações que deles resultaram se refletem uns nos outros,
cada um raciocinando no interior de seus próprios quadros de referência e com
suas metodologias próprias, construindo assim uma nova paisagem científica.
O objeto parece,
pois, construir-se na intersecção de um certo número de disciplinas das
ciências sociais, produzindo uma recomposição disciplinar. Essa recomposição,
por sua vez, discute a própria evolução da sociologia da educação. É preciso
retomar a análise do processo de socialização, no seu conjunto, e
desescolarizá-lo, retornando assim a uma definição ampla do objeto da
disciplina, ao mesmo tempo que, para isso, seja necessária uma articulação com
outros campos da sociologia (sociologia da família, sociologia política,
sociologia do direito, demografia), capaz de explicitar o problema da
articulação com a sociologia geral.
Entretanto, de modo
um pouco mais precoce e estruturado, a literatura anglo-saxã referente à
sociologia da infância se torna prolífica, indicando uma recomposição e
legitimação institucional mais importante, oferecendo, assim, meios de
confrontação e de análise reflexiva sobre as modalidades de construção e
desconstrução do campo.
No mundo anglo-saxão
organizaram-se redes de pesquisadores.
No interior da
Associação Americana de Sociologia existe uma seção de pesquisa intitulada
Sociologia da Criança. Igualmente, no âmbito da Associação Internacional de
Sociologia se desenvolve o comitê de pesquisa sobre Sociologia da Infância,
agrupando atualmente mais de uma centena de pesquisadores. Metade deles é
originária da Europa, principalmente Grã-Bretanha, países nórdicos, Alemanha, e
um terço é proveniente do continente norte-americano. Na própria Grã-Bretanha
realizaram-se, após 1986, os workshops sobre
Etnografia da Infância, inicialmente organizados em Cambridge; depois montou-se
a rede, sediada em Londres e Keele, "Criança e Sociedade". Esses
mesmos pesquisadores, em1986 criaram uma revista, Sociological
Studies of Child Development,
chamada depois Sociological Studies of Children.
Por outro lado, dois
grandes programas de pesquisa foram lançados. O programa "A infância como
fenômeno social" (1987-1992), dispositivo europeu de pesquisa comparativa
dirigido pelo European Center for Social Welfare Policy and Research, de Viena,
cujo objetivo era, além de suprir a carência de conhecimentos empíricos sobre a
infância no contexto europeu, também aprofundar a construção de uma sociologia
da infância no plano teórico. Propiciou um conjunto de publicações englobando
doze países. Atualmente existe um programa de pesquisa inglês "Programa de
Pesquisa sobre a criança de 5 a 16 anos" dirigido por Prout, que agrupa 70
pesquisadores numa vintena de equipes. Esse programa parte da hipótese de a
criança ser considerada um ator social em sentido pleno.
Para romper a
impermeabilidade existente entre a comunidade de língua inglesa e francesa,
Cléopâtre Montandon redigiu uma síntese sobre esses trabalhos, intitulada
"A sociologia da infância: balanço dos trabalhos em língua inglesa".
Ela coloca em evidência as problemáticas, os paradigmas, os objetos empíricos e
os debates existentes na construção desse campo. Isso deverá permitir que o
leitor de língua francesa se situe numa literatura já extremamente abundante,
fruto de uma comunidade científica constituída, que se apóia numa tradição de
pesquisa recente mas já marcada por estudos empíricos e por debates teóricos,
capazes de situá-la tanto no campo especializado quanto no campo que dialoga
com a sociologia geral. As origens disciplinares dos pesquisadores são aí muito
mais diversificadas que no espaço de língua francesa — antropologia médica, por
exemplo (Prout), economia (Qvortrup), sociologia da educação (Alanen), estudos
feministas (Oakley), folclorista (os Opie) etc., o que explica em parte a maior
variedade temática. Mas o conjunto dos trabalhos se situa claramente no campo e
proclama sua contribuição ou participação na construção de uma sociologia da
infância, sempre enfatizando as dificuldades de sua legitimação diante dos
"guardiões" acadêmicos.
Retomando a
classificação de Frones, quatro grandes temas são apontados para apresentar
esses trabalhos: as relações entre gerações; as crianças e os dispositivos
institucionais criados para elas; o mundo da infância — interações e cultura
das crianças —, e as crianças como grupo social. Para grande surpresa do leitor
de língua francesa, os trabalhos anglo-saxões e americanos referentes aos
alunos e à escolarização, embora numerosos, têm presença restrita e são pouco
identificados como pertencendo ao campo na bibliografia. Sociologia da educação
e sociologia da infância aparecem, na esfera de língua inglesa, como se
constituídas de maneira autônoma, ao contrário da sociologia da educação de
língua francesa, de onde, sobretudo, saíram os sociólogos que trabalham sobre a
infância. Não existe em língua francesa uma revista especializada nesse assunto
como aSociological Studies of Children. Por outro lado, os trabalhos
apresentados são em parte publicados no âmbito de obras resumidas, sob forma de readers, certamente no interior da tradição acadêmica de
publicação anglo-saxã, porém refletindo uma inserção educacional não apenas na
esfera da pesquisa, como também um reconhecimento na esfera da formação
universitária e da formação profissional. No âmbito das pesquisas publicadas em
inglês, pode-se perceber a participação importante dos sociólogos escandinavos
na construção institucional e intelectual desse campo.
O
OFÍCIO DE CRIANÇA
Mas como essa
evolução científica teve lugar? Um retorno à genealogia de um dos conceitos
utilizados na sociologia da educação de língua francesa permite observar o
percurso das problemáticas.
A emergência atual de
uma sociologia da infância poderia ser simbolizada mediante a aparição da noção
de "ofício de criança" [métier d'enfant]. Tomar a sério a
criança, reservando-lhe o lugar de um objeto sociológico em sentido pleno, é o
primeiro desafio da noção de "ofício de criança", pois representa uma
ruptura difícil de efetuar no modo de pensar da sociologia da educação, da qual
é interessante rever as etapas.
A noção de
"ofício de criança" aparece de início na literatura pedagógica, nos
escritos de Pauline Kergomard, célebre inspetora francesa de escolas maternais.
É ela quem introduz essa noção, a propósito da escola maternal. Trata-se, para
ela, de definir uma escola que corresponda à natureza infantil, onde se operem
livremente os processos de maturação e desenvolvimento. Nessa escola, a criança
poderá cumprir o seu papel. Há nela adequação entre o que a instituição define,
ou, pelo menos, entre seu projeto renovador e o estatuto reservado à criança no
interior da instituição, visando sua função de socializar, uma vez que a essa
definição social da infância corresponde, paralelamente, a uma institucionalização
da infância em alguns dispositivos pedagógicos.
Num segundo momento,
a noção foi retomada, em 1973, na literatura sociológica, pelo título do artigo
de Chamborédon e Prévost: "O ofício de criança, as funções diferenciais da
escola maternal", publicado na Revue
Française de Sociologie. O artigo analisa precisamente a obra de P.
Kergomard e sua influência sobre a evolução do modelo pedagógico da escola
maternal. Entretanto, dentro da perspectiva de uma sociologia
estrutural-funcionalista, trata-se aí de analisar o exercício do ofício de
criança, não em termos da natureza infantil mas em termos de confrontação de habitus familiar
e escolar. Confrontação entre os pressupostos explícitos e implícitos do
programa pedagógico e do funcionamento da escola maternal em termos de modo de
pensar, de agir, de fazer, com o habitus suposto
das diferentes classes sociais. Não se trata pois do ofício de criança, mas do
ofício de aluno, na primeira infância. Porém, já os dois termos,
"ofício" e "criança" são sociologicamente associados,
mediante a análise dos papéis institucionalmente prescritos.
Essa visão da criança
como aluno deve ser confrontada com a análise retrospectiva feita por
Isambert-Jamati, em 1993, numa entrevista conduzida por Bourdoncle, a propósito
da orientação de suas próprias pesquisas em sociologia da educação. Expondo o
motivo de seu interesse por uma sociologia da profissão de professor, esclarece
as razões das reticências de alguns pesquisadores quanto a uma abordagem direta
dos alunos:
...primeiramente,
fazer uma sociologia dos alunos era considerado extremamente difícil; quando
comecei costumávamos dizer que fazer perguntas a crianças e jovens era
sociologicamente muito difícil, porque eles eram muito cambiantes, instáveis, o
que poderia ser interessante para a psicologia, mas impedia que formassem
sociologicamente uma verdadeira população (...) Mas é verdade que em relação a
um preconceito bastante consciente, que não era menosprezo mas um problema de
objeto sociológico possível, isso não me parecia muito pertinente (...) O
quarto elemento ao qual me atenho sempre é que os professores são centrais, não
apenas no sistema educativo mas, mais ainda no processo de educação. Antes de
me interessar especialmente pelos professores, trabalhei, tendo como perspectiva
a educação, com as famílias e nas suas relações com a escola. Mesmo que eu
saiba que entre uma geração e outra não há reprodução idêntica, continuo a
pensar que a educação é por um lado uma socialização transmitida de geração a
geração. Se existe transmissão de algo, o que ninguém contesta totalmente, é
inevitável que todos aqueles que educam, guardem um pouco o segredo. Portanto,
mesmo se estou longe de condenar os trabalhos sobre as crianças, dirigir-me
àqueles cuja missão é educar, tanto pais quanto mestres, parece-me uma via
privilegiada para compreender a educação.
Essa abordagem, fiel
à definição durkheimiana, resume aquela que foi durante muito tempo a posição
dominante: são principalmente objetos legítimos de análise os atores que moldam
o sistema educativo mesmo que sejm considerados agentes. As crianças, na
condição de alunos, são concebidas apenas como receptáculos mais ou menos
dóceis de uma ação de socialização no interior de uma instituição com objetivos
claros para o sociólogo.
Segunda etapa:
enraizada na sociologia anglo-saxã interacionista, a criança é considerada como
um parceiro, e na literatura de língua francesa aparece a noção de "ofício
de aluno". Assim, Perrenoud, em "Fabricação da excelência
escolar", depois numa coletânea de artigos intitulada "O ofício de
aluno" retoma explicitamente a noção de ofício para se interrogar sobre o
que constrói a escola e sobre o papel dos alunos nessa construção. Ele se apóia
nas definições da linguagem corrente veiculadas pelo dicionário Robert: "1)
Tipo de ocupação manual ou mecânica que tem utilidade na sociedade; 2) Todo
tipo de trabalho determinado reconhecido ou tolerado pela sociedade, e do qual
se pode tirar os meios de subsistência; 3) Ocupação permanente que possui
certas características do ofício". Sendo a escolaridade a ocupação
principal da infância, é possível então, acredita ele, utilizar o termo ofício
de aluno articulando-o às noções de curriculum oculto e de curriculum real, já
que se trata, para a criança, de "se tornar o indígena da instituição
escolar" adquirindo a competência do membro da tribo.
Uma sociologia do
ofício de aluno se torna assim ao mesmo tempo uma sociologia do trabalho
escolar e da organização educativa. Analisando o curriculum real,
esse campo se interessa pelas tarefas designadas efetivamente aos alunos,
estudando suas estratégias, o modo como eles tomam distância em face das
expectativas dos adultos e manipulam o poder na família ou na escola. De todo
modo, essa sociologia se interessa pelo avesso do cenário deixado até então na
sombra, pelo sentido que os alunos dão ao trabalho cotidiano. Não se opõe à
tradição bourdieusiana, mas a prolonga, pois o aluno é aqui considerado tanto
no espaço escolar como em função dos universos de socialização aos quais
pertence, principalmente a escola e a família. Ele é então designado como go-between, mensageiro entre essas duas instâncias de
socialização, devendo a análise se debruçar sobre o trabalho de negociação a
ser realizado entre essas duas instâncias.
Nessa etapa, a autonomia
relativa e a especificidade do trabalho de negociação, de rearticulação e de
construção do sentido atribuído à escolaridade pelos alunos, no exercício de
seu ofício de aluno, são aprofundadas pelos trabalhos que, nos anos 90, começam
a formar, verdadeiramente um conjunto na sociologia de língua francesa, cujo
desenrolar pode ser percorrido numa síntese da Revue
Française de Pédagogie, publicada em 1993
sob o título "O ofício de aluno" (Sirota, 1993).
Terceira etapa: um
eixo se apresenta como essencial nos trabalhos, e aparece muito claramente —
entre outros, no trabalho de Dubet em torno da noção de experiência. Numa
sucessão de obras (Os alunos do liceu, Sociologia
da experiência, Para
a escola, Escola,
famílias, o mal-entendido, o autor retoma a
noção de ofício no espaço escolar a partir da noção de experiência. O ofício é
descrito como uma interpretação permanente, como um debate social interior a
propósito das finalidades da escola, das normas, da justiça, como uma atividade
pouco rotineira. Os professores em particular são assim caracterizados:
...de um lado, eles
falam em termos de estatuto, como membros de uma organização capaz de fixar
condutas, relações com os outros, modos de argumentação e de legitimação. De
outro, eles falam em termos de ofício, sendo este vivenciado como um desafio à
personalidade, como uma experiência íntima estritamente privada na qual os
critérios de referência e de reconhecimento pelo outro são dissociados da ordem
dos estatutos.
Analisando a evolução
e o funcionamento atual da escola, Dubet afirma assim que, como a formação dos
atores e dos sujeitos não mais decorre harmoniosamente do funcionamento de uma
instituição na qual cada um teria seu papel, é preciso substituir a noção de
papel pela de experiência. Pois os indivíduos, nesse caso principalmente os
alunos, não se formariam mais somente na aprendizagem sucessiva dos papéis
propostos, mas nas suas capacidades de dominar as experiências escolares
sucessivas. Estas se edificam como a vertente subjetiva do sistema escolar,
sendo que os atores se socializam mediante essas diferentes aprendizagens e se
constituem como sujeitos na capacidade de dominar sua experiência, de se tornar
os autores de sua própria educação. Nesse sentido, toda educação é uma auto-educação,
ou seja, não é apenas uma inculcação, é também um trabalho sobre si mesmo. Sem
ir muito longe nesse debate de definições subjacentes da socialização, pode-se
destacar na definição aqui proposta a aparição da autonomia da criança,
mediante a importância dada à sua subjetividade e à especificidade de sua
relação com a escola, de acordo com as idades e os níveis de ensino.
Quarta etapa: se é
aceita uma definição da experiência infantil como inscrita em registros
múltiplos e não convergentes, se também se admite o postulado de uma
heterogeneidade profunda dos registros culturais e das esferas de ação,
torna-se então essencial a análise do trabalho específico de socialização pelo
do qual as crianças adquirem a capacidade de gerar essa heterogeneidade. É
necessário então compreender como se constrói não apenas o ofício de aluno mas
também o ofício de criança (Rochex, 1995, Lahire, 1995), e portanto aprofundar
o conhecimento das múltiplas situações nas quais se constrói esse ator social,
sobretudo porque os dados são particularmente parciais e até agora
relativamente dependentes dos recortes disciplinares. Uma primeira ligação
entre subdisciplinas se esboça mediante o reexame da relação família-escola,
pois certos sociólogos da família, como Singly, priorizando, na evolução da
família contemporânea, a exigência de desenvolvimento satisfatório de cada um
de seus membros, descrevem uma modificação da percepção da criança. Esta já não
é mais considerada como algo maleável que a moral e a autoridade moldariam, mas
como um parceiro com o qual é preciso negociar. Um imperativo categórico: a
criança deve se tornar ela mesma, e possuir os meios para isso. Observa-se um
retorno à definição que deu P. Kergomard do ofício de criança, mas aqui é a
educação familiar que deve permitir a eclosão do eu da criança, mesmo se
coexistirem tensões entre exigência de desenvolvimento satisfatório e sucesso
escolar.
Pode-se evidentemente
perguntar sobre a extensão do modelo proposto ao conjunto das classes sociais,
mas esses trabalhos tenderiam a pensar a construção do indivíduo moderno nesse
período específico e essencial que são a primeira infância e a infância como
construção de uma experiência infantil cada vez mais complexa. Acrescente-se
que as mutações atuais da célula familiar (em termos de decomposição,
recomposição) levam os demógrafos a definir a infância como uma
"travessia" de seqüências múltiplas e a considerar a criança como uma
variável em si. Ora, com exceção da obra de Prost, A
criança e a família numa sociedade em mutação,
dispomos de bem pouca informação empírica sobre os modos de socialização
contemporâneos e sobre o respectivo peso das diferentes instâncias de
socialização, sendo o peso do grupo de pares e dos meios de comunicação
surpreendentemente negligenciado.
Quinta etapa: após um
período de denúncia já mencionado, grande parte dos primeiros sociólogos que se
interessam pela criança passa deliberadamente de uma sociologia da
escolarização a uma sociologia da socialização. Eles se atêm à socialização
primária visando a essa população infantil tanto como ser em devir quanto como
ator de sua própria socialização (conforme Javeau, Montandon, Rayou,
Mollo-Bouvier ou Sirota). A perspectiva adotada é com freqüência
socioantropológica, ultrapassando as barreiras disciplinares para tomar a sério
o "ofício de criança".
Essa análise rápida
sobre a emergência da noção de ofício de criança permite perceber as conotações
que a envolvem e situa claramente os objetivos do trabalho de elucidação que
resta a fazer em torno de alguns pontos que parecem centrais e são
particularmente colocados em destaque por essa expressão.
Um certo número de
pontos comuns à esfera de língua inglesa e à esfera de língua francesa parece
assim emergir do conjunto da literatura.
- A criança é uma construção social."A infância é compreendida como uma construção social. Desse modo, ela fornece um quadro interpretativo que permite contextualizar os primeiros anos da vida humana. A infância, vista como fenômeno diferente da imaturidade biológica, não é mais um elemento natural ou universal dos grupos humanos, mas aparece como um componente específico tanto estrutural quanto cultural de um grande número de sociedades" (James, Prout, 1990).
- Essa desnaturalização da definição, sem
contudo negar a imaturidade biológica, enfatiza a variabilidade dos modos
de construção da infância na dimensão tanto diacrônica quanto sincrônica e
reintroduz o objeto infância como um objeto ordinário de análise sociológica,
redefinindo as divisões clássicas entre psicologia e sociologia em relação
a esse período da vida.
- A infância é pois considerada não simplesmente
como um momento precursor, mas como um componente da cultura e da
sociedade (Javeau, 1994). A infância se situa pois como uma das idades da
vida que necessitam de exploração específica, como a juventude ou a
velhice, já que é uma forma estrutural que jamais desaparece, não obstante
seus membros mudem constantemente e portanto a forma evolua historicamente
(Jenks, 1997).
- As crianças devem ser consideradas como atores
em sentido pleno e não simplesmente como seres em devir. As crianças são
ao mesmo tempo produtos e atores dos processos sociais. Trata-se de
inverter a proposição clássica, não de discutir sobre o que produzem a
escola, a família ou o Estado mas de indagar sobre o que a criança cria na
intersecção de suas instâncias de socialização.
- A infância é uma variável da análise
sociológica que se deve considerar em sentido pleno (Qvortrup, 1994),
articulando-a às variáveis clássicas como a classe social, o gênero, ou o
pertencimento étnico.
Essas proposições são
contudo enunciadas com pesos diferentes, segundo cada autor, alguns insistindo
na abordagem etnográfica para entender a experiência infantil em função das
perspectivas próprias às crianças, outros insistindo na necessidade de uma
articulação com as abordagens macrossociais e quantitativas.
VAIVÉNS
DE RECORTE SOCIAL A RECORTE CIENTÍFICO
Esse movimento
científico não é independente do debate social que ocorre em torno dos direitos
da criança. Marcado pela adoção da carta internacional dos direitos da criança
de 1987, esse momento simboliza o acesso da criança, no final de uma longa
história de emancipação, ao estatuto de sujeito e à dignidade da pessoa.
Filosofia política e sociologia do direito são então convocadas para
identificar os elementos do debate e analisar essa mutação do estatuto da
criança. Duas posições emergem: por um lado, um compromisso entre uma tradição
de proteção, fundada na idéia de educação e de instrução, a única que pode
tirar a criança de sua vulnerabilidade para que tenha acesso à autonomia; por
outro lado, uma corrente defendida pelos "artesãos da
autodeterminação" que pedem uma mobilização em torno "dos direitos do
homem na criança" (Théry, 1998).
Esse debate social
internacional ganha impulso e se alimenta, por exemplo na França, a partir de
fatos diversos e de decisões políticas, quer se trate do sinal de recolher em
relação às crianças, da repressão ou da prevenção da delinqüência, quer do modo
de atribuição das alocações familiares. Manifesta-se profundo mal-estar e
grande incerteza quanto à visão da criança que subjaz a tudo isso, tanto em
termos de projeto político quanto de conhecimentos empíricos sobre os modos reais
de socialização. Uma parlamentar resume assim a situação: "Quanto à
política da infância, a sociedade não deve, com efeito, se reabilitar, tapando
buracos à esquerda e à direita. A criança é uma pessoa em sentido pleno na
sociedade e convém abordar esse assunto de maneira global" (Mme. Moirin,
auditora do relatório parlamentar Direitos
da criança, novos espaços a conquistar.
Ressurgem as figuras da infância perigosa, da criança selvagem (Debarbieux,
1998), a propósito da violência e das incivilidades, sejam elas escolares ou
urbanas. Essa nova sensibilidade à violência, quando se fala em pedofilia,
violação, ou maus tratos, revela uma outra figura da infância, a criança
vítima, que estrutura o imaginário, numa quase contigüidade com a figura da
criança-rei (Prost, 1981, Vigarello, 1998, Eliacheff, 1997, Javeau, 1994). Tal
debate reverbera nas problemáticas do controle social, e mais especificamente
da proteção à infância. Avizinha-se então, em virtude da interpelação do objeto
social, desse outro campo da sociologia, até então vinculado essencialmente à
sociologia do direito ou ao campo penal (Chauvière, Lenoêl, Pierre, 1996).
Diante da acuidade do debate na mídia, do discurso intelectual e do debate
político surge uma profusão de relatórios oficiais, como o de Théry, Casal,
filiação e parentesco hoje: o direito em face das mutações da família e da vida
privada, ou aquele de Fabius e Bret, Direitos
da criança, os novos espaços a conquistar,
que consagram uma parte muito importante à separação existente entre a evolução
do direito e a transformação do estatuto da criança. Um conjunto de fatores,
retomado das pesquisas, é mobilizado: baixa da nupcialidade, crescimento da
natalidade fora do casamento, baixa da fecundidade, precariedade das uniões,
envelhecimento das uniões. Entre esses indicadores demográficos das principais
características da evolução da família contemporânea, dois dizem respeito mais
diretamente à criança, dois determinam seu modo de vida e o último relativiza
seu peso na estrutura demográfica; por isso a necessidade de uma junção e uma
articulação com a demografia e a sociologia da família para identificar a
evolução do lugar da criança.
Com a aparição da
noção do interesse da criança nos processos de divórcio, diferenciando-se a
parentalidade da conjugalidade na construção do casal, o surgimento da criança
significa agora a constituição da família, o que leva juristas e sociólogos a
afirmar que "o princípio de indissociabilidade se deslocou para a
filiação" de modo a sustentar a incondicionalidade do elo de filiação como
elo social.
A criança se torna
pois o centro da família. Do mesmo modo, ela é situada, segundo uma diretriz
básica "no centro do sistema educativo" por uma estranha translação:
após ter desaparecido atrás da figura republicana do aluno encerrado numa
instituição fechada, "a criança no centro" se torna um lugar comum
pedagogicamente correto (Rayou, no prelo), que deveria ser capaz de reunir a
comunidade educativa, numa obra comum.
A causa das crianças
se torna pois uma grande bandeira, contribuindo sim para a tessitura do elo
social, mas com maior freqüência para o seu remendo, de modo a dissimular
muitas ambigüidades atrás de um consenso aparente que convém explorar de
maneira sistemática, seja ele no nível do imaginário ou das práticas sociais.
UM
CONVITE À VIAGEM NO PAÍS DA INFÂNCIA
Tentamos nos dois
números da revista Éducation et Societés sobre
a Sociologia da Infância reunir artigos que apresentassem tendências atuais da
pesquisa: alguns foram concebidos a partir de trabalhos que se apresentam como
contribuição à emergência de uma sociologia da infância, outros se agrupam
partindo de preocupações paralelas, de ligações institucionais diferentes. Essa
escolha reflete, como vimos, o estado do campo na sociologia de língua francesa
e permite conhecer as formas como hoje se apresenta. O dossiê é pois construído
sobre uma aposta: contribuir para situar as tendências na construção do campo,
apresentando trabalhos que ilustrem, demonstrem e concretizem os eixos de
reflexão em curso, apresentando pesquisas originais.
Constatar-se-á de
imediato que poucos artigos se referem ao sistema escolar, já que para um
grande número de autores francófonos, trata-se justamente de uma tentativa de
desescolarização da sociologia da educação para abordar o conjunto dos
processos de socialização. Diversidade teórica e complementaridade presidiram a
construção deste número, não apenas para fazer de Éducation
et Societés um ponto de encontro da evolução da sociologia, mas
para avançar na construção do objeto, mostrando sua articulação com a
sociologia geral. Do mesmo modo, essa preocupação com a complementaridade
presidiu à organização desses estudos, pensando-se na articulação de diferentes
instâncias de socialização, escola, família, pares, da esfera pública e da
privada, das abordagens sócio-históricas e análise do imediato, das formas de
abordagem das práticas sociais, sejam elas originadas da observação das
práticas da vida cotidiana ou das representações sociais e do imaginário.
Para apresentar esses
trabalhos, partiu-se, pois, das proposições teóricas precedentemente evocadas,
que tentam construir a armação atual de uma sociologia da infância, situando em
relação a elas a contribuição específica desses textos.
A
criança ator
O artigo de Patrick
Rayou, intitulado "Um mundo de verdade, a construção das competências
infantis na escola", situa-se na corrente de pesquisa que considera a
criança como um ator e analisa a constituição do ofício de criança.
Socialização política
e aprendizagem da cidadania são objeto atualmente de uma renovação da pesquisa,
seja na análise de dispositivos como os conselhos de classe, conselhos
municipais de crianças ou parlamento das crianças (Vulbeau, 1998) ou no
interesse pela constituição das competências.
A questão aqui
proposta refere-se à construção das competências políticas infantis num quadro
preciso, a escola primária. Como aqueles que são considerados como não tendo
ainda uma palavra política podem construir suas competências? O que então a
noção de "competências políticas" pode oferecer para esclarecer esse
processo e erigir a criança como ator no interior de um sistema explicativo
sociológico? A noção de competências políticas sendo entendida como a de "capacidades
para organizar uma vida social ordenada com valores compartilhados"
mediante o aproveitamento da experiência, tanto do pátio de recreação como da
sala de aula, coloca em discussão formas elementares ou ordinárias da cidadania
e do elo civil.
Essa análise da experiência
das crianças baseada no ponto de vista construtivista demonstra a possibilidade
metodológica e teórica de fazer falar as crianças na faixa da escola primária e
de apreender a maneira como elas produzem o sentido e o social. Considerar as
crianças não apenas como seres em devir, mas num momento intermediário, permite
saber como se constroem normas e valores numa sociedade infantil dentro da
escola.
A
construção social da infância
Dois pontos de vista
estão presentes aqui: o primeiro se ancora na esfera privada, o outro na esfera
pública, a fim de analisar os dispositivos de responsabilização institucional
em relação à infância e de delegação do trabalho de socialização fora da
família. Investigam-se nesses dois textos os modos de construção do elo social
pela introdução do lugar da criança na organização das sociabilidades
ordinárias.
Para começar, na
esfera privada, de que modo se constrói o vínculo social em torno da criança
como objeto e como ator? Em que a problematização do dom permite dar conta da
economia das trocas simbólicas e materiais em relação à criança? Essa é a
questão principal do artigo de Monique Buisson e Françoise Bloch, "A
guarda remunerada da criança, suporte do valor de vínculo". Tal trabalho
não surgiu de uma reflexão sobre a sociologia da infância, mas mostra como a
reintrodução de um elemento da relação, a criança, enfim considerada em sentido
pleno, pode permitir compreender as trocas simbólicas que suscita nas relações
intergeracionais e nas redes de sociabilidade.
Na esfera pública,
uma abordagem histórica é proposta por Dominique Dessertine e Bernard Maradan:
"A socialização da criança fora da escola: a belle
époque dos patronatos (1900-1939)". Se bem que a obra
pioneira de Ariès tenha aberto o caminho para as Ciências Sociais, foram
realizados poucos trabalhos de história contemporânea, como notam os autores
numa rápida revisão introdutória da literatura. Essa contribuição representa um
dos raros estudos históricos franceses concernindo precisamente a infância e
não a primeira infância ou a juventude. Essa pesquisa parte de uma pergunta:
como as políticas públicas constroem os modos de socialização da infância? Como
se constitui a malha do tecido social? Como se organiza o tempo da criança fora
do tempo escolar, esse tempo livre tão cobiçado (Mollo-Bouvier) pelas políticas
sociais? O exemplo escolhido, longe de ser marginal, atinge uma criança entre
duas na cidade de Lyon e tem a ver com a atualidade política. Nesse momento em
que as questões sobre a gestão do tempo da criança em matéria de política da
cidade e de organização do emprego do tempo escolar são o assunto principal da
mídia e obrigam os poderes públicos a uma redefinição da participação das
instâncias de socialização que se ocupam da infância, esse artigo ganha atualidade.
É particularmente interessante observar que esse trabalho histórico, cujo
objetivo inicial é a análise de políticas públicas referentes à infância, sejam
elas confessionais ou laicas, mostra a criança como ator em sentido pleno, como
usuário das ofertas que lhe são feitas numa lógica competitiva mas sempre
controlada. Não se pode deixar de estabelecer um paralelo com a utilização
atual pelas famílias da rede escolar pública e privada, mas parece que aqui são
a criança e seu grupo de pares os atores principais dessa reinflexão do
sentido, atuando como mediadores culturais ou políticos. A criança
"caçador furtivo das práticas culturais" coloca o problema das
estratégias do pobre muito bem descritas por Certeau na Invenção
do cotidiano. Problema teórico e problema
metodológico se cruzam, o recurso aos arquivos orais, às lembranças de
infância, ao relato autobiográfico permite articular aquilo que os sociólogos
qualificariam de ponto de vista macro e ponto de vista micro, deixando ver o
trabalho do ofício de criança na organização de seu emprego do tempo. Essa
perspectiva se reflete em duas outras contribuições que colocam o problema da
construção das temporalidades (Mollo-Bouvier) e da utilização das lembranças de
infância no relato autobiográfico (Gullestad, a ser publicado no número três).
A
construção de um imaginário social
Pela análise do caso
Dutroux, das reações públicas que se seguiram, assim como da mídia, Claude
Javeau propõe um ensaio de sociologia bem candente, que intitula "Corpos
de crianças e emoção coletiva". Eis aí reintroduzidos a vertente do
imaginário social por meio do "peso das palavras, do choque das
fotos" ou o duplo peso do debate social sobre a infância e sua tradução na
mídia. Peso particularmente importante numa época qualificada por alguns como o
século da criança. É uma criança que inaugura o século vinte das Ciências
Sociais, lembram-nos os historiadores fazendo referência ao pequeno Hans de
Freud. O lugar da criança no imaginário social contemporâneo foi, assim,
caracterizado — segundo momentos e autores — entre duas dimensões extremas, a
do "rei" e a da "vítima" (Prost, 1981, Eliacheff, 1997,
Vigarello, 1998). Mas qualquer que seja a evolução do discurso e das
sensibilidades, no centro dessas análises figura com clareza a criança, não
somente como um bem raro, mas também como uma pessoa. De resto, essa presença
do corpo da criança e de sua inocência marca as modificações da sensibilidade
coletiva. Se a análise proposta se fundamenta numa análise da evolução das
mentalidades, ela volta a situar esse assunto no contexto nacional belga,
permitindo ao mesmo tempo identificar o lugar da infância num período e numa
situação histórica.
Ponto
de vista sobre a cultura da infância
Na intersecção de uma
análise da socialização infantil e da construção da ordem social, André
Petitat, dando continuidade a seus trabalhos sobre o segredo, propõe uma
interpretação interacionista dos contos, "A infância: contos, segredos e
reversibilidade simbólica: uma abordagem interacionista dos contos", a ser
publicado no n.3. Ele visualiza esse elemento da cultura da infância baseado na
análise da dinâmica do ocultamento/desvelamento nas interações. Considera os
contos como representações divertidas ou dramáticas de nossas virtualidades
relacionais. O conto é considerado como uma viagem simbólica, mobilizando os
recursos do imáginário nas virtualidades da reversibilidade.
Outro elemento da
cultura infantil, os rituais. Historiadores e sociólogos afirmam observar com
freqüência uma desritualização de nossas sociedades ocidentais, onde a infância
era tradicionalmente descrita por seus rituais de passagem. Não se poderia
pensar, então tratar-se, ao contrário, de uma cegueira dos pesquisadores quanto
à vida cotidiana contemporânea? Alguns trabalhos recentes na intersecção da
antropologia e da sociologia da infância, ao se debruçar sobre a vida
cotidiana, analisam novos modos de ritualização profanos, como o início do ano
escolar, o batismo da boneca ou o café da manhã. Assim, considerando-se uma
pesquisa etnográfica centrada no "aniversário" como ritual de
socialização e representação da infância contemporânea, o artigo de Régine
Sirota, "O aniversário, um manual de civilidade da infância
contemporânea" (a ser publicado no n.3), analisa a construção desse ritual
em termos de cultura infantil. Como, na França contemporânea, nascem e se propagam
novos rituais da infância?
Constroem-se assim
manuais de civilidade, na conjunção de diferentes esferas (esfera da mídia,
esfera científica, esfera cultural, esfera escolar, esfera familiar...), no
sentido de se editarem regras de conduta, regras de civilidade, as quais traçam
maneiras de fazer e de ser da infância contemporânea.
Olhares
sobre a construção científica do objeto
A criança, uma variável em si
Um dos primeiros
desafios das análises estatísticas atuais que contribuem para a sociologia da
infância é fazer emergir a criança de sua invisibilidade estatística, quer
dizer, mostrá-la enquanto tal, objeto ou ator, e não mediante intermediários de
outras categorias. O problema se coloca em dois níveis: de um lado a construção
de bases estatísticas pelos grandes organismos e por outro o tratamento da
variável como tal. Segundo Desrosières, "a estatística é produzida a
partir do momento em que uma questão é socialmente julgada social, quer dizer,
julgada pela sociedade como dependente dela. Na França, a natalidade é julgada
social, na Inglaterra, muito menos. Por isso a existência do Instituto de
Estudos Demográficos francês, não existindo nenhum correspondente do outro lado
da Mancha (...) Se as violências contra as crianças dão lugar a estatísticas, sendo
que isso não ocorria há vinte anos, é que elas são hoje socialmente julgadas
mais sociais" (Desrosières, 1998).
As transformações dos
modos de vida familiares levaram assim a demografia a reconstruir uma variável
que ela ignorava até então, mas que parece se tornar incontornável, pois
aparece como o único ponto fixo da célula familiar.
O artigo de Patrick
Festy, "A criança na família: análise demográfica", reexamina de um
ponto de vista demográfico as conseqüências das modificações do meio ambiente
familiar sobre o lugar da criança na família, com base nos trabalhos do Ined e
de uma comparação França-Canadá. Se os demógrafos ousaram declarar, por ocasião
da celebração do ano da família, que a criança se torna o único ponto fixo da
família, isso leva os pesquisadores a tirar a criança de sua invisibilidade
estatística (Qvortrup, 1994), como uma variável esquecida, para retomar a
expressão de Goffman. Tirar da invisibilidade estatística a categoria criança
permitiria identificar os novos nichos ecológicos onde vivem atualmente as
crianças. A descrição estritamente estatística se esforça por medir essa
evolução, pois uma proporção significativa de crianças vive uma parte ou a
totalidade de sua minoridade numa situação diferente daquela tradicional
oferecida pelos pais casados. Qual é o impacto das novas formas de vida
familiar produzidas pelo divórcio, a concubinagem, o nascimento fora do
casamento e as recomposições familiares sobre a vida das crianças? No entanto,
esses dados, se bem permitam medir a evolução dos modos de vida, não permitem
por sua vez inferir as conseqüências exatas. Permanece uma questão de vulto: se
a infância é definida como uma "travessia" de situações, qual é então
o impacto dessa evolução?
Rediscussão
das variáveis clássicas
Concebida, de início,
como uma contribuição teórica para a construção de uma sociologia da infância,
a reflexão de Suzanne Mollo-Bouvier, "Os ritos, os tempos e a socialização
das crianças", se fundamenta num conjunto de pesquisas onde uma das
preocupações é a articulação da psicologia e da sociologia na análise da
socialização. A autora estuda e revisita as implicações da construção
intelectual sobre a especificidade da infância com base na construção de suas
temporalidades. Se muitas críticas foram feitas a propósito da pobreza das
concepções psicológicas subjacentes aos discursos sociológicos, o buraco
deixado pela exclusão dos fatores sociais e de sua análise sociológica no
discurso psicológico é evidenciado. Longe de se restringir a uma questão
teórica, S. Mollo-Bouvier discute os efeitos sociais da tradução em
dispositivos institucionais de um discurso científico construído independentemente
de toda dimensão social e, mais precisamente, das arbitrariedades temporais
assim produzidas quanto à gestão institucional da infância. Desse ponto de
vista, não se discute apenas a significação dos grandes recortes do início da
vida, mas também os pequenos e ínfimos recortes da vida cotidiana. Essas pistas
de trabalho, longe de calar a discussão, demonstram a amplitude do terreno que
se abre. Como desse ponto de vista se rearticulam discursos científicos e
construção social das temporalidades na gestão da infância?
É por isso que
solicitamos a uma socióloga escandinava para retomar um trabalho sobre as
lembranças de infância (a ser publicado no número três). Baseada em uma síntese
internacional "A infância escrita: modernidade e construção do eu nos
relatos de vida", Marianne Gullestad rediscute no plano teórico e
metodológico um aspecto "natural" do trabalho sociológico — as
lembranças de infância — no quadro dessa abordagem sociológica específica que é
a abordagem biográfica. Enquanto esses trabalhos centrados na memória familiar
se desenvolvem, as lembranças de infância constituem uma parte essencial das
histórias de vida, mas esse fato é raramente levado em conta. À medida que vai
se redescobrindo o método das histórias de vida, sua análise se enriquece e se
torna mais problemática, pois seu ponto de vista se situa na intersecção da
crítica literária, da história social, da psicologia e da sociologia. Parece
pois importante dar atenção aos meios com os quais as experiências da infância
são utilizadas como recurso para construir o self moderno,
em relação com a vida privada, e a parte que eles ocupam na construção da vida
social.
Sobre
o uso de um novo objeto sociológico
A fim de suscitar o
debate sobre a emergência desse objeto e de apresentar as visões
contraditórias, solicitamos duas intervenções, começando pela de Jacques
Commaille, cujo trabalho se intitula "Contra uma sociologia da
infância". O autor se pergunta, em termos de sociologia das ciências,
sobre o significado do surgimento de uma sociologia da infância. Que recortes
de territórios ela questiona? A que lógicas de demandas sociais corresponde
esse surgimento? A que conjuntura científica? Quais os perigos?
Depois, a fim de
identificar a evolução do objeto e da demanda social a propósito de uma
sociologia da infância, optamos por apresentar o ponto de vista de um ator
político, Christian Nique, presidente da Associação dos Alunos da Escola
Pública, que acaba de construir um Observatório da Infância. O objetivo é de
verificar a articulação desse projeto com a atualidade científica em torno da
questão: "Por que um observatório da infância?"
ALGUMAS
REFLEXÕES E INTERROGAÇÕES À GUISA DE CONCLUSÃO PROVISÓRIA
Observa-se a
diversidade de quadros teóricos de referência dos trabalhos publicados nesses
números, demonstrando quantos vaivéns teóricos entre sociologia geral e campo
especializado são necessários. Como afirmamos de início, não pretendemos em
absoluto impor um quadro teórico, mas contribuir para a estruturação de um
campo.
Esse campo é
diferente ou específico da sociologia da educação? Ele vai além? Engloba-a? No
estado atual de recorte e de fragmentação devido, em parte, à
hiper-especialização e por outra parte aos costumes científicos que induzem à
constituição de territórios legítimos, a questão se coloca plenamente. Deter-se
nele, leva obrigatoriamente a uma recomposição ou pelo menos ao diálogo, pois
justamente o sentimento de sua falta leva à identificação das brechas do
raciocínio. Primeira necessidade: desescolarizar a abordagem da criança; a
análise da socialização não pode se ater simplesmente aos problemas colocados
pela escolarização, seja em termos de políticas públicas, ou de modos de
freqüência.
Vários autores
sublinham a dificuldade de institucionalização desse campo. Percorrerá ele o
mesmo itinerário que o gênero? A dificuldade de aceitar a conceituação do
ofício de criança lembra a dificuldade para as feministas de fazer aceitar a
produção doméstica como uma produção econômica. Estabelecendo analogia entre a
categoria infância e o futuro do gênero, pode-se perguntar se ela se tornará
uma categoria analítica ou um objeto empírico de análise?
É possível considerar
que se trata de um campo próprio, de um novo objeto? Solicitar uma recomposição
disciplinar para melhor identificar um objeto levaria necessariamente à criação
de um campo particular? Numa primeira etapa, isso certamente permite fazer
emergir um objeto que os recortes disciplinares deixaram esquecidos na sua
unidade e na sua especificidade. Sem dúvida, clamar por ele permite jogar com a
atração da novidade e construir a legitimidade de um objeto cuja emergência
sempre foi marcada pelo menosprezo. Mas se sua rentabilidade, o poder de
questionamento que ele suscita, permitem um aprofundamento de questões clássicas
como as relações entre gerações, a construção do lugar social, a socialização,
as relações de dominação, abrirão também um campo novo de questionamento? Não
se pode, a esse respeito, esquecer completamente que a construção das pequenas
coisas do homem está também no coração da construção do social, tanto na sua
função de transmissão quanto de invenção do futuro.
Não se trata aqui de
simplesmente opor uma ideologia subjacente da proteção a uma ideologia da
autodeterminação, mas trata-se de compreender aquilo que a criança faz de si e
aquilo que se faz dela, e não simplesmente aquilo que as instituições inventam
para ela.
Vários problemas
permanecem em aberto:
- como tratar os obstáculos epistemológicos
suscitados pela apreensão da categoria criança como categoria social em
sentido pleno, a fim de se afastar de uma visão mais estritamente
ideológica?
- sobre quais metodologias se apoiar para
alcançar as experiências das crianças e dar conta delas? Pode-se apontar,
a esse respeito, a pequena quantidade de trabalhos em língua francesa que
se debruçam sobre esse problema comparando-se com a literatura de língua
inglesa. Será a abordagem etnográfica a mais pertinente?
- que terreno ceder para a exploração da
infância "ordinária" em relação à infância sofrida, a fim de
verificar a evolução geral da construção social da infância? Como, ao
contrário, verificar a multiplicidade das infâncias, segundo os contextos sociais?
Quais são as variáveis pertinentes?
- qual é o peso dos efeitos de geração e dos
contextos específicos?
- em que medida a criança é produto? é produtor
numa sociedade onde se acentuam individualização e incerteza? Como se
constrói a cultura da infância? Quais são as especificidades desse grupo
sociológico?
- em que medida a aparição desse objeto pode ser
uma contribuição para a evolução da sociologia da educação e da sociologia
geral? Como ver a articulação com a totalidade das ciências humanas, pois
a acuidade do debate social sobre a proteção e a gestão da infância
solicita tanto uma reflexão de filosofia política quanto um esforço de
investigação empírica.
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Artigo publicado
originalmente na revista Éducation et Societés, n.2, p.9-33, 1998, sob o título:
"L'Émergence d'une sociologie de l'enfance: évolution de l'objet,
évolution du regard".
Foi suprimido desta edição pequeno trecho introdutório relativo à origem do
número especial da edição francesa em que o artigo foi primeiramente publicado,
uma vez que os textos aos quais ele se reporta não se encontram disponíveis
para o nosso leitor. Os títulos dos artigos mencionados no texto foram
traduzidos para o português; para o título original, ver a bibliografia (N.da
E.)
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