O caso é conhecido, mas, a julgar pela proliferação de coisas sem sentido e tolices que têm emergindo pelo mundo acadêmico atualmente, parece ter caído no esquecimento ou algumas pessoas dele nunca ouviram falar. Convém (re)lembrar. Corria o ano de 1996, quando o físico Alan Sokal (Universidade de Nova Iorque) publicou um artigo recheado de disparates na pós-moderna revista Social Text, um artigo sem fundamento, composto por um amontoado de gritantes equívocos conceituais, mas numa linguagem ao "gosto de seres de outro planeta" e plena de jargões que fazem a festa das limitações pós-modernas. O artigo chamava-se Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity (numa tradução direta, Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica). Dentre outros embustes, o texto de Sokal realçava, por exemplo:
"Nunca, na história da filosofia, uma vitória foi tão completa como a que goza hoje a epistemologia pós-moderna, em especial sua vertente relativista. Por meio da expansão cognitiva imbricada no indeterminismo quântico e na teoria do caos, a ciência pós-moderna abole o conceito de realidade física e privilegia a não-linearidade e a descontinuidade. Ao mesmo tempo, por meio do (meta)cruzamento dos conceitos, desconstrói e transcende as distinções metafísicas cartesianas entre humanidade e Natureza, observador e observado, sujeito e objeto. Baseia sua perspectiva ontológica sobre a trama dinâmica das relações entre o todo e as partes; no lugar de essências individuais fixas, conceitualiza interações e fluxos."
E mais:
"Em nenhum lugar esse movimento pode ser identificado mais claramente do que na teoria quântica da gravitação. Pesquisas recentes nessa área, alimentadas pela metacrítica do desconstrutivismo, têm liberado a investigação científica de seus velhos pressupostos objetivistas e, em consequência, trazido a física para uma crescente harmonização com as humanidades. Tão íntima é essa aproximação que, por exemplo, as teorias psicanalíticas de Jacques Lacan encontram confirmação em investigações realizadas no terreno da teoria quântica de campos. E é sintomático observar a dívida da nova física para com o trabalho de pensadores desconstrutivistas, como é exemplo paradigmático a teoria da estrutura e dos signos no discurso científico, de Derrida."
A bazófia é grande. Mas, nesse amontoado, é dito, entre outras barbaridades, que a realidade física não existe e que uma área de pesquisa que lida com o micromundo (a teoria quântica de campos) estaria surgindo não só inspirada nos escritos de Derrida como, também, proporcionando suporte às especulações de Lacan e, mais ainda, dando apoio a uma física com implicações para a cultura e a prática política. Qual era, contudo, o objetivo de Sokal? Ele próprio revelou numa publicação em outro periódico (Língua Franca): disse que o artigo era, propositadamente, uma frande, e que ele pretendeu demonstrar que determinadas perspectivas pós-modernas não passam de um ajuntamento de chavões sem sentido, com graves equívocos conceituais, que primam por uma linguagem incompreensível, e que valorizam tudo evidencie citações dos seus teóricos. O vexame então foi grande para a revista Social Text e os seguidores das suas abordagens. Quanto a Sokal, aproveitou-se do fato e escreveu, junto com o belga Jean Bricmont, o livro Imposturas Intelectuais, onde são tratados em pormenor os referidos embustes. A seguir, uma resenha do livro.
Imposturas Intelectuais (Rio de Janeiro, Editora Record, 2006, 322 págs)
Resenha - Fonte: http://criticanarede.com/imposturas.html
Por Roberto Fernández
“Impostura”, de
acordo com o dicionário, significa “embuste, engano artificioso; afetação de
grandeza; superioridade, orgulho, confinante com a empáfia e a bazófia”. Os
cientistas Alan D. Sokal (Universidade de Nova Iorque) e Jean Bricmont
(Universidade Católica de Lovaina, Bélgica) sustentam que intelectuais de
renome, associados à corrente convencionalmente conhecida como
“pós-modernismo”, têm incorrido sistematicamente em “abusos reiterados de
conceitos e termos provenientes das ciências físico-matemáticas”, a ponto de
constituírem verdadeiras imposturas intelectuais. Podem ser identificados
quatro tipos de abusos:
1.
“Falar abundantemente de teorias das quais se tem,
no máximo, uma vaga idéia”;
2.
“Importar noções das ciências exatas para as
ciências humanas sem dar a menor justificação empírica ou conceitual”;
3.
“Exibir uma erudição superficial ao jogar, sem
escrúpulos, termos especializados na cara do leitor, num contexto em que eles
não têm pertinência alguma”; e
4.
“Manipular frases desprovidas de sentido e se
deixar levar por jogos de palavras”.
Neste polêmico livro,
os autores fundamentam suas teses mediante numerosas citações, organizadas por
autor (Lacan, Kristeva, Irigaray, Latour, Baudrillard, Deleuze e Guattari e
Virilio) e por tema (caos, teorema de Gödel, relatividade restrita).
Sokal e Bricmont
não se atêm a pequenos erros ou imprecisões isoladas ou àquelas próprias de um
uso metafórico no discurso literário ou poético. Pelo contrário, nos autores
analisados, as teorias e conceitos científicos jogam um papel não marginal,
seja porque são usados nos fundamentos das suas teorias (Lacan e Kristeva),
seja porque são precisamente o objeto de estudo (Irigaray, Latour, Deleuze e
Guattari); em todo caso, seu uso contribuiu para que fossem elogiados por seu
“rigor”, “extrema precisão”, “erudição surpreendente” e juízos similares.
A lista de
exemplos é longa e bem documentada. Atribui-se ao psicanalista Jacques Lacan o
abuso de tipo 2, quando declara, sem fundamentação lógica ou empírica, que o
toro (estrutura topológica correspondente a um anel) é “exatamente a estrutura
do neurótico” e que outras estruturas topológicas correspondem a outras
patologias mentais. Seu uso dos números imaginários é declaradamente feito como
metáfora, mas conduz a afirmações curiosas como: o “órgão eréctil (…) é
igualável à raiz de -1”. Os textos em que Lacan recorre à lógica matemática,
por outra parte, são considerados exemplos dos abusos 2 e 3 ao mesmo tempo:
“Lacan exibe diante de não especialistas seus conhecimentos de lógica
matemática; mas (…) a ligação com a psicanálise não está sustentada por lógica
alguma”. Sokal e Bricmont absolvem Lacan dos abusos de tipo 1, ainda que em
certos textos ele apresente uma definição incorreta de conjuntos abertos,
definições sem sentido da noção de limite e de conjuntos compactos, e confunda
números irracionais com imaginários.
Os trabalhos sobre
lingüística e semiótica de Julia Kristeva ilustram também exemplos de abusos de
tipo 2 e 3. Conceitos matemáticos delicados são introduzidos sem que se
explique sua possível relação com a lingüística e revelando óbvia falta de
compreensão: o axioma da escolha, que justamente permite provar a existência de
conjuntos sem construi-los explicitamente, é invocado como implicando uma
“noção de construtividade”; a hipótese do contínuo é mencionada, se bem que o
conjunto de todos os livros possíveis seja apenas enumerável, e o muito popular
teorema de Gödel é interpretado exatamente ao contrário. A intelectual
feminista Luce Irigaray, por sua vez, num ensaio sobre o “subdesenvolvimento”
da mecânica dos fluidos (identificados com a feminilidade), confunde a
dificuldade matemática para obter soluções das equações de Navier-Stokes com a
“impotência da lógica” e demonstra não compreender que são derivadas usando
aproximações que excluem sua aplicação a escalas moleculares.
Jean Baudrillard,
Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paul Virilio valem-se de abusos de tipo 1 e 4.
Sokal e Bricmont selecionam extensas citações, inclusive uma de quase três
páginas, em que se justapõem numerosos termos científicos (atrator estranho,
exponencial, fractal, caos, singularidade, energia potencial, superfície
topológica, função, partícula etc.), em parágrafos intrincados e sem
concatenação lógica de argumentos, num jogo de analogias baseadas nos
diferentes sentidos vagamente atribuídos a esses termos na linguagem comum.
Os escritos de
Virilio são, talvez, os mais abertos à sátira. Por exemplo, no que diz respeito
ao papel das velocidades, confunde velocidade com aceleração e quantidade de
movimento com a equação logística. Mas Deleuze e Guattari providenciam ainda
outro tipo de exemplo importante. Em suas análises de filosofia da matemática,
retomam confusões devidas a Hegel (classificação errada de frações, noção de
função superada há 150 anos) e fazem uma descrição obscura e complicada do cálculo
infinitesimal, enquanto marcam a necessidade de uma “exposição rigorosa” de
seus princípios. Aparentemente, ignoram que tal exposição existe desde o início
do século passado.
O capítulo
dedicado a Bruno Latour é particularmente revelador, pois ilustra os riscos de
se tentar uma análise profunda a partir de uma compreensão superficial. Com o
propósito de demonstrar que a teoria da relatividade restrita é uma construção
social, faz uma leitura semiótica do livro Relativity, de Einstein,
no qual se apresentam os argumentos baseados em trens, observadores e sinais
luminosos, que todo estudante de física conhece bem. Latour engana-se e centra
sua análise em elementos puramente pedagógicos da exposição de Einstein. Por
exemplo, atribui grande importância à existência de três sistemas de referência
a uma só vez (isso pode acontecer ocasionalmente numa exposição didática, mas a
teoria trata da relação entre dois sistemas) e ao fato de os observadores serem
humanos (eles são humanos nos exemplos do livro de Einstein, mas na maioria dos
experimentos e fenômenos os “observadores” são instrumentos, discos de
computador e até partículas elementares), e confere um papel privilegiado ao
“narrador” (a teoria não tem sistema privilegiado nem “narrador”, se bem que a
exposição pedagógica precise de um).
De fato, a teoria
da relatividade conta com uma rica história de mal-entendidos por parte de
filósofos. Os que se originam na interpretação errada de Bergson são
especialmente persistentes, como fazem notar Sokal e Bricmont num capítulo
muito claro e explícito. Henri Bergson, por razões puramente filosóficas,
recusou-se a aceitar as noções einsteinianas de simultaneidade e tempo próprio
e procurou estender o princípio de relatividade às acelerações. Seus argumentos
conduzem a previsões que contradizem experiências atualmente conhecidas. No
entanto, os erros bergsonianos reaparecem na obra de filósofos posteriores,
como Jankélevich, Merleau-Ponty e Deleuze.
A teoria do caos é
outra vítima de maltrato em livros e ensaios bastante difundidos. Sokal e
Bricmont expõem e clarificam os erros mais típicos: o caos, quer dizer, a
sensibilidade às condições iniciais, não marca qualquer “limite” oucul-de-sac da
ciência; pelo contrário, tem aberto novas possibilidades de pesquisa. O caos
não significa o fim do determinismo (aparece em equações perfeitamente
determinísticas), ainda que obrigue a adotar um sentido probabilístico da
previsibilidade comparável ao adotado em mecânica estatística no último século.
O caos não significa um descrédito da mecânica newtoniana, mas sim o seu
renascimento. De fato, esta última, considerada o paradigma do “pensamento
linear”, leva a equações não-lineares, que algumas vezes exibem caos, se bem
que a mecânica quântica, considerada mais próxima do “pensamento não-linear”
preconizado pelos pós-modernistas, seja exatamente linear.
O livro é escrito
de forma direta, incisiva, sem ambigüidades, pedantismo, paráfrases ou elipses.
Sokal e Bricmont não se interessam pelo vôo literário nem pelas sutilezas
acadêmicas; querem apresentar seus pontos de vista sem dar lugar a dúvidas.
Explicam pacientemente os aspectos científicos (com ajuda de uma lista de
referências que pode ser de grande utilidade para os interessados em iniciar-se
nesses temas) e expõem com franqueza suas intenções: “defender os cânones da
racionalidade” e da honestidade intelectual. Sua posição filosófica contraria o
relativismo cognitivo e questiona as teses de Popper, Quine, Kuhn e Feyerabend
(que nutrem o ceticismo epistemológico) e do “programa forte” em sociologia da
ciência. Essa franqueza algumas vezes chega ao limite da agressão verbal e
introduz no livro um tom quase fundamentalista, que pode provocar discussões
desnecessariamente marcadas pela emoção.
Mas o legado mais
importante deste livro é, precisamente, o catálogo de exemplos de erros, de
falta de compreensão e até de preguiça intelectual de pensadores
contemporâneos, quando analisam o conhecimento científico recente e não tão
recente. É um mostruário sólido, convincente, irrecusável, que tem existência
independente das opiniões dos compiladores. Está ali para que cada um ajuíze.
Compreensivelmente, na polêmica gerada pelo livro, ninguém põe em dúvida o fato
de que os erros apontados são realmente erros. As críticas referem-se antes à
relevância desses escritos na obra dos autores considerados e às intenções
finais de um livro como este. Sokal e Bricmont esclarecem que não ajuízam o
resto das obras dos autores analisados, mas apenas as referências à física e à
matemática (todavia, gostariam que outros, mais competentes, ajuizassem tendo
em conta as imposturas apontadas), nem discutem se as imposturas são
premeditadas ou de boa fé (o título do livro fala de “imposturas”, e não de
“impostores”). E, se bem Sokal e Bricmont confessem intenções filosóficas e até
políticas, elas não vêm ao caso.
Os exemplos no
livro falam por si. Para alguém com uma mínima formação científica, sugerem
diversas questões para debate. Será que o hiato entre as “duas culturas” de
Snow foi ampliado ou fossilizado? Será que todo um setor da intelectualidade,
cuja atividade se baseia no discurso, nas argumentações teóricas, no confronto
de pontos de vista, está perdendo a capacidade de compreender o método
científico submetido ao controle inexorável dos experimentos? Será que a
analogia injustificada e as “provas” por combinação de frases sugestivas são
uma metodologia aceitável nas humanidades? Será que os argumentos baseados na
precedência, inerentes às pesquisas nas humanidades, degeneraram-se num
princípio de autoridade que acha os erros de Hegel mais confiáveis que 150 anos
de desenvolvimento matemático? (Não é isso uma regressão aos tempos em que,
quando as observações discrepavam da doutrina de Aristóteles, se preferia esta
última?) Ou será que um verdadeiro menosprezo pela lógica e pelos
desenvolvimentos científicos tem sido instalado em estratos visíveis da
intelectualidade, perpetuado por círculos nos meios de comunicação inclinados a
modas ou não qualificados e amparado na falta generalizada de formação
científica, na indiferença (próxima ao pedantismo dos próprios cientistas) e
numa tradição humanista de tolerância e não comprometimento, que deixa nas mãos
do tempo a depuração do que vale?
É indubitável que
o trabalho de Sokal e Bricmont abre a oportunidade para um debate muito
saudável e necessário, o qual, se for desenvolvido com grandeza, pode inclusive
catalisar uma aproximação entre a ciência e as humanidades, em sua busca comum
da compreensão da natureza e do espírito humano.
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