A Ética de Aristóteles
e a Educação
Refletir sobre a concepção ética de
Aristóteles requer alguma investigação sobre seu modo de conceber a política.
Para nós, sujeitos do Brasil, ética e política são dois termos quase
contraditórios. Daí decorre alguma dificuldade para se pensar uma possibilidade
ética que, por ser projetada em relação à esfera social e, portanto, à esfera
pública, constitui um alicerce para apreender a cosmovisão do autor. Em ambos o
caso – ética e política – tratava-se de postular a obtenção da virtude.
Compreendendo o homem como um animal político, para os gregos, a idéia de
política - “quer radique na natureza quer nas convenções – prende-se à acepção
de liberdade, de ausência de um senhor” (RUSS, 1997, p.40). Como destaca
Victoria Camps, o protótipo do virtuoso em Aristóteles seria um suposto ser
ativo; ou seja, “a ação que leva a cabo inclui uma dose de contemplação e de
teoria, mas não é contemplação pura, a qual seria privativa dos deuses e não de
humanos para quem a ação é inevitável” (CAMPS, 1996, p.92). Por política
compreendia-se, pois, a forma de vida que melhor corresponde à condição humana,
embora, paradoxalmente, a atividade superior resida no campo da teoria pura: “o
sujeito da virtude é o homem público, posto que a vida privada carece de
interesse: é idion, idiota. Os homens são, sobretudo, cidadãos;
encerrados em si próprios, não viveriam uma vida racional nem humana” (CAMPS,
1996, p.93).
Apreender a idéia aristotélica de ética
requer, de qualquer maneira, algum deslocamento de nosso modo usual de perceber
o tema. Para Aristóteles, o objetivo da ética era a felicidade. A felicidade,
para ele, era a vida boa; e esta corresponderia – como veremos adiante – à vida
digna. Nessa direção, haveria uma subordinação da ética à política: “os
tratados éticos e os tratados políticos pertencem a um mesmo estudo,
classificado como política” (RUSS, 1997, p.39).
Aristóteles (384-322 a.C.) viveu na
Grécia do século IV a.C. Nasceu em Estagira, na Macedônia. Seu pai, que morreu
quando Aristóteles ainda era criança, chamava-se Nicômaco e ocupou o posto de
médico do rei da Macedônia. Muitos estudiosos atribuem a essa origem familiar o
interesse de Aristóteles por assuntos relativos às ciências naturais. Muito
jovem, Aristóteles entrou, aos dezessete anos, na Academia de Platão, onde
permanece por vinte anos; embora sua doutrina filosófica se caracterizasse pela
independência, distanciando-o de seu mestre. Após a morte de Platão,
Aristóteles deixa a Academia e, alguns anos mais tarde, é convidado por Filipe,
rei da Macedônia, para tomar a frente da educação do jovem Alexandre, herdeiro
do trono [1] . Quando
Alexandre assume o poder, Aristóteles regressa a Atenas, após mais de dez anos
de ausência. Fundaria, então, o Liceu, escola onde ensina até 322, quando –
após a morte de Alexandre da Macedônia em 323 – seu antigo mestre é “forçado a
deixar Atenas por causa de uma explosão de sentimentos antimacedônicos” (LUCE,
1994, p.114).
No Liceu, além de tarefas relativas ao
ensino, Aristóteles se dedicaria ao estudo e à sistematização de seus cursos,
para os quais - segundo Rodolfo Mondolfo - recolhia também materiais de teorias
filosóficas anteriores (MONDOLFO, 1973, p.7). Consta que o Liceu de
Aristóteles, além do edifício que o constituía, era célebre por seu jardim, ao
qual se acoplava uma alameda para caminhar; que os contemporâneos chamavam de peripatos:
“passeio por onde se anda conversando, motivo pelo qual a escola aristotélica
foi chamada peripatética, seja como referência à alameda, seja como referência
ao fato de que Aristóteles e os estudantes passeavam por ali discutindo
animadamente filosofia” (CHAUÍ, 2002, p.336).
Durante a Idade Média, o corpus
aristotelicus passaria para a Biblioteca de Alexandria, mantendo-se –
como informa Marilena Chauí – “do lado bizantino do Império Romano. Como
conseqüência, o corpus acabou sendo conservado, lido e
traduzido pelos pensadores árabes” (CHAUÍ, 2002, p.341). Foi, então, por
intermédio da presença dos árabes no Ocidente que grande parte do pensamento
aristotélico chegaria até nós [2] .
Acerca da reflexão ética de
Aristóteles, Jaeger considera a necessidade de apreensão de sua Ética a
Nicômaco e de sua Ética a Eudemo, posto que outros textos
também concernentes ao tema da ética constituiriam mais provavelmente coleções
organizadas e classificadas de excertos ou estratos das duas obras acima
referidas. Na prática – destaca Jaeger – teria ocorrido nítida predominância
dos estudos centrados sobre a Ética a Nicômaco, em virtude do fato
de seu texto ser compreendido usualmente como um trabalho superior e posterior
à Ética a Eudemo, tanto “na construção, na clareza do estilo e na
maturidade do pensamento” (JAEGER, 1995, p.262). Neste trabalho, temos a
intenção de investigar, pela apropriação do discurso ético de Aristóteles,
expresso em sua Ética a Nicômaco, algumas categorias que reputamos
interessantes e factíveis para se pensar o ato de educar. Nesse sentido,
procuraremos mobilizar do pensamento aristotélico alguns conceitos, tomados,
nesta oportunidade, como categorias operatórias. Tais conceitos são basicamente
os seguintes: virtude; justo meio; discernimento;equidade;
e amizade.
Em sua Política,
Aristóteles, reportando-se á Ética, destaca que sua idéia de
felicidade alia-se à identificação do melhor governo, compreendendo-se este
melhor governo como “aquele em que cada um melhor encontra aquilo de que
necessita para ser feliz” (ARISTÓTELES, Tratado da política, p.45)
Um Estado só pode ser feliz – nos termos de Aristóteles – caso se mantenha nele
virtude e prudência. Na vida coletiva, assim como na conduta individual,
Aristóteles entende o hábito como o grande princípio regulador da ação. Como
sublinha sobre o tema Solange Vergnières, Aristóteles situa o ethos como
o regulador, o princípio e o fim da conduta: “adquire-se tal ou tal disposição
ética agindo de tal ou tal maneira... O caráter não é mais o que recebe suas
determinações da natureza, da educação, da idade, da condição social; é o
produto da série de atos dos quais sou o princípio. Posso ser declarado autor
de meu caráter, como o sou dos meus atos” (Vergnières, 1999, p.105).
No Livro II da Ética a
Nicômacos, há um trecho que expressa, de maneira exímia, o intuito, o
propósito, o objeto e o sujeito do estudo da ética:
“Estou falando da excelência moral,
pois é esta que se relaciona com as emoções e ações, e nestas há excesso, falta
e meio termo. Por exemplo, pode-se sentir medo, confiança, desejos, cólera,
piedade, e, de um modo geral, prazer e sofrimento, demais ou muito pouco, e, em
ambos os casos, isto não é bom: mas experimentar estes sentimentos no momento
certo, em relação aos objetos certos e às pessoas certas, e de maneira certa, é
o meio termo e o melhor, e isto é característico da excelência. Há também, da
mesma forma, excesso, falta e meio termo em relação às ações. Ora, a excelência
moral se relaciona com as emoções e as ações, nas quais o excesso é uma forma
de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um acerto;
ser louvado e estar certo são características da excelência moral. A excelência
moral, portanto, é algo como eqüidistância, pois, como já vimos, seu alvo é o
meio termo. Ademais é possível errar de várias maneiras, ao passo que só é possível
acertar de uma maneira (também por esta razão é fácil errar e difícil acertar –
fácil errar o alvo, e difícil acertar nele); também é por isto que o excesso e
a falta são características da deficiência moral, e o meio termo é uma
característica da excelência moral, pois a bondade é uma só, mas a maldade é
múltipla” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.42)
Por virtude, Aristóteles
compreende uma prática. A virtude não é, portanto, natureza; e não haveria um
aprendizado suficientemente eficaz para garantir a ação virtuosa. A virtude,
contudo, seria a forma mais plena da excelência moral; e, por tal razão, não
poderia existir em seres incompletos ainda em formação, como as crianças. A
excelência moral, revelada pela prática da virtude, seria, antes de tudo, uma
disposição de caráter. Para o exercício da virtude seria, pois, necessário
conhecer, julgar, ponderar, discernir, calcular e deliberar. Ao contrário da
tradição socrática e platônica, não seria o mero conhecimento do bem que
poderia dirigir a ação justa. A virtude, como excelência moral, corresponderia
à idéia de uma razão reta relativa às questões da conduta. Ora, tal disposição
do caráter humano teria por suposto a precedência de uma escolha dos atos a
serem praticados; e de um hábito firmado pela repetição para conduzir a ação
reta. Nesse sentido, pode-se dizer que, na Ética de
Aristóteles, virtude é hábito – hábito construído pela contigüidade da relação
potência e ato:
“... em relação a todas as faculdades
que nos vêm por natureza recebemos primeiro a potencialidade, e, somente mais
tarde exibimos a atividade (isto é claro no caso dos sentidos, pois não foi por
ver repetidamente ou repetidamente ouvir que adquirimos estes sentidos; ao
contrário, já os tínhamos antes de começar a usufruí-los, e não passamos a
tê-los por usufruí-los); quanto às várias formas de excelência moral, todavia,
adquirimo-las por havê-las efetivamente praticado, tal como fazemos com as
artes. As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as
– por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam
citaristas tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos
justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente. Essa
asserção é confirmada pelo que acontece nas cidades, pois os legisladores
formam os cidadãos habituando-os a fazerem o bem; esta é a intenção de todos os
legisladores; os que não a põem corretamente em prática falham em seu objetivo,
e é sob este aspecto que a boa constituição difere da má.” (ARISTÓTELES, Ética
a Nicômacos, p.35-6)
O excerto acima confirma a perspectiva
aristotélica da virtude como uma faculdade prática; uma razão prática, na
medida em que não depende necessariamente de conhecimento teórico; mas que é
construída pelo hábito, pela ação propositadamente exercitada e repetida,
mediante uma faculdade já posta, em potência, no caráter do homem. O
comportamento seria, pois, o grande fator distintivo da ética; o modo de agir
perante os outros, perante si próprio, perante os que são próximos, perante a
Humanidade. A natureza da reta razão estaria potencialmente presente no ser
humano; cumpriria à trajetória da vida, por meio de escolhas traduzidas em
ações, atualizar tal potência. Tal deliberação exige, contudo, consciência e
discernimento; além de uma predisposição para a mediania – para a moderação. Em
geral, a escolha seria subordinada a emoções e a faculdades da alma. Nesse
caso, a tendência mais prudente – e, por decorrência, mais sábia – seria
recorrer ao que Aristóteles qualifica como justo meio; sempre
eqüidistante entre dois extremos.
Em relação ao medo e à temeridade, meio
termo é coragem. Em relação à fruição dos prazeres, haveria uma apropriada
moderação entre a insensibilidade na falta e a concupiscência no excesso. Ser
generoso corresponde à mediania entre prodigalidade e avareza. Entre a
pretensão e a pusilanimidade, o meio termo é a magnanimidade. Ser irascível é
excesso e ser apático é deficiência; o meio termo, no caso, seria a
amabilidade. Aristóteles supõe haver sabedoria nessa situação intermediária,
que nos inclina para o justo meio que às vezes se volta para o excesso e outras
vezes tende para a falta [3] . Pensar o
justo meio em educação seria prescrever a ação sensata aquilo que, nos termos
de Aristóteles, “não é demais nem muito pouco” (ARISTÓTELES, Ética a
Nicômacos, p.41); a mediatez eqüidistante entre dois extremos de que nos
fala Daniel Hameline; para quem, também em educação, “tudo se passa no
entre”... (HAMELINE, 1991, p.52-3).
A virtude ética requer escolha,
deliberação, discernimento; exatamente por se debruçar sobre coisas
passíveis de variação; e, portanto, contingentes. Ao contrário de realidades
expressas por princípios primeiros invariáveis, há uma parte dos objetos postos
diante da razão humana para os quais pode haver cálculo e deliberação
(SILVEIRA, 2001, p.48). Todavia, não é simples o cálculo; não é fácil a
escolha. Pelo contrário: “às vezes, é difícil decidir o que devemos escolher e
a que custo, e o que devemos suportar em troca de certo resultado, e ainda é
mais difícil firmar-nos na escolha, pois em muitos dilemas deste gênero o mal
esperado é penoso...” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.501). Para
Aristóteles, mesmo nos casos difíceis, que envolvem o dilema da moralidade em
seu limite máximo, o pior mal residiria na ação injusta, já que esta pressupõe
a deficiência moral do agente. E, de qualquer modo, não se pode esquecer que,
para Aristóteles, a felicidade, seja do Estado, seja do indivíduo, corresponde
ao exercício continuado da prática da virtude e da prudência; sendo “o melhor
governo aquele em que cada um melhor encontra aquilo de que necessita para ser
feliz” (Aristóteles, Tratado da política, p.45). Se a ação humana,
no plano dos valores, tem origem na escolha; e esta tem por fonte um raciocínio
dirigido a um fim, seria possível ao homem possuir “a percepção da verdade e a
impressão da falsidade” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.114),
sendo inteligência prática apreender a verdade conforme o desejo correto. Ao
deliberar sempre sobre um futuro necessariamente em aberto, o homem exercita a
habilidade que, de potência, se transmuta em ato: o discernimento. Para
refletir sobre essa faculdade, Aristóteles vale-se das características
intrínsecas às pessoas dotadas do atributo de saber discernir; são – de modo
geral – aquelas capazes de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para
si mesmas e para os outros em um sentido mais amplo. Tal habilidade possibilita
o reconhecimento do universal na contingência da situação particular. Por ser
assim, discernir é necessariamente deliberar sobre aspectos variáveis, cuja
escolha permitirá sempre especular sobre outras opções preteridas e não
acionadas. Discernir bem talvez seja, pelas palavras de Aristóteles, possuir e
levar às últimas conseqüências intuições e pressentimentos de vida
(ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.118):
“O discernimento, por outro lado,
relaciona-se com as ações humanas e coisas acerca das quais é possível
deliberar; de fato, dizemos que deliberar bem é acima de tudo a função das
pessoas de discernimento, mas ninguém delibera a respeito de coisas
invariáveis, ou de coisas cuja finalidade não seja um bem que possamos atingir
mediante a ação. As pessoas boas de um modo geral são as capazes de visar
calculadamente ao que há de melhor para as criaturas humanas nas coisas
passíveis de ser atingidas mediante a ação. Tampouco o discernimento se
relaciona somente com os universais; ele deve também levar em conta os
particulares, pois o discernimento é prático e a prática se relaciona com os
particulares. ... O discernimento se relaciona também com a ação, de tal modo
que as pessoas devem possuir ambas as suas formas, ou melhor, mais conhecimento
dos fatos particulares do que conhecimento dos universais.” (ARISTÓTELES, Ética
a Nicômacos, p.119)
Das considerações acima tecidas
decorre, no parecer de Aristóteles, a dificuldade dos jovens em relação à
prática do discernimento. “Não parece possível que um jovem seja dotado de
discernimento” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.120), justamente
pelo fato de esse tipo de sabedoria não se resumir ao conhecimento dos
universais; sendo – pelo contrário – a familiaridade com os particulares; o que
exige experiência; o que exige tempo de vida e de amadurecimento. Pode-se,
assim, encontrar exímios jogadores de xadrez ainda adolescentes; existem jovens
matemáticos brilhantes... Mas, para o caso da política - uma ciência prática -
dificilmente poderiam ser encontrados notáveis jovens estadistas. Não
correspondendo ao conhecimento científico dos universais, o discernimento
estaria atado ao fato particular – para o qual a argúcia da percepção seria um
predicado imprescindível. Capacidade de conjecturar, cálculo, rapidez de
raciocínio para o estabelecimento de inferências pertinentes, e, sobretudo,
correção na decisão. Para Aristóteles, em matéria de ética, há de lembrar que
existem formas variadas de errar; uma só de acertar.
É importante recordar que – como
salienta Ventós – agir bem, em Aristóteles, acarretaria felicidade,
compreendendo-se que ser feliz corresponde à realização de si; ou a tradução da
potência em ato: vida digna, vida do bem, autenticidade e ponderação [4] : “Para
Aristóteles, como vimos, é boa aquela ação que conduz à plenitude ou à
realização do que se é – ao exercício e desenvolvimento das próprias faculdades
e de todas as nossas possibilidades” (VENTÓS, 1996, p.58).
Além disso, são boas as ações que
dirigem a condição humana ao exercício da sua plenitude ou da realização.
Ninguém realiza sua essência enquanto potencialidade. É somente ao transformar
a potência em ato que poderemos desenvolver ao limite nossas faculdades
humanas, obtendo, por tal atividade, a suprema felicidade – contida na
auto-realização; nesse ideal intrinsecamente grego de se “realizar aquilo que
já se é” (VENTÓS, 1996, p.59). A generalidade das leis que os homens a si
próprios se promovem acarretam, para a especificidade de cada situação
particular, possíveis desigualdades e conseqüentes injustiças. Haveria, para
Aristóteles, uma faculdade capaz de, por si própria, corrigir tais desvios,
constituindo-se – sob tal enfoque – como ato fundamental de atualização da
justiça: a equidade.
“Chamamos de julgamento (isto é, a
faculdade graças à qual dizemos que uma pessoa julga compreensivamente) a
percepção acertada do que é eqüitativo. Uma prova disso é o fato de dizermos
que uma pessoa eqüitativa é, mais do que todas as outras, um juiz compreensivo,
e identificarmos a equidade com o julgamento compreensivo acerca de certos
fatos. E julgamento compreensivo é o julgamento no qual está presente a
percepção do que é eqüitativo, e de maneira acertada; e julgar acertadamente é
julgar segundo a verdade. Então é razoável dizer que todas as disposições
recém-examinadas convergem para o mesmo ponto; com efeito, quando falamos de
julgamento, de entendimento, de discernimento e de inteligência atribuímos às
mesmas pessoas a posse da faculdade de julgar e dizemos que elas chegaram à
idade da razão e têm discernimento e entendimento, pois todas estas disposições
se relacionam com o fundamental e com o particular; e ser uma pessoa de
entendimento e compreensiva consiste em ser capaz de julgar acertadamente os
fatos a propósito dos quais se demonstra discernimento, porque os atos
eqüitativos são comuns a todas as pessoas boas em sua conduta nas relações com
as outras pessoas.” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.123)
Pela equidade na ação particular se
poderia chegar ao gesto da equidade no seu sentido universal. Daí, mais uma
vez, a tônica do pensamento aristotélico demarcar a virtude como um hábito, que
só se consolida na ação. Por não se tratar de assunto invariável, não seria
tema ensinável enquanto saber teórico. Seria, antes, um rol de costumes a ser
repetidamente exercitado para com as gerações mais jovens, com o fito de que
estas venham a adquirir a força moral extraída de três estratégias educativas
essenciais: “exortação, exemplo e envolvimento” (MARQUES, 2001, p.50). Sob tal
tripé estaria colocada a missão do educador quanto à formação dos valores:
trata-se de crenças, de formação de hábitos, de constância, de perseverança, de
uso repetido, de exercício refletido, de exemplos a serem seguidos, de ações
ponderadas nas trilhas de um percurso sempre e inevitavelmente incerto...
Note-se que Aristóteles reconhece a
força da imitação como elemento fundador da vida social e, mais
especificamente, do ensino. A idéia condutora de tal concepção corresponderia
ao anseio de buscar “que a criança se esforce e se erga ao estado de homem”
(ALAIN, 1978, p.12). Mais do que conhecer a criança para instruí-la, parecia
necessário instruir a criança para conhecê-la. Conferindo sentido pedagógico à
valorização aristotélica do gesto de imitar, Alain dirá o seguinte:
“Só existe um método para inventar: é
imitar. Só há um método para bem pensar: é continuar algum pensamento antigo e
experimentado. Essa idéia é seu próprio exemplo, circunstância favorável à
reflexão. Porque parece inicialmente muito comum e bastante fraca. Mas também
só é totalmente familiar a quem tem o costume de olhar muitas vezes atrás de
si. E se chegarmos a percorrer novamente o caminho que vai dos mitos às idéias
e o caminho ainda mais antigo que conduz dos ídolos aos mitos, é então somente
que compreenderemos toda a idéia, e como todos os homens pensaram
sucessivamente como que no interior de um mesmo pensamento, até tocar e
esclarecer enfim o mundo insensível das pedras, dos metais e dos ventos.”
(ALAIN, 1978, p.133)
Pela mesma referência, Azanha indagará
das auto-proclamadas pedagogias renovadas – sempre ativas, presentes,
atualizadas de acordo com os tempos e, invariavelmente, com a mesma integral
disponibilidade para revolucionar a escola – qual seria o valor abstrato das
idéias de originalidade e de criatividade, quando aplicadas à matéria
educativa: “ser criativo, no fundo, é ser divergente. Mas ninguém diverge
simplesmente, sem pontos de referência. Diverge-se de alguma coisa, de um
modelo, de uma opinião, de uma idéia. ... Não atentando para isso, iludem-se os
tolos pedagogos da criatividade” (AZANHA, 1987, p.54); até porque, além de
imitação, o aprendizado do olhar também requer o hábito continuado, o
exercício, por vezes fatigante, os usos e os costumes da prática...
“Daí volto à minha idéia de que é
preciso ajudar a criança, dirigi-la, conduzi-la, e de que é por esse meio que
faremos com que ela emita enfim seu pensamento próprio, coisa rara, coisa
preciosa pelo fato de que valerá para todos, assim como um verso de Homero.
Façamos uma simples tentativa, por uma carta, por um relato, por uma descrição,
de conduzir as pesquisas do jovem escritor, de convidá-lo a olhar por mais de
uma vez as coisas a respeito das quais deve escrever, de fazer com que leia, a
releia, repita bons modelos sobre os mesmos temas, de fazer com que reúna, por
grupos de palavras, o vocabulário de que terá de se servir. Veremos nascer
então a observação nova, a expressão matizada de um sentimento, as primeiras
marcas de estilo, enfim. E quanto mais tivermos auxiliado, mais inventará. A
arte de aprender se reduz, portanto, a imitar por muito tempo e a copiar por
muito tempo, como qualquer músico sabe, e qualquer pintor. E a escrita
apresenta esta importante verdade àqueles que sabem ver, porque a escrita das
pessoas mal instruídas são semelhantes, e as diferenças, quando existem, são
efeito de extravagância ou de acidente. Por outro lado, a escrita do homem
culto lhe é própria, apesar de ser mais submetida ao modelo comum”(ALAIN, 1978,
p.134).
Buscando, nessa digressão, encontrar a
atualidade do pensamento de Aristóteles para refletir sobre a prática
contemporânea da educação, não poderia deixar de assinalar um último aspecto,
que me parece essencial ao pensamento ético de Aristóteles: a idéia de amizade;
conceito – a meu ver – apropriado para pensarmos as questões de ética
profissional, postas em nosso convívio cotidiano. No Livro IV da sua Ética
a Nicômacos, Aristóteles vale-se de uma categoria introdutória, para
posteriormente desenvolver o tema da amizade. Diz que, em sociedade, mais
especificamente nas reuniões e nos encontros que proporcionam o convívio,
existiriam algumas pessoas consideradas amáveis. A acepção de amabilidade –
originada, talvez, pela intenção afável - corresponderia a um comportamento
padrão que revela uma pré-disposição para aceitar o outro, uma disponibilidade
para conhecê-lo, para agradá-lo, de maneira também a ser bem-vindo e bem
aceito. Essa disposição, diz Aristóteles, “ainda não recebeu um nome, embora
ela se assemelhe muito à amizade” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos,
p.84). O autor prossegue, assegurando que, “com o complemento da afeição, da
emoção e da convivência” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.84),
ser amável poderia ser um prenúncio do ser amigo. Porém, na carência desses
outros atributos, a amabilidade reduzir-se-ia a um “como se” da
amizade; “como se fosse” amizade (ALBERONI, 1992, p.53). Diz
Aristóteles que “as pessoas amáveis convivem com as demais da maneira certa,
mas é com vistas ao que é honroso e conveniente que elas visam a não causar
desgostos ou a contribuir para o prazer. Elas parecem efetivamente preocupadas
com os prazeres e desgostos no convívio social, e sempre que não lhes for
honroso ou for prejudicial contribuir para o prazer, elas se recusarão a
fazê-lo” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.85).
É no Livro VIII da Ética a
Nicômacos que Aristóteles ocupa-se de examinar a natureza da amizade.
Nessa direção, esclarece, de imediato, que amizade supõe convívio, semelhança,
tempo e intimidade. Contudo, se o amor é emoção, a amizade seria disposição de
caráter, o que justifica a racionalidade na escolha do elenco dos nossos
amigos. Amizade supõe, portanto, um pacto de reciprocidade, de afeição e de
generosidade no sentimento; como se, acompanhadas por amigos, as pessoas se
revelassem mais capazes para melhor agir.
“Mesmo quando viajamos para outras
terras podemos observar a existência generalizada de uma afinidade e afeição
natural entre as pessoas. A amizade parece também manter as cidades unidas, e
parece que os legisladores se preocupam mais com ela do que com a justiça;
efetivamente, a concórdia parece assemelhar-se à amizade, e eles procuram
assegurá-la mais que tudo, ao mesmo tempo em que repelem tanto quanto possível
o facciosismo, que é a inimizade nas cidades. Quando as pessoas são amigas não
têm necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas necessitam da
amizade; considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma disposição
amistosa. E a amizade não é somente necessária; ela também é nobilitante, pois
louvamos as pessoas amigas de seus amigos, e pensamos que uma das coisas mais
nobilitantes é ter muitos amigos; além disso, há quem diga que a bondade e a
amizade se encontram nas mesmas pessoas.” (ARISTÓTELES, Ética a
Nicômacos, p.153-4)
Como sublinha Victoria Camps, o
conceito aristotélico de amizade é aristocrático, posto que a perfeita amizade
não seria exatamente aquela em que se procura o auxílio ou a assistência do
amigo. Pelo contrário, a perfeita amizade, desinteressada, deverá, por isso
mesmo, ocorrer entre iguais. A amizade, assim compreendida, acarretaria o
reconhecimento de si nos atributos do outro. Para Camps, “essa amizade grega
vem para cobrir uma necessidade que a justiça não chega a satisfazer por não
poder fazê-lo” (CAMPS, 1996, p.35). A justiça defende o indivíduo contra a
arbitrariedade do outro. Mas o faz com a necessária imparcialidade que a norma
ou a lei acarretam. A relação entre amigos não supõe nem a defesa de si perante
o outro e nem a rigidez das regulações externas, que se pretendem universais.
Ser predisposto à amizade conduz, entretanto, a uma atitude que se predispõe
solidária para com todos os semelhantes. Tal disposição solidária requer o
dever de tolerar; de suportar o outro; de não lhe ser indiferente. Nos termos
de Victoria Camps, “a solidariedade é uma prática que está ao mesmo tempo aquém
e além da justiça: a fidelidade ao amigo, a compreensão ao maltratado, o apoio
ao perseguido, a aposta em causas impopulares ou perdidas, tudo isso não se
pode constituir propriamente como dever de justiça, mas sim como dever de
solidariedade” (CAMPS, 1996, p.34).
A disposição amistosa para fomentar a
concórdia parece-nos ser um elemento primordial nas relações profissionais da
prática educativa, caso tenhamos o próposito de construir coletivamente uma
ética da amizade; ou, nos termos de António Nóvoa, de “colegialidade docente”;
ou, como nos diria algum bom-senso, o coleguismo das ações em profissão (NÓVOA,
1991, p.25). Ao distinguir as várias espécies de amizade, Aristóteles comenta a
existência de um dado modo de se relacionar com os outros, que tem a ver com um
suposto interesse comum. A amizade seria, nesse caso, especificamente
direcionada para um rumo já dado e teria como corolário a perspectiva de ser
reciprocamente útil a todas as partes. Aparentemente, tratar-se-ia de um modelo
menor de amizade; contudo tal referência constituiria a base da concórdia,
imprescindível à ação coletiva e colegiada das pessoas na vida profissional.
Aristóteles reconhece que não se trata aqui do tipo mais perfeito de amizade.
Porém, trata-se de pensar a possibilidade do convívio perante práticas de
amabilidade; aquela disposição amistosa para com o outro, mesmo que o outro não
seja necessariamente alguém que, por seus atributos naturais, nós tenhamos
assinalado como nosso amigo. Assumir a amizade como uma forma de concórdia para
associação dos homens supõe acreditar em uma dada proporcionalidade do
sentimento, tendo em vista a obtenção do bem comum, que, no caso, seria uma
vantagem para todos os envolvidos. Pensar a vida profissional a partir de um “como
se” da amizade (ALBERONI, 1992, p.53) significa abordar a dimensão
do dever; mas pressupõe também que, ao tratar os outros como se fossem
meus amigos - ainda que por dever de consciência profissional -, eu obtenha
provavelmente uma dose a mais de vida boa, filigranas de felicidade... Pelo
texto de Aristóteles:
“... a amizade e a justiça parecem
relacionar-se com os mesmos objetos e manifestar-se entre as mesmas pessoas.
Realmente, parece que em todas as formas de associação encontramos alguma forma
peculiar de justiça e também de amizade; nota-se pelo menos que as pessoas se
dirigem como amigas aos seus companheiros de viagem e aos seus camaradas de
serviço militar, tanto quanto aos seus parceiros em qualquer espécie de
associação. Mas a extensão de sua amizade é limitada ao âmbito de sua
associação, da mesma forma que a extensão da existência da justiça entre tais
pessoas. O provérbio ‘os bens dos amigos são comuns’ é a expressão da verdade,
pois a amizade depende da participação. Os irmãos e os membros de uma confraria
têm tudo em comum, mas as outras pessoas às quais nos referimos têm somente
certas coisas em comum – algumas mais, outras menos – pois nas amizades também
há maior ou menor intensidade. ... As reivindicações de justiça também parecem
aumentar com a intensidade da amizade, e isto significa que a amizade e a
justiça existem entre as mesmas pessoas e têm uma extensão igual.”
(ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.163-4)
Tal proposição de ética dirigida à
disposição do caráter para relações amistosas exige, sobretudo, “boa vontade”,
expressão que Aristóteles define como sendo “um início de amizade, da mesma
forma que o prazer de olhar é o início do amor” (ARISTÓTELES, Ética a
Nicômacos, p.180). A concórdia seria, por seu turno, o indício mais pleno
da “amizade política” [5] ; e política em
Aristóteles, é interesse público, bem comum, justiça e equidade. O objetivo da
associação política não seria, pois, apenas o viver em conjunto, mas
fundamentalmente o bem viver em conjunto; e, se o homem é feito para a
sociedade civil, é ofício do homem a boa vontade na convivência – onde “cada um
melhor encontra aquilo de que necessita para ser feliz” (ARISTÓTELES, Tratado
da política, p.45). A ética de Aristóteles não é uma disposição de coração:
é a revelação da potência em ato; disposta a agir em direção ao bem comum, à
felicidade pública.
O tema da ética – como indagação
universal que percorre a história do Ocidente – traduz na contemporaneidade
anseios, expectativas, crenças e desejos dos sujeitos sociais em seus mais
diversos territórios. A procura de valores morais desperta, por vezes,
sensibilidades religiosas, semeia plataformas políticas, traduz estados de
espírito – mais ou menos racionais. Para o bem, do ponto de vista moral,
comumente o sujeito se afirma sempre disposto. Pequenas traições desse bem
apregoado - mazelas, misérias cotidianas, pequenezas - tendem a ser amainadas;
ou convenientemente olvidadas da memória que cada indivíduo constrói de seus
próprios. atos. Porém, da convicção, necessariamente se deverá projetar pelos
usos e costumes – mas também pela crença – hábitos de vida ética. Para recorrer
às palavras de Vázquez, “do ponto de vista moral, o indivíduo deve sempre estar
em forma, preparado ou disposto; e isto é o que se queria dizer,
tradicionalmente, quando se falava numa pessoa virtuosa, como disposta sempre a
preferir o bem e a realizá-lo” (VÁZQUEZ, 2002, p.215); ainda que o ser humano,
enquanto tal, seja intrinsecamente sujeito a falhas de percurso, quando os
imperativos da ação são postos na ação rotineira [6] .
“Na ética se debatem conflitos de
atitudes, não de crenças... Por um lado a educação ética é uma formação do
gosto e da sensibilidade, em direção a determinadas atitudes: a criação e a
aquisição de um ethos, no sentido originário de ‘caráter’ e
conjunto de ‘hábitos’, sem permitir que se caia na inércia do ‘habitual’. Com
tal finalidade, a educação deve tender também a formar a razão autônoma, que
assume a responsabilidade de deliberar, argumentar e justificar seus pontos de
vista. Sem dúvida alguma, a melhor via não dogmática para se conseguir esses
dois objetivos – educação de atitudes e educação na autonomia – é o exemplo;
também na retórica clássica a personalidade moral do orador constituía um
elemento importante para atrair a atenção e a adesão do público. O exemplo
persuade do valor intrínseco a certas atitudes e a certos modos de julgar. As
idéias se impõem quando se sabe defendê-las, e a defesa que revela suas
próprias perplexidades e ambigüidades - e se mostra capaz de ponderar sobre
elas - pode ser mais convincente que uma firme e segura declaração de
princípios” (CAMPS, 1995, p.52).
Seria, contudo, possível pensar em um
consenso no plano da moralidade? Noções de Bem, de bem comum, de felicidade – e
até de amizade – teriam um mínimo comum passível de ser posto como universal?
Sabemos que, em tal encruzilhada, situam-se inúmeros dos debates e impasses do
mundo contemporâneo, particularmente no Ocidente. Trazendo o tema para o
cenário educativo, como pensar a educação para o bem agir? Por seu turno, não
nos pareceria nem suficiente, nem apropriado e nem mesmo ético, aderir ao
discurso que assume com franqueza o relativismo moral e cultural em sua
radicalidade, mediante a argumentação de que diferentes culturas ou comunidades
projetam para si acepções diferenciadas de bem, que deverão ser validadas
enquanto tal, posto que fruto da tradição e do hábito. Tal relativização da
questão ética – bastante comum nos tempos que correm – reverbera a noção de que
compete a cada grupo social estatuir seu próprio código de valores; e – por
decorrência, ainda que tacitamente - não se pensa mais sobre o assunto. A
pluralidade cultural, levada ao seu limite, tornaria inócua a discussão, posto
que parte da idéia de que cada comunidade se torna “ a medida de todas as
coisas” que nela têm lugar.
Caberia, talvez, defender a existência
de valores sociais que se expressem como virtudes específicas passíveis de
serem reputadas como características desejáveis em distintas sociedades.
Discernimento, coragem, fidelidade, prudência, amizade não poderiam, como em
Aristóteles, ser pensados em sua dimensão universal? Como sublinha Yves de La
Taille, o que difere nas variadas sociedades seria, antes, o tratamento
conferido a tais temas. Aquilo que é considerado coragem em uma dada cultura não
o seria necessariamente em outra. Porém, prossegue o estudioso:
“(...) o fato de haver sérias
discordâncias a respeito do que é a verdadeira expressão da coragem, da
prudência ou da humildade, longe de depor contra a importância humana do tema,
pelo contrário, a reforça. Parece que cada cultura em geral e cada indivíduo em
particular sentem a necessidade de pensar e julgar tais características humanas
que respondem pelo nome de virtudes. Portanto, não é a presença ou a ausência
do pensar sobre virtudes que diferencia pessoas ou culturas, mas sim a
qualidade desse pensar. Assim como a racionalidade e a moral, o tema das
virtudes é universal. Tanto é verdade que, nas conversas do cotidiano, elas
estão presentes, e isso ocorre não somente entre os adultos, mas também entre
as crianças (LA TAILLE, 2000, p.111)”.
Haveria, de alguma forma, uma relação
de simpatia entre o ser humano e a virtude? Como um comportamento que favorece
o outro e não eu mesmo, mas às minhas custas, poderá ser por mim considerado
correto? Como se dá, no tabuleiro social, o reconhecimento e a identificação de
virtudes postuladas como válidas para todos? Se isso não for possível, o que
resta do discurso sobre a virtude, além da relatividade intrínseca a qualquer
norma que o pudesse regular? [7] Superar o
impasse traiçoeiro do relativismo ético requereria transcender alguns limites
circunscritos a mundividências de comunidades; ou as particularidades desta ou
daquela cultura local. Existiriam, em alguma medida, parâmetros passíveis de
ser tomados como sujeitos de validade universal – ainda que seja por pacto ou
convenção que venhamos a estabelecer tal demarcação.Como destaca Changeux,
poder-se-ia reconhecer na motivação moral uma atitude própria da espécie
humana, embora “o critério da ação moral, dos códigos éticos [seja] uma
construção cultural, historicamente demarcada em cada sociedade e em cada
época... Esses valores éticos universais corresponderiam a estratégias
adquiridas na sobrevivência dos indivíduos de nossa espécie, onde a linguagem
fornece o meio coletivo para expressar o bom, mas, sobretudo, o bom para
todos”(CHANGEUX, 1999, p.26). A despeito de partilharmos de tal convicção,
parece válido explicitar o alerta exposto por MacIntyre que, ao se referir à
virtude da justiça, manifesta alguma hesitação para conferir validade comum à
percepção social que o tema ganhou em nossa época. Onde localizar alicerces
comuns para se referir ao tema? Nos termos do autor:
“Quando louvou a justiça como primeira
virtude da vida política, Aristóteles o fez de maneira a sugerir que a
comunidade que carece de acordo prático com relação a um conceito de justiça
também deve carecer da base necessária para a comunidade política. Porém, a
falta de tal base deve, portanto, ameaçar nossa própria sociedade. Pois o
resultado dessa história... não tem sido apenas a incapacidade de concordar a
respeito de um catálogo das virtudes, e a incapacidade ainda mais fundamental
de concordar acerca da importância relativa dos conceitos de virtude dentro de
um esquema moral no qual as noções de direitos e de utilidade também têm um
lugar essencial. Também tem sido a incapacidade de concordar com relação ao
teor e o caráter de determinadas virtudes. Já que a virtude agora é
compreendida em geral como uma disposição ou sentimento que produz em nós
obediência a certas normas, o acordo com relação a quais serão tais normas é
sempre pré-requisito para o acordo sobre a natureza e o teor de determinada virtude.
Mas esse acordo prévio quanto à normas é... algo que nossa cultura
individualista não pode oferecer” (MACINTYRE, 2001, p.409).
John Rawls sugere que a tradição do
pensamento democrático teria por dever assinalar a liberdade e a igualdade como
valores irredutíveis. A partir deles, pressupõe-se um conjunto primeiro de
virtudes que são – na essência – o próprio suposto que oferece as condições
para ser livre e ser igual. Para conferir, na tradição liberal democrática dos
direitos - que firma para o ser humano e para a coletividade as competências da
liberdade e da igualdade - teria ocorrido um consenso primeiro, pactuado como
artefato social, segundo o qual haveria faculdades morais intrinsecamente
humanas das quais cada indivíduo seria potencialmente portador; “a saber, ser
capaz de um senso de justiça e de uma concepção do bem. O senso de justiça é a
capacidade de compreender, aplicar e respeitar nos seus atos a concepção
pública da justiça... E ser capaz de uma concepção de bem é poder formar,
revisar e buscar racionalmente uma concepção de nossa vantagem ou bem” (RAWLS,
2000, p.216). Rawls pondera que tal consideração deriva basicamente de uma
idéia intuitiva, que não deixa, contudo, de possuir validez operatória. Também
Paul Ricoeur definirá a ética mediante relações de cuidado para com os outros;
e os outros são sempre outros, e nunca serão eu mesmo. Por outro lado, somente
a partir de seu reconhecimento social é que se poderá, na coletividade,
assegurar critérios para regular intenções de “vida boa, com e para os outros,
em instituições justas (Paul RICOEUR, 1995, p.162)”. Nos termos desse autor:
“Si implica o outro de si,
a fim de que se possa dizer de alguém que ele se estima a si mesmo como um
outro. A dizer a verdade, é só por abstração que se pode falar em estima de si
sem pô-la em dupla com uma demanda de reciprocidade, segundo um esquema de
estima cruzado, que resume a exclamação tu também: tu também és um
ser de iniciativa e de escolha, capaz de agir segundo razões, de hierarquizar
teus fins; e, estimando bons os objetos da tua busca, és capaz de estimar a ti
mesmo. O outro é, assim, aquele que pode dizer eu como eu e,
como eu, ser considerado um agente, autor e responsável pelos seus atos. Do
contrário, nenhuma regra de reciprocidade seria possível. O milagre da
reciprocidade é que as pessoas são reconhecidas como insubstituíveis umas às
outras na própria troca. Essa reciprocidade dos insubstituíveis é
o segredo da solicitude... Viver bem, com e para o outro, em
instituições justas. Que a intenção do bem viver envolva de algum modo o
sentido da justiça; isso é exigido pela própria noção do outro. O outro é
também o outro do tu. Correlativamente, a justiça estende-se para além do
face-a-face. Duas asserções estão aqui em jogo: de acordo com a primeira, o
viver bem não se limita às relações interpessoais, mas estende-se à vida nas
instituições; de acordo com a segunda, a justiça apresenta traços éticos que
não estão contidos na solicitude, a saber, essencialmente uma exigência de
igualdade de uma espécie diferente da daquela da amizade. ... Pode-se, com
efeito, compreender uma instituição como um sistema de partilha, de repartição,
que se refere a direitos e deveres, rendimentos e patrimônios,
responsabilidades e poderes; vantagens e encargos. É esse caráter distributivo –
no sentido amplo da palavra – que põe um problema de justiça. Com efeito, uma
instituição tem uma amplidão mais vasta do que o face-a-face da amizade e do
amor... ”(Paul RICOEUR, 1995, p.163-4).
Seja como for, a idéia de ética – comprometida
com o espaço público – no qual o indivíduo se dará a ver, situa-se como
reflexão sobre o sujeito à procura de normas passíveis de ancorar seu padrão de
conduta. Isso supõe escolha e adesão a determinados valores; mas supõe também o
compromisso e a responsabilidade para manter e sustentar a opção efetuada na
particularidade das situações vividas no dia-a-dia. O profissionalismo poderia
ser pensado como a adequação de tal finalidade na vida rotineira das
instituições. Com o fito de, ao menos, tangenciar a dimensão pedagógica que o
tema acarreta, poderíamos concluir meditando sobre a pertinência da reflexão
ética de Aristóteles para abordarmos nossas atuais relações de trabalho; com
nossos alunos, com nossos colegas, com nossos pares, enfim. Se a ética requer a
vida ativa – que é o que caracteriza a própria condição humana – o indivíduo
atua como ser ético perante os outros. Não se pode ser ético quando não se
convive; é, portanto, a esfera pública e coletiva que possibilita a expressão
da virtude. Se, por sua vez, a vida boa acarreta felicidade, e se a vida boa é
a vida digna, parece lícito conferir significados comuns e partilhados às ações
individuais tomadas em relação aos outros. Além disso, as virtudes do
comportamento traduzem-se no hábito; e não no postulado de intenções. Será,
portanto, necessário percorrer com ética a própria vida, posto que é mais
trabalhoso agir pelo bem do que dizê-lo. Tal cuidado justifica-se também quando
nos apresentamos às gerações mais jovens. Quais são os exemplos que ensinam –
pela ética do hábito – as virtudes que, de fato, merecem ser valorizadas?
Para Aristóteles, ética e política são
práticas, que se definem pela ação. Agindo eticamente é que adquiro a prática
da virtude. Educando com correção é que nos tornamos educadores. Além disso,
educar supõe a mimesis; imitação de ações exemplares. Dirá o autor
da Poética que, “segundo o caráter, as pessoas são tais ou
tais, mas é segundo as ações que são felizes ou o contrário. Portanto, as
personagens não agem para imitar os caracteres, mas adquirem os caracteres
graças às ações. Assim, as ações e a fábula constituem a finalidade da
tragédia, e, em tudo, a finalidade é o que mais importa” (ARISTÓTELES, Arte
Poética, p.25). Sobre o tema Kenneth McLeish argumenta que a idéia de imitação
e de mimesis é o centro da análise estética de Aristóteles;
supondo – pelo conceito – uma associação entre o que é apresentado ou
representado e a existência prévia da pessoa: espectador ou aprendiz. A noção
do imitar tem a ver com a perspectiva da preservação: imita-se o que se louva;
louva-se o que é honrado, e, portanto, o que deve ser preservado. Na educação,
como na dramaturgia, “o criador convida o espectador a se envolver com um
desempenho, uma mimesis da realidade, e, portanto, por
delegação, com a própria realidade” (MCLEISH, 2000, p.18). Haveria, por ser
assim, algum envolvimento subjetivo no drama. Este se torna sujeito, para o
mestre e para o aprendiz. Daí a magia da ação educativa quando assumimos a
confluência proposta por Aristóteles dessa imitação/representação do bom, do
belo e do bem – tríade necessária para pensar a formação da virtude ao educar.
Trata-se de hábitos; no justo meio; pela prudência do discernimento;
alicerçados pela equidade das práticas; e de criações de rotinas e de rituais
coletivos, públicos e dirigidos ao bem comum; e, portanto, à felicidade - como
se fosse por amizade...
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* Carlota
Boto é licenciada em Pedagogia e em História pela USP. É autora do
livro A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa,
publicado pela Editora UNESP em 1996. É professora da área de Filosofia da
Educação na Faculdade de Educação da USP. Este trabalho foi originalmente
apresentado na I Semana de Estudos Clássicos e Educação, realizada,
sob a coordenação da Profª. Drª. Gilda Naécia Maciel de Barros, entre 22 e 26
de abril de 2002, na FEUSP.
[1] Diz Abbagnano sobre o
tributo que o futuro imperador teria para com os ensinamentos que recebera de
Aristóteles: “Na obra de conquista e de unificação de todo o mundo grego para a
qual a educação de Aristóteles preparou Alexandre, agiu seguramente a convicção
por parte de Aristóteles da superioridade da cultura grega e da sua capacidade
de dominar o mundo, se a ela se acrescentasse uma forte unidade política. O
afastamento entre o rei e Aristóteles só se produziu quando Alexandre,
alargando seus desígnios de conquista, pensou na unificação dos povos orientais
e adotou as formas orientais de soberania”(Abbagnano, 1981, p.193).
[2] “Durante a Idade
Média, será por intermédio dos árabes – com a conquista da região do
Mediterrâneo e da Península Ibérica – que a obra aristotélica voltará a ser
lida na europa, mas já traduzida para o árabe e para o hebraico. Assim, durante
vários séculos, a obra de Aristóteles eistiu em árabe, hebraico e latim
eclasiástico, de modo que a obra não era lida no original. “ (Chauí, 2002,
p.341)
[3] Note-se que – como
adverte Aristóteles – há exceções para a acepção de justo meio como categoria
operatória. Haveria algumas ações que, em hipótese alguma, poderiam admitir o
meio termo, sem o custo da própria virtude; já que seus nomes contêm – por
definição – a maldade e a injustiça: despeito, inveja,adultério, roubo, assassinato,
etc.. Como assinala o autor, o mal, para tais casos, não residiria no excesso
ou na deficiência; mas no próprio ato. Por suas palavras: “tampouco a bondade
ou maldade a respeito de tais emoções e ações depende, por exemplo, de cometer
adultério com a mulher certa, no momento certo e de modo certo, mas
simplesmente sentir qualquer destas emoções ou praticar qualquer destas ações é
um erro. Seria igualmente absurdo, então, esperar que em ações injustas,
covardes e libidinosas houvesse um meio termo, um excesso e uma falta, pois
seria preciso admitir a existência de um meio termo de excesso e de falta, de
um excesso de excesso e de uma falta de falta” (Aristóteles, Ética a
Nicômacos, p.42) Tratar-se-iam de ações que, qualquer que seja o grau de
sua prática, elas seria sempre erradas e impróprias para a retidão da conduta.
[4] Recordando em seu Tratado
da política que o bem da vida pública é a justiça, Aristóteles dirá
que, tanto na esfera coletiva quanto na ação particular, “ a vida feliz
consiste no livre exercício da virtude e a virtude no meio-termo; donde se
segue, necessariamente, que a melhor vida deve ser a vida média, encerrada nos
limites dum bem-estar que toda a gente pode conseguir. O que dizemos da virtude
e do vício do Estado deve dizer-se do governo que é a vida de todo o Estado.”
(Aristóteles, Tratado da política, p.142).
[5] “A concórdia também
parece um sentimento amistoso; ela não é, entretanto, identidade de opinião,
pois isto poderia ocorrer até com pessoas que não se conhecem; tampouco dizemos
que há concórdia entre as pessoas que têm os mesmos pontos de vista sobre todos
e quaisquer assuntos – por exemplo, as pessoas que concordam acerca dos corpos
celestes ( a concórdia a este respeito não é um sentimento amistoso), mas
dizemos que há concórdia numa cidade quando seus habitantes têm a mesma opinião
acerca daquilo que é de seu interesse, e escolhem as mesmas ações, e fazem o
que resolvem em comum. Dizemos portanto que há concórdia entre as pessoas em
relação a atos a ser praticados e quando estes atos podem ter conseqüências, e
quando é possível que neles duas partes, ou todas elas, obtenham o que
desejam.” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.180-1)
[6] “(...) Aristóteles
dizia... que a ‘virtude é um hábito’, ou seja, um tipo de comportamento que se
repete ou uma disposição adquirida e uniforme de agir de um modo
determinado. A realização da moral, por parte de um indivíduo, é, por
conseqüência, o exercício constante e estável daquilo que está inscrito no seu
caráter como uma disposição ou capacidade de fazer o bem; ou seja, como uma
virtude. O indivíduo contribui, assim, (isto é, com suas virtudes) para a
realização da moral, não mediante atos extraordinários ou privilegiados (que
são próprios do herói ou da personalidade excepcional), mas com atos cotidianos
e repetidos que decorrem de uma disposição permanente e estável” (VAZQUEZ,
2002,p.214-215).
[7] “Deve ficar claro que
o relativismo ético não consiste em pôr em relação uma norma com uma comunidade
respectiva, mas em sustentar que dois juízos normativos distintos ou opostos, a
respeito do mesmo ato, têm a mesma validade. Mas o fato de que duas normas (uma
racista e outra anti-racista, por exemplo) refiram-se a diferentes e opostas
necessidades sociais não significa que sejam igualmente válidas. Suas relações
respectivas com os interesses e as necessidades de um setor social justificam
somente uma validade relativa...; mas a validade de uma destas normas (a racista)
não pode estender-se além dos limites estreitos da comunidade cujos interesses
e necessidades expressa. Na medida em que transcende estes limites – e não pode
deixar de transcendê-los, porque as suas conseqüências afetam os membros de
outra comunidade -, o válido ou justo se revela como inválido ou injusto,
precisamente pela impossibilidade de transcender a sua particularidade
(VÁZQUEZ, 2002, p.260).
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