sexta-feira, 31 de maio de 2013

O Duplo Perfil do Facebook -





Você tem Facebook?


Rodrigo Savazoni

A internet mudou o mundo. Segue transformando-o. E a mais recente transformação é consequência da invenção do Facebook por Mark Zuckerberg. Seis anos atrás, aos 19 anos, ele lançou o mais bem sucedido e abrangente site de rede social. Porque, como a grande maioria dos garotos de sua geração, acreditou que uma idéia na cabeça e alguns códigos à mão o fariam bilionário. Acertou. Isso o torna a expressão perfeita do fluido capitalismo contemporâneo, que vive de nos vender – o que somos e fazemos – produzindo uma inestimável sensação de liberdade.
No ano que se encerrou, conforme registra o livro The Connector, lançado recentemente nos Estados Unidos, a invenção de Zuckerberg atingiu a marca de 550 milhões de usuários. “Uma em cada dúzia de seres humanos existentes no planeta usa a ferramenta. Elas falam 75 línguas e coletivamente gastam mais de 700 bilhões de minutos no Facebook todos os meses. No último mês de 2010, o site angariou uma de cada quatro páginas de internet visitadas nos Estados Unidos. Essa comunidade tem crescido ao ritmo de cerca de 700 mil pessoas por dia”.
Por essa e outras razões – algumas delas vamos tentar descrever neste texto –, o Facebook passou a concentrar a atenção dos homens e mulheres que dedicam suas vidas a pesquisar e avaliar os fenômenos políticos, econômicos, sociais e culturais que são reflexo da emergência da rede mundial de computadores.
É bom alertar, estamos diante de um paradoxo que não compreenderemos por meio de leituras dicotômicas. Para aquilo que é líquido, busque-se o recipiente correto, senão a análise escorre pelas frestas. Esse paradoxo consiste em: por um lado, a rede social de Zuckerberg é, sem sombra de dúvida, um elemento fundamental para a explosão do uso da web – inclusive proporcionando impactos políticos inestimáveis, como na Tunísia e no Egito; por outro, integra e aprofunda o movimento de cercamento às reais liberdades que marcaram a internet desde a sua criação.
Esse cerco à internet livre é produzido por uma aliança entre governos conservadores, indústria da propriedade cultural, empresas de telefonia e algumas das emergentes corporações do mundo das redes, com diferentes níveis de envolvimento de cada um desses atores.
O papel do Facebook nessa epopéia é o do monopólio, que busca transformar uma parte (um site) em todo (a rede). A ambição de Zuckerberg é que todo cidadão conectado à internet – atualmente cerca de 2 bilhões de seres humanos -, tenha um perfil no Facebook e possa se relacionar lateralmente por meio da ferramenta. Diz fazer isso porque quer ver o mundo mais “aberto e conectado”. Não é verdade.
Para entendermos porque essa declaração é falsa, primeiramente precisamos compreender a qual campo fazemos referência quando falamos do Facebook.
Segundo danah boyd, estudiosa do tema e consultora de grandes empresas do mundo, um site de rede social tem três características: 1) permitir ao usuário construir um perfil; 2) articular uma lista de amigos e conhecidos; e 3) visualizar e cruzar sua lista de amigos com os seus associados e com outras pessoas dentro do sistema.
O primeiro site com essas características foi lançado em 1997, portanto apenas um ano depois de a internet se tornar comercial no Brasil. A explosão desse modelo, no entanto, ocorreria a partir de 2002, com a criação do Friendster e, logo depois, do MySpace.
No Brasil, diferentemente de outros países, a experiência foi singular. O que o mundo vem experimentando nos últimos dois anos com o crescimento do Facebook (todos os seus “amigos” trocando mensagens, fotos, vídeos, entre outras informações, em um mesmo ambiente controlado), os brasileiros experimentaram a partir de 2004 com a invasão do Orkut, o site de relacionamento criado pelo Google que segue líder de audiência por aqui.
Até pouco tempo – e não seria impreciso demarcar que o Facebooktambém é responsável por isso – as redes sociais foram observadas apenas como fenômeno adolescente, sem grande importância ou impacto no ecossistema midiático. Nos últimos anos, no entanto, isso mudou, principalmente porque essas redes passaram a redefinir a forma como as pessoas consomem e circulam informações. Conforme escreve Grossman, um dos principais objetivos de Zuckerberg é mudar a “forma como a mídia é organizada, para reconstruí-la a partir da oligarquia benevolente de sua lista de amigos como princípio dessa reorganização”. Quando isso ficou evidente, o tema redes sociais ganhou outro tratamento por parte dos detentores de poder.
Redes são pessoas
“As pessoas fazem as redes sociais para além delas mesmas”, explica André Lemos, professor da Universidade Federal da Bahia e autor, com Pierre Lévy, de O Futuro da Internet, lançado no ano passado. “A rede não é o canal por onde passam coisas, como pensamos comumente, mas algo fluido, movente: ela é a relação que se estabelece, a cada momento, entre os diversos atores. Ela é o que agrega. Ela faz o social”.
Como outras – mas melhor que qualquer uma – a ferramenta de Zuckerberg se propõe justamente facilitar a aproximação entre pessoas, o que só é possível porque as massas, de fato, aderiram à plataforma.
“O sucesso do Facebook demonstra que as pessoas querem se relacionar”, opina Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e eleito em janeiro para uma das representações da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI-Br). “Ao contrário do que foi sentenciado pelos tecnofóbicos, a rede permite aproximar as pessoas e intensifica os relacionamentos. O Facebook e outras redes sociais são articuladores coletivos, por isso, canalizam os processos de convocação, mobilização e solidariedade”
Para Giselle Beiguelman, artista multimídia e professora da Universidade de São Paulo, “é importante perceber, no entanto, que ao mesmo tempo em que redes sociais como o Facebook abrem possibilidades inéditas de fomento do consumo e controle, tornam-se também dispositivos de uso crítico e criativo das mídias existentes. Por isso, apontam para diferentes concepções e tendências políticas da ecologia midiática atual.”
Essa ambivalência estrutura o paradoxo ao qual nos referimos anteriormente. Ao obcecadamente buscar fazer melhor aquilo que a web se propõe a fazer, mimetizando-a em um ambiente controlado, Zuckerberg constrói talvez a mais definitiva ameaça às liberdades que constituíram a estrutura inovadora da rede mundial de computadores.
Não à toa, Tim Berners Lee, o inventor da web, deixou de lado sua postura pouco beligerante, para se posicionar claramente contra esse movimento do Facebook em um artigo publicado no ano passado na Scientific American.
Em “Vida Longa a Web: um chamado pela continuidade dos padrões abertos e da neutralidade de rede”, Berners Lee faz duas críticas ao invento de Zuckerberg: a) ao não permitir que informações produzidas e publicadas em sites de rede social circulem livremente (você só as acessa se estiver vinculado ao banco de dados da empresa) esses projetos trabalham pela destruição da universalidade da web, que é uma de suas características mais fundamentais; b) seu crescimento exagerado conforma um monopólio que acabará por limitar a inovação.
Para entender a crítica descrita no ponto “a”, é preciso desfazer uma confusão comum entre dois termos que são comumente utilizados como sinônimos, mas não são: internet e web. Internet é uma rede de redes, evolução das pesquisas militares da segunda metade do século 20 que desembocaram no desenvolvimento de protocolos de interoperabilidade que permitiram a conexão entre diferentes redes físicas (como o Internet Protocol IP, criado por Vint Cerf).
A world wide web (WWW) foi criada no início dos anos 90 e pode ser explicada como uma camada visual da rede que para ser acessada necessita de um software de navegação (um navegador, como o Firefox, o Chrome ou o Internet Explorer). Todos os protocolos criados são de livre uso e constituiu-se então um Consórcio, chamado W3C, que se dedica a manter a abertura e a flexibilidade dessas aplicações, melhorando-as.
Para sustentar sua crítica de que o Facebook promove a fragmentação da web, Berners-Lee escreve: “o isolamento ocorre porque cada pedaço de informação não tem um endereço. (…) Conexões entre os dados só existem dentro de um site. Assim, quanto mais você entra, mais você se tranca em seu site de redes sociais tornando-o uma plataforma central, um silo fechado de conteúdo, e que não lhe dá total controle sobre suas informações. Quanto mais esse tipo de arquitetura ganha uso generalizado, mais a web torna-se fragmentada, e menos temos um único espaço de informação universal.”
Um monopólio e seu produto: nós
“O Facebook atua estranhamente como um concentrador de atenções e uma “draga” de conteúdos. Nele tudo pode entrar, mas nada pode sair”, reforça Sérgio Amadeu. “O Facebook apaga postagens e elimina perfis sem nenhuma obrigação de avisar os usuários. Atuou contra o Wikileaks atendendo os interesses do governo norte-americano. A democracia inexiste no convívio com os gestores doFacebook. Se o Facebook fosse um país seria uma ditadura e Mark Zuckerberg um déspota de novo tipo”.
Em entrevista publicada no livro The Connector, Zuckerberg admite o objetivo de constituir um gigantesco banco de dados sob seu controle. “Estamos tentando mapear o que existe no mundo”, diz ele. De acordo com Grossman, “ser membro do Facebook é o equivalente a ter um passaporte. Ou seja, ele é uma ferramenta para verificação de sua identidade, não apenas no Facebook, mas onde quer que se esteja online”.
“Ferramentas como o Facebook estão no centro do chamado capitalismo cognitivo que precisam para existir mobilizar todas as forças afetivas, criativas, comunicacionais. Mobilizar a ‘vida’ como um todo”, escreve Ivana Bentes, coordenadora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Esses dispositivos servem simultâneamente a criação e ao controle, que é a forma de operar do pós-capitalismo, é a lógica do Google e doFacebook. Modular a ‘autonomia’ e a ‘liberdade’ indispensáveis na produção atual imaterial (design, moda, estilos de vida, conhecimento, tudo que é inovação).”
Tim Wu, ativista pela liberdade da rede, professor de direito da Universidade de Columbia, autor do livro The Master Switch – The Rise and Fall of Information Empires, ajuda-nos a explicar o que vem ocorrendo com a web com base naquilo que ele chama de o ciclo padrão de desenvolvimento midiático. Ele apresentou essa sua interpretação no Seminário sobre Cidadania Digital organizado por Amadeu da Silveira em 2009. Para ele, ao surgir, uma mídia se caracteriza por: abertura, amadorismo e competição. Depois, tende à formação de monopólios proprietários fechados. Isso estaria agora ocorrendo com a internet, a qual estaria deixando para trás o tempo da inovação em direção ao domínio de grandes monopólios (entre os quais o Facebook).
A arquitetura de padrões abertos e distribuídos da internet permitiu que a inovação brotasse no quintal de casa. No Vale do Silício garagens viraram museus, onde estão registrados os primórdios dos objetos e interfaces que hoje todos utilizamos. A principal contradição no caso do Facebook é a de ter se beneficiado desse ambiente inovador para agora traí-los, em um movimento que ninguém é capaz de definir onde desembocará, uma vez que sobram dúvidas sobre qual será o destino que Zuckerberg dará para todo esse arsenal informação que ele passou a comandar.
Giselle, para quem todas essas críticas são essenciais, soma mais alguns elementos a esse paradoxo que estamos descrevendo: “a vulnerabilidade das informações pessoais no Facebook é constantemente apontada como um dos seus problemas. Contudo, é bom lembrar, que num mundo mediado por bancos de dados de toda sorte – de programas de busca a redes sociais, passando pelas ‘Amazons’ da vida e as catracas da empresa e da escola –, somos uma espécie de plataforma que disponibiliza informações e hábitos conforme construímos nossas identidades públicas nos diversos serviços relacionados ao nosso consumo, lazer e trabalho”.
O caso do Egito
Em meio a críticas e desconfianças, o Facebook segue avançando. Uma das razões para isso, segundo Grossman, é que o “Facebook faz mais o ciberespaço como o mundo real: maçante, mas civilizado. Considerando que as pessoas levavam uma vida dupla, o real eo virtual, agora eles levam como uma só novamente.”
Outra razão que ajuda a explicar o sucesso da ferramenta é a crescente utilização da plataforma para fins políticos, como no caso dos protestos contra o ditador egípicio Hosni Mubarak. No período em que as manifestações tiveram início (e antes de o governo “desligar” a internet como forma de reprimir as movimentações) oFacebook chegou a concentrar 40% de todo o tráfego de dados daquele país.
Isso demonstra que os bancos de dados que nos espreitam também são instrumentos que servem à desobediência. “Facebook e Google oferecem ferramentas de expressão, de ativismo, de criação (os dispositivos como potência são incríveis!) e ao mesmo tempo ‘capturam’ essa potência, monetizam”, descreve Ivana. “A batalhado pós-capitalismo, a matéria do Facebook são os  fluxos da própria vida. Nós somos o produto, mas nós somos os sujeitos da colaboração, das trocas, da cooperação social. O desespero do capital hoje é ser tão nômade e fluido quanto a vida, daí as ferramentas de colaboração serem hoje as mesmas do comando e do controle.”
O caso do Egito é emblemático não só do uso da internet para movimentações políticas, mas em especial do uso feito do Facebook. Foi por meio do site de rede social o Movimento Jovem 6 de Abril organizou suas primeiras manifestações. Conforme descrito em matéria publicada pelo The New York Times, os organizadores reuniram mais de 90 mil assinaturas online e com isso conseguiram encorajar as pessoas a irem para a rua.
À internet, sem dúvida, coube um papel fundamental, mas é preciso também relativizá-lo. “No caso do conflito no Egito, a rede de atores é composta por instâncias diversas: pessoas, discursos, redes sociais (Facebook e Twitter, os mais usados), SMS e telefones celulares, cartazes em praça pública, repercussão na mídia internacional, debates televisivos, luta corporal etc”, explica Lemos. “Nesse sentido, acho excelente que o Facebook seja usado para articular pessoas para a causa egípcia. Isso para além do Facebook. As redes sociais são um elemento importante de publicização dodescontentamento egípcio, mas elas não fazem, sozinhas, a revolução”
Para Ivana Bentes, “o decisivo é que o desejo, a criação, a colaboração vem antes e não se reduzem ao comando, transbordam os dispositivos, mesmo quando são capturadas, rastreadas, monetizadas. Para ser mais brutal eu diria que por enquanto precisamos também dos Facebooks e Googles para fazer a insurreição digital que será decisiva para inventarmos uma nova política para o século XXI. Pós-Google e Pós-Face”.

* Este texto foi construído a partir do diálogo com os professores André Lemos (Universidade Federal da Bahia – UFBA), Gisele Beiguelman (Universidade de São Paulo – USP), Ivana Bentes (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ) e Sérgio Amadeu da Silveira (Universidade Federal do ABC – UFABC).


sábado, 25 de maio de 2013

Convite Debate, Quebrando o Tabu - Educação, Saúde e Drogas

Na próxima quarta-feira (29/05), a partir das 16h00, na UFPB/Mamanguape, no âmbito do Projeto de Pesquisa Educação, Saúde e Drogas, que coordeno, estaremos exibindo o documentário Quebrando o Tabu,  que é agenciado por Fernando Henrique Cardoso, agora como sociólogo, Bill Cliton, Jimmy Carter, Drauzio Vrella, dentre outros. Fica o convite. Abaixo, uma sinopse do documentário.
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Há 40 anos, os EUA levaram o mundo a declarar guerra às drogas. Mas, os danos causados pelas drogas nas pessoas e na sociedade só cresceram. Abusos, informações equivocadas, epidemias, violência e o fortalecimento de redes criminosas são os resultados da guerra perdida numa escala global. Num mosaico costurado por Fernando Henrique Cardoso, Quebrando o Tabu escuta vozes das realidades mais diversas do mundo em busca de soluções, princípios e conclusões. Bill Clinton, Jimmy Carter e ex-chefes de Estado, como da Colômbia, México e Suíça, revelam porque mudaram de opinião sobre um assunto que precisa ser discutido e esclarecido. Do aprendizado de pessoas comuns, que tiveram suas vidas marcadas pela Guerra às Drogas, até experiências de Dráuzio Varella, Paulo Coelho e Gael Garcia Bernal, Quebrando o Tabu é um convite a discutir um problema com todas as famílias.


segunda-feira, 20 de maio de 2013

O Dia do Pedagogo e os Sentidos da Educação: o Papel da Escola


Aos profissionais da Pedagogia que visitam este espaço, as minhas saudações pelo seu dia - o 20 de Maio, Dia do Pedagogo. Marcando essas saudações, abaixo estão alguns extratos de uma entrevista de Dermeval Saviani acerca dos sentidos da educação e do papel da escola, numa reflexão mais do que pertinente diante de determinados discursos que, ora transformando a escola em espaço de "assistência social", ora envolvendo-a no véu do populismo, levam-na a fazer tudo, menos que o é o seu atributo: ensinar, e ensinar com qualidade, formando as novas gerações com padrão de excelência. 

 
            “Sem dominar aquilo que os dominantes dominam, os dominados não chegam a se libertar da dominação”. O aforismo do professor Dermeval Saviani era uma crítica endereçada a teóricos e educadores que pregavam, nas décadas de 1970 e 1980, uma escola voltada às chamadas ‘experiências populares’, em detrimento do saber sistematizado, desprezando a ciência e difundindo, em muitos casos, uma visão preconceituosa sobre a dinâmica da vida acadêmica. Reconhecido como um dos maiores especialistas em educação no país, com contribuições tidas como fundamentais na confecção da LDB e da Constituição, Saviani avalia que o eixo da discussão mudou a partir da década de 1990, quando o ensino ficou a reboque, no seu entender, do assistencialismo e da maquiagem estatística. Em entrevista, Saviani fala das perspectivas contemporâneas da educação brasileira.
No último Cole (Congresso de Leitura), realizado na Unicamp, foi consensual a opinião de que a escola está há muito deixando de lado o seu papel de educar e de formar o cidadão. O senhor concorda?
O que eu tenho constatado e também tem sido um dos vetores das lutas que travamos desde a segunda metade da década de 70, é uma certa tendência a deslocar aquilo que me parece ser o papel principal da escola. Entendo que ela tem a ver com o saber sistematizado, com a cultura letrada, com o saber científico. Não com o senso comum, o saber espontâneo, o saber da experiência, ou aquilo que é chamado de cultura popular. Por quê? O que se pode constatar é que, para desenvolver a cultura popular, não se precisa da escola. Agora, na medida em que se desenvolveu uma tendência que desvalorizava ou secundarizava a cultura erudita e valorizava a cultura popular e, por conta disso, passou-se a taxar a escola como alienante, como instrumento de dominação por estar ligada à norma culta, comecei a me perguntar: em que grau isso é realmente transformador? Em que grau isto não vai fazer o jogo da dominação existente? A escola seria uma forma do homem do povo ter acesso ao saber elaborado, sem o que esse tipo de saber fica privilégio das elites. 
Houve reação a esta posição?
Passei a me bater contra a tendência a diferenciar as escolas: a das massas e a das elites, esta última qualitativamente mais desenvolvida. Isso me colocou num certo momento num embate com os seguidores do Paulo Freire, que viam nas minhas formulações uma contraposição a esse educador.
Como o senhor reagiu?
Essa visão de escola sempre me intrigou, porque era como se você nas escolas devesse fazer discurso político. Como esse discurso vai se sustentar se não existe conteúdo das várias áreas que os alunos viriam a dominar? Então esse discurso acaba deixando os trabalhadores sempre na dependência dos intelectuais. Isso me chocava. Os defensores da escola centrada no saber elaborado eram acusados como tendo uma visão vanguardista. A crítica era na seguinte direção: o povo é que deve estar na direção do movimento e os intelectuais têm que se deixar dirigir pelas próprias massas. É aí que reside o problema: como as massas podem exercer a função de dirigentes se elas não estão instrumentalizadas com o conhecimento? A democracia deve ser buscada, mas ela não está no ponto de partida e sim no ponto de chegada.
O senhor poderia explicar?
Quando vou, por exemplo, me relacionar com os analfabetos, é uma falácia acreditar-se que posso ter uma relação democrática com a criança ou aluno. Não há democracia aí porque ele está numa posição em que depende do meu auxílio para adquirir determinados instrumentos. O processo pedagógico é que deve elevá-lo. No ponto de chegada, sim. Uma vez alfabetizado, ele se torna capaz não apenas de se expressar oralmente, como também por escrito. E o que funda a relação pedagógica é exatamente essa diferença. Aí sim a diferença é removida e a igualdade se estabelece. Aí pode ser travada uma relação democrática. É claro que essas coisas têm níveis diferentes de análises. Foi essa discussão que se travou nas décadas de 1970 e 1980.
E na década de 1990?
Ao longo da década de 1990, esses problemas tenderam a se deslocar para um plano secundário, ou até mesmo foram superados. Aí surgiu esse fenômeno que está sendo constatado agora, ou seja, os próprios agentes governamentais assumindo essa visão de que a escola deve ter mais uma função assistencial do que propriamente de formação intelectual, de preparo cultural.
O senhor poderia exemplificar?
A função assistencial não é específica da escola. Se você considera que é preciso políticas sociais nesse campo porque as famílias não estão mais dando conta de sobreviver, trata-se de política compensatória que você pode fazer via secretarias de assistência social. 
O senhor acha que existe essa confusão hoje no Brasil?
Não só acho que há uma confusão, como acho que as políticas educacionais governamentais no nível do MEC têm estimulado esse viés assistencialista. Acho que há aí um componente econômico-financeiro associado ao ponto de vista ideológico.
O senhor acredita que essa política é deliberada?
Sim. Um outro componente dessa visão ideológica é que os conhecimentos que a população precisa dominar são mais os do dia a dia. O importante não é estar empregado, mas ser empregável. Ser empregável significa ter flexibilidade e capacidade de adaptação. E você se adapta na medida em que você convive, se relaciona. Então os conhecimentos sistemáticos tendem a ser secundarizados. A questão que se põe, que precisa ser pensada, é se isto tenderia a alterar substantivamente o caráter da escola. Se isto é um indicador de que a sociedade está mudando e que, com a mudança da sociedade, a natureza da escola também está mudando. 
O que pode ser feito?
Termos que resistir a essa tendência dominante. Mas essa resistência vinha se manifestando a meu ver de forma passiva e individual. Então eu postulei a resistência implicando duas características: 1) que ela seja organizada e coletiva e 2) que ela seja propositiva. Não adianta resistir na base do não concordo. O governo baixa um decreto e eu manifesto minha discordância. Isso não se impõe. Quando muito, pelo que tenho observado, se a grita é mais ou menos geral, o governo faz recuo tático. Para dar eficácia a esse movimento de resistência, propus a estratégia que chamei de resistência ativa.


QUEM É DERMEVAL SAVIANI

Formação
Bacharel e Licenciado em Filosofia, pela PUC-SP, 1966
Doutor em Filosofia da Educação, pela PUC-SP, 1971
Livre -Docente em História da Educação, pela Unicamp, 1986

Carreira científica e docente
Doutorado em filosofia da Educação na PUC-SP, em 1971.
Professor Titular da Universidade Federal de São Carlos-UFSCar, em 1975.
Professor Titular da PUC-SP, em 1979.
Concurso de Livre-Docência em História da Educação na Unicamp, em 1986.
Concurso de Professor Adjunto na Unicamp, em 1990.
Concurso de Professor Titular na Unicamp, em 1993.
Pesquisador Senior I-A do CNPq. 

Algumas obras 
Educação Brasileira: estrutura e sistema, São Paulo, Saraiva, 1973. (8a. Ed. Campinas, Autores Associados, 2000).

Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo, Autores Associados/Cortez, 1980. (13a. Ed. Campinas, Autores Associados, 2000).
Escola e Democracia. São Paulo, Autores Associados/Cortez, 1983 (34a. Ed. Campinas, A. Associados, 2001). Obs.: traduzido para o espanhol: Escuela y Democracia. Montivideo, Monte Sexto, 1988.
Ensino Público e algumas falas sobre Universidade. São Paulo, A. Associados/Cortez, 1984. (5a. Ed., 1991).
Política e Educação no Brasil. São Paulo, A. Associados/Cortes, 1987(4a. Ed., Campinas, Autores Associados, 1999).
Sobre a Concepção de Politécnia. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1989.
Pedagogia Histórico-Crítica. São Paulo, A. Associados/Cortez, 1991. (7a. Ed., Campinas, A. Associados, 2000.).
Educación: Temas de actualidad. Buenos Aires, Libros del Quirquincho, 1991 (em Português: Educação e Questões da Atualidade. São Paulo, Cortez/Livros do Tatu, 1992.
A Nova Lei da Educação: trajetória, limites e perspectivas. Campinas, Autores Associados, 1997 (7a. Ed., 2001).
Da nova LDB ao novo Plano Nacional de Educação: por uma outra Política Educacional. Campinas, Autores Associados, 1998 (3a. Ed., 2000).
Para uma história da educação latino-americana (Org.). Campinas, Autores Associados, 1996.
Formação de Professores: a experiência internacional sob o olhar brasileiro (Org.). Campinas/São Paulo, Autores Associados/NUPES, 1998 (2a. Ed., 2000).
História e História da Educação: o debate teórico-metodológico atual (Org.). Campinas, Autores Associados/HISTEDBR, 1998 (2a. Ed., 2000).
História da Educação: Perspectivas para um intercâmbio internacional (Org.). Campinas, Autores Associados/HISTEDBR, 1999.
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Fonte: Jornal da Unicamp (http://www.unicamp.br/unicamp/)


sábado, 18 de maio de 2013

Pensamento em movimento: conhecer e construir o novo


 Aos 18 anos, Michael Löwy era um atento estudante de ciências sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Ali assistia as conferências de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Otávio Ianni e Paul Singer, que o convidaram a participar do prestigiado núcleo de estudos de O Capital. Aos 26, no círculo de Lucien Goldmann e laureado sociólogo pela Sorbonne, em Paris, foi estudar hebraico num kibutz e lecionar história na Universidade de Tel-Aviv, em Israel. Aos 30, com o Maio de 68 sacudindo a França, recebeu (e aceitou) um convite para lecionar na Universidade de Manchester, na Inglaterra. Ainda distante dos 40 anos, em 1970,  descobriu-se persona non grata no Brasil, do general Médici, e tornou-se um judeu paulistano sem passaporte brasileiro, estabelecendo-se definitivamente Paris, e tornando-se um prestigiado intelectual internacional, com obras traduzidas em diversos idiomas. É diretor emérito de pesquisas do francês Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS. Profundo estudioso do legado marxiano, é, de igual modo, uma referência nas pesquisas sobre religião na América Latina, designadamente nas abordagens sobre a Teologia da Libertação. E combina tudo isso com a visão romântica/surrealista do mundo. Um intelectual independente, de pensamento em movimento e criativo. Sem recusar a autocrítica e sem temor de enfrentar o que virá. Afinal, lembrando Platão, "podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; contudo, a real tragédia da vida é quando os adultos têm medo da luz". Saiba o porquê nos extratos da entrevista abaixo, concedida ao Instituto Humanitas Unisino On-line (http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/). 

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Trabalho do australiano Matthew Weatherstone, da série 'The Disconnect', 'Humanity' e By 'Light and Day' 

IHU On-Line – Quais são as peculiaridades da revolução na obra do jovem Marx? Em que aspectos sua teoria se modifica em seus escritos posteriores?
Michael Löwy – Nas Teses sobre Feuerbach (1845) – o germe genial de uma nova concepção do mundo, segundo Engels – e na Ideologia alemä (1846), Marx inventa uma nova teoria, que se poderia definir como filosofia da práxis (o termo é de Gramsci). Superando dialeticamente o idealismo neo-hegeliano – para o qual a mudança da sociedade começa com a mudança das consciências – e o materialismo vulgar – para o qual é necessário primeiro mudar as “circunstâncias” materiais –, Marx afirma, na Tese n. III sobre Feuerbach: na práxis revolucionária, coincidem a mudança das circunstâncias e automodificação dos indivíduos. Como ele explica pouco depois na Ideologia alemã : uma consciência comunista de massas só pode surgir da ação, da experiência, da luta revolucionária das massas; a revolução é não apenas necessária para derrubar a classe dominante, mas também para que a classe subversiva se liberte da ideologia dominante. Em outras palavras: a única emancipação verdadeira é a autoemancipação revolucionária. Essa tese vai ser um fio vermelho, através de toda sua obra, mesmo que as formulações sejam mais diretamente políticas e menos filosóficas. Por exemplo, no célebre preâmbulo dos Estatutos da Primeira Internacional (1871): “A emancipação dos trabalhadores será a obra dos próprios trabalhadores”. Mas isso vale também para o Manifesto Comunista , para os escritos sobre a Comuna de Paris, etc.

IHU On-Line – Como pode ser compreendida a ditadura do proletariado face a democracia que emana da teoria da revolução comunista?
Michael Löwy – A expressão “ditadura do proletariado” foi pouco feliz. Mas como o demonstrou o socialista americano Hal Draper, o que Marx e Engels queriam dizer com isso era o poder democrático dos trabalhadores, tal como o conheceu a Comuna de Paris, que teve eleições democráticas, pluripartidarismo, liberdade de expressão, etc. No século XX, essa expressão serviu para justificar políticas autoritárias em nome do comunismo, que não correspondem ao pensamento de Marx.

IHU On-Line – O que mudou na esquerda desde o lançamento da primeira edição de A revolução comunista na obra do jovem Marx?
Michael Löwy – O título da primeira edição (não da tese de doutorado) era A teoria da revolução no jovem Marx, publicado pelas Editions Maspero, em 1971. Desde então muita água correu nas margens do Sena, e a versão estalinista da esquerda, que predominou durante boa parte do século XX, entrou em crise e praticamente desmoronou no mundo inteiro. Fica então confirmada, pela via negativa, a tese de Marx: a única revolução verdadeira é a autoemancipação dos oprimidos.

IHU On-Line – Em termos gerais, o senhor considera que a esquerda em suas diferentes experiências (União Soviética, Leste Europeu, América Latina, Europa e Brasil) compreendeu Marx de forma equivocada? Por quê?
Michael Löwy – Na URSS, em seus primeiros anos, existiu talvez uma compreensão equivocada do marxismo, uma leitura autoritária de certos textos. Mas a partir do stalinismo, em meados dos anos 1920, já não se trata de equívoco, mas de uma ideologia de Estado, pretensamente marxista-leninista, visando justificar o poder totalitário da burocracia e suas políticas oportunistas. Infelizmente, os partidos comunistas da Europa, América Latina e Brasil seguiram, durante muitos anos, a orientação stalinista. Mas já a partir de 1956 e, sobretudo, de 1968 (invasão da Tchecoslováquia), muitos comunistas começaram a questionar esta ideologia. Na América Latina foi a Revolução Cubana que provocou uma profunda crise no movimento comunista.

IHU On-Line – A revolução permanente de Trotsky é uma categoria adequada para se pensar a esquerda hoje? Por quê?
Michael Löwy – A teoria da revolução permanente de Trotsky – que havia sido formulada por José Carlos Mariategui , no contexto latino-americano, desde 1928 – é a única que dá conta da dinâmica das revoluções do século XX: revoluções russa de 1917, chinesa, iugoslava, vietnamita, cubana. Em todos estes países, uma revolução democrática, agrária e/ou anticolonial se transforma num processo ininterrupto – permanente – em revolução socialista. Infelizmente, em todos estes processos – com a exceção parcial de Cuba – acabou se dando uma degeneração burocrática. Isso não é uma fatalidade, mas o produto de circunstâncias históricas. O que vale ainda hoje é a visão estratégica: as revoluções na periferia do sistema serão revoluções socialistas, democráticas, agrárias e anti-imperialistas ao mesmo tempo; ou então serão “caricaturas de revolução”, como dizia Che Guevara. Dito isso, não se pode considerar a teoria de Trotsky como um dogma infalível: ele previa, nestas revoluções, um papel dirigente da classe operária, que só se deu no caso russo de 1917.

IHU On-Line – Como concilia a militância socialista e surrealista? Como essas vertentes se complementam e confluem para o trotskismo?
Michael Löwy – O surrealismo é um movimento romântico revolucionário, de reencantamento do mundo, que tem uma vocação eminentemente subversiva: é, portanto, perfeitamente compatível com a militância socialista. Aliás, muitos surrealistas, como o poeta Benjamin Péret – que esteve vários anos no Brasil – nunca deixou de militar, e combateu em 1936-37, nas fileiras antifascistas na guerra civil espanhola.
Em 1938, André Breton , o fundador do surrealismo, viajou ao México para encontrar Leon Trotsky, então exilado em Coyacan. Os dois redigiram juntos um manifesto, intitulado Por uma arte revolucionária independente, contra qualquer controle de partido ou Estado sobre atividade poética ou artística. Pouco depois, será fundada a Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente – FIARI, na qual participam surrealistas, trotskistas, e outros. Mas o surrealismo não se relacionou somente com o trotskismo: teve também vínculos com o anarquismo, em particular nos anos 1950, e chegou a se aproximar de Cuba revolucionária nos anos 1960. Suas simpatias vão a todo movimento autenticamente revolucionário.
(...)
IHU On-Line – O filósofo como cabeça e o proletariado como coração da revolução. Até que ponto essa ideia de Marx inspira a esquerda do nosso tempo?
Michael Löwy – Essa ideia, de corte tipicamente neo-hegeliano, foi defendida por Marx no começo de 1844. Mas pouco depois, impactado pelo levante dos tecedores da Silésia (norte da Alemanha), de junho de 1844, ele descobre que o proletariado alemão é “filosófico”, não precisa esperar pelos neo-hegelianos para se sublevar. Ainda hoje, encontramos na esquerda essa visão idealista, neo-hegeliana, que faz do filósofo, ou da vanguarda, ou do partido, a “cabeça” da revolução. A revolução é um belo monstro com mil cabeças.

 (...)
IHU On-Line – Quais são os principais limites do pensamento marxista? O que explica que o marxismo seja visto por muitos setores da academia como retrógrado?
Michael Löwy – O marxismo é um pensamento em movimento, que trata de superar os limites que estão presentes na própria obra de Marx e Engels: por exemplo, um tratamento muito insuficiente da questão ecológica. Alguns setores da academia confundem o marxismo com sua caricatura retrógrada, a ideologia do assim chamado “socialismo real”. Outros, identificados com a ideologia dominante, pretendem que o desenvolvimento capitalista represente o “progresso”, sendo o marxismo “arcaico”, por se opor à expansão do mercado e à acumulação do capital.
Penso que tinha razão Jean Paul-Sartre ao dizer que o marxismo é o horizonte intelectual de nossa época; as tentativas de “superá-lo” – pós-modernidade, pós-marxismo, etc. – acabam sendo regressões políticas e culturais.
                                                                                                                    

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Pessoa, Odes de Ricardo Reis: teu destino

    "Nascido" no Porto em 1887, "formado" em medicina, com forte educação clássica, Ricardo Reis teve "suas razões" para cruzar o Atlântico. Da data de sua morte, não há informações seguranças - a não ser o que imaginou Saramago com o seu Ano da Morte de Ricardo Reis. Fragmentos de Fernando Pessoa, em Odes de Ricardo Reis. 


    Segue o teu destino,
    Rega as tuas plantas,
    Ama as tuas rosas.
    O resto é a sombra
    De árvores alheias.

    A realidade
    Sempre é mais ou menos
    Do que nós queremos.
    Só nós somos sempre
    Iguais a nós-próprios (...)

Imposturas intelectuais, ciência e pós-modernidade: lembranças de uma fraude

O caso é conhecido, mas, a julgar pela proliferação de coisas sem sentido e tolices que têm emergindo pelo mundo acadêmico atualmente, parece ter caído no esquecimento ou algumas pessoas dele nunca ouviram falar. Convém (re)lembrar. Corria o ano de 1996, quando o físico Alan Sokal (Universidade de Nova Iorque) publicou um artigo recheado de disparates na pós-moderna revista Social Text, um artigo sem fundamento, composto por um amontoado de gritantes equívocos conceituais, mas numa linguagem ao "gosto de seres de outro planeta" e plena de jargões que fazem a festa das limitações pós-modernas. O artigo chamava-se Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity (numa tradução direta, Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica). Dentre outros embustes, o texto de Sokal realçava, por exemplo: 

"Nunca, na história da filosofia, uma vitória foi tão completa como a que goza hoje a epistemologia pós-moderna, em especial sua vertente relativista. Por meio da expansão cognitiva imbricada no indeterminismo quântico e na teoria do caos, a ciência pós-moderna abole o conceito de realidade física e privilegia a não-linearidade e a descontinuidade. Ao mesmo tempo, por meio do (meta)cruzamento dos conceitos, desconstrói e transcende as distinções metafísicas cartesianas entre humanidade e Natureza, observador e observado, sujeito e objeto. Baseia sua perspectiva ontológica sobre a trama dinâmica das relações entre o todo e as partes; no lugar de essências individuais fixas, conceitualiza interações e fluxos."   

E mais: 

"Em nenhum lugar esse movimento pode ser identificado mais claramente do que na teoria quântica da gravitação. Pesquisas recentes nessa área, alimentadas pela metacrítica do desconstrutivismo, têm liberado a investigação científica de seus velhos pressupostos objetivistas e, em consequência, trazido a física para uma crescente harmonização com as humanidades. Tão íntima é essa aproximação que, por exemplo, as teorias psicanalíticas de Jacques Lacan encontram confirmação em investigações realizadas no terreno da teoria quântica de campos. E é sintomático observar a dívida da nova física para com o trabalho de pensadores desconstrutivistas, como é exemplo paradigmático a teoria da estrutura e dos signos no discurso científico, de Derrida."

A bazófia é grande. Mas, nesse amontoado, é dito, entre outras barbaridades, que a realidade física não existe e que uma área de pesquisa que lida com o micromundo (a teoria quântica de campos) estaria surgindo não só inspirada nos escritos de Derrida como, também, proporcionando suporte às especulações de Lacan e, mais ainda, dando apoio a uma física com implicações para a cultura e a prática política. Qual era, contudo, o objetivo de Sokal? Ele próprio revelou numa publicação em outro periódico (Língua Franca): disse que o artigo era, propositadamente, uma frande, e que ele pretendeu demonstrar que determinadas perspectivas pós-modernas não passam de um ajuntamento de chavões sem sentido, com graves equívocos conceituais, que primam por uma linguagem incompreensível, e que valorizam tudo evidencie citações dos seus teóricos. O vexame então foi grande para a revista Social Text e os seguidores das suas abordagens. Quanto a Sokal, aproveitou-se do fato e escreveu, junto com o belga Jean Bricmont, o livro Imposturas Intelectuais, onde são tratados em pormenor os referidos embustes. A seguir, uma resenha do livro.  



Imposturas Intelectuais (Rio de Janeiro, Editora Record, 2006, 322 págs)

Por Roberto Fernández

“Impostura”, de acordo com o dicionário, significa “embuste, engano artificioso; afetação de grandeza; superioridade, orgulho, confinante com a empáfia e a bazófia”. Os cientistas Alan D. Sokal (Universidade de Nova Iorque) e Jean Bricmont (Universidade Católica de Lovaina, Bélgica) sustentam que intelectuais de renome, associados à corrente convencionalmente conhecida como “pós-modernismo”, têm incorrido sistematicamente em “abusos reiterados de conceitos e termos provenientes das ciências físico-matemáticas”, a ponto de constituírem verdadeiras imposturas intelectuais. Podem ser identificados quatro tipos de abusos:
1.    “Falar abundantemente de teorias das quais se tem, no máximo, uma vaga idéia”;
2.    “Importar noções das ciências exatas para as ciências humanas sem dar a menor justificação empírica ou conceitual”;
3.    “Exibir uma erudição superficial ao jogar, sem escrúpulos, termos especializados na cara do leitor, num contexto em que eles não têm pertinência alguma”; e
4.    “Manipular frases desprovidas de sentido e se deixar levar por jogos de palavras”.
Neste polêmico livro, os autores fundamentam suas teses mediante numerosas citações, organizadas por autor (Lacan, Kristeva, Irigaray, Latour, Baudrillard, Deleuze e Guattari e Virilio) e por tema (caos, teorema de Gödel, relatividade restrita).
Sokal e Bricmont não se atêm a pequenos erros ou imprecisões isoladas ou àquelas próprias de um uso metafórico no discurso literário ou poético. Pelo contrário, nos autores analisados, as teorias e conceitos científicos jogam um papel não marginal, seja porque são usados nos fundamentos das suas teorias (Lacan e Kristeva), seja porque são precisamente o objeto de estudo (Irigaray, Latour, Deleuze e Guattari); em todo caso, seu uso contribuiu para que fossem elogiados por seu “rigor”, “extrema precisão”, “erudição surpreendente” e juízos similares.
A lista de exemplos é longa e bem documentada. Atribui-se ao psicanalista Jacques Lacan o abuso de tipo 2, quando declara, sem fundamentação lógica ou empírica, que o toro (estrutura topológica correspondente a um anel) é “exatamente a estrutura do neurótico” e que outras estruturas topológicas correspondem a outras patologias mentais. Seu uso dos números imaginários é declaradamente feito como metáfora, mas conduz a afirmações curiosas como: o “órgão eréctil (…) é igualável à raiz de -1”. Os textos em que Lacan recorre à lógica matemática, por outra parte, são considerados exemplos dos abusos 2 e 3 ao mesmo tempo: “Lacan exibe diante de não especialistas seus conhecimentos de lógica matemática; mas (…) a ligação com a psicanálise não está sustentada por lógica alguma”. Sokal e Bricmont absolvem Lacan dos abusos de tipo 1, ainda que em certos textos ele apresente uma definição incorreta de conjuntos abertos, definições sem sentido da noção de limite e de conjuntos compactos, e confunda números irracionais com imaginários.
Os trabalhos sobre lingüística e semiótica de Julia Kristeva ilustram também exemplos de abusos de tipo 2 e 3. Conceitos matemáticos delicados são introduzidos sem que se explique sua possível relação com a lingüística e revelando óbvia falta de compreensão: o axioma da escolha, que justamente permite provar a existência de conjuntos sem construi-los explicitamente, é invocado como implicando uma “noção de construtividade”; a hipótese do contínuo é mencionada, se bem que o conjunto de todos os livros possíveis seja apenas enumerável, e o muito popular teorema de Gödel é interpretado exatamente ao contrário. A intelectual feminista Luce Irigaray, por sua vez, num ensaio sobre o “subdesenvolvimento” da mecânica dos fluidos (identificados com a feminilidade), confunde a dificuldade matemática para obter soluções das equações de Navier-Stokes com a “impotência da lógica” e demonstra não compreender que são derivadas usando aproximações que excluem sua aplicação a escalas moleculares.
Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paul Virilio valem-se de abusos de tipo 1 e 4. Sokal e Bricmont selecionam extensas citações, inclusive uma de quase três páginas, em que se justapõem numerosos termos científicos (atrator estranho, exponencial, fractal, caos, singularidade, energia potencial, superfície topológica, função, partícula etc.), em parágrafos intrincados e sem concatenação lógica de argumentos, num jogo de analogias baseadas nos diferentes sentidos vagamente atribuídos a esses termos na linguagem comum.
Os escritos de Virilio são, talvez, os mais abertos à sátira. Por exemplo, no que diz respeito ao papel das velocidades, confunde velocidade com aceleração e quantidade de movimento com a equação logística. Mas Deleuze e Guattari providenciam ainda outro tipo de exemplo importante. Em suas análises de filosofia da matemática, retomam confusões devidas a Hegel (classificação errada de frações, noção de função superada há 150 anos) e fazem uma descrição obscura e complicada do cálculo infinitesimal, enquanto marcam a necessidade de uma “exposição rigorosa” de seus princípios. Aparentemente, ignoram que tal exposição existe desde o início do século passado.
O capítulo dedicado a Bruno Latour é particularmente revelador, pois ilustra os riscos de se tentar uma análise profunda a partir de uma compreensão superficial. Com o propósito de demonstrar que a teoria da relatividade restrita é uma construção social, faz uma leitura semiótica do livro Relativity, de Einstein, no qual se apresentam os argumentos baseados em trens, observadores e sinais luminosos, que todo estudante de física conhece bem. Latour engana-se e centra sua análise em elementos puramente pedagógicos da exposição de Einstein. Por exemplo, atribui grande importância à existência de três sistemas de referência a uma só vez (isso pode acontecer ocasionalmente numa exposição didática, mas a teoria trata da relação entre dois sistemas) e ao fato de os observadores serem humanos (eles são humanos nos exemplos do livro de Einstein, mas na maioria dos experimentos e fenômenos os “observadores” são instrumentos, discos de computador e até partículas elementares), e confere um papel privilegiado ao “narrador” (a teoria não tem sistema privilegiado nem “narrador”, se bem que a exposição pedagógica precise de um).
De fato, a teoria da relatividade conta com uma rica história de mal-entendidos por parte de filósofos. Os que se originam na interpretação errada de Bergson são especialmente persistentes, como fazem notar Sokal e Bricmont num capítulo muito claro e explícito. Henri Bergson, por razões puramente filosóficas, recusou-se a aceitar as noções einsteinianas de simultaneidade e tempo próprio e procurou estender o princípio de relatividade às acelerações. Seus argumentos conduzem a previsões que contradizem experiências atualmente conhecidas. No entanto, os erros bergsonianos reaparecem na obra de filósofos posteriores, como Jankélevich, Merleau-Ponty e Deleuze.
A teoria do caos é outra vítima de maltrato em livros e ensaios bastante difundidos. Sokal e Bricmont expõem e clarificam os erros mais típicos: o caos, quer dizer, a sensibilidade às condições iniciais, não marca qualquer “limite” oucul-de-sac da ciência; pelo contrário, tem aberto novas possibilidades de pesquisa. O caos não significa o fim do determinismo (aparece em equações perfeitamente determinísticas), ainda que obrigue a adotar um sentido probabilístico da previsibilidade comparável ao adotado em mecânica estatística no último século. O caos não significa um descrédito da mecânica newtoniana, mas sim o seu renascimento. De fato, esta última, considerada o paradigma do “pensamento linear”, leva a equações não-lineares, que algumas vezes exibem caos, se bem que a mecânica quântica, considerada mais próxima do “pensamento não-linear” preconizado pelos pós-modernistas, seja exatamente linear.
O livro é escrito de forma direta, incisiva, sem ambigüidades, pedantismo, paráfrases ou elipses. Sokal e Bricmont não se interessam pelo vôo literário nem pelas sutilezas acadêmicas; querem apresentar seus pontos de vista sem dar lugar a dúvidas. Explicam pacientemente os aspectos científicos (com ajuda de uma lista de referências que pode ser de grande utilidade para os interessados em iniciar-se nesses temas) e expõem com franqueza suas intenções: “defender os cânones da racionalidade” e da honestidade intelectual. Sua posição filosófica contraria o relativismo cognitivo e questiona as teses de Popper, Quine, Kuhn e Feyerabend (que nutrem o ceticismo epistemológico) e do “programa forte” em sociologia da ciência. Essa franqueza algumas vezes chega ao limite da agressão verbal e introduz no livro um tom quase fundamentalista, que pode provocar discussões desnecessariamente marcadas pela emoção.
Mas o legado mais importante deste livro é, precisamente, o catálogo de exemplos de erros, de falta de compreensão e até de preguiça intelectual de pensadores contemporâneos, quando analisam o conhecimento científico recente e não tão recente. É um mostruário sólido, convincente, irrecusável, que tem existência independente das opiniões dos compiladores. Está ali para que cada um ajuíze. Compreensivelmente, na polêmica gerada pelo livro, ninguém põe em dúvida o fato de que os erros apontados são realmente erros. As críticas referem-se antes à relevância desses escritos na obra dos autores considerados e às intenções finais de um livro como este. Sokal e Bricmont esclarecem que não ajuízam o resto das obras dos autores analisados, mas apenas as referências à física e à matemática (todavia, gostariam que outros, mais competentes, ajuizassem tendo em conta as imposturas apontadas), nem discutem se as imposturas são premeditadas ou de boa fé (o título do livro fala de “imposturas”, e não de “impostores”). E, se bem Sokal e Bricmont confessem intenções filosóficas e até políticas, elas não vêm ao caso.
Os exemplos no livro falam por si. Para alguém com uma mínima formação científica, sugerem diversas questões para debate. Será que o hiato entre as “duas culturas” de Snow foi ampliado ou fossilizado? Será que todo um setor da intelectualidade, cuja atividade se baseia no discurso, nas argumentações teóricas, no confronto de pontos de vista, está perdendo a capacidade de compreender o método científico submetido ao controle inexorável dos experimentos? Será que a analogia injustificada e as “provas” por combinação de frases sugestivas são uma metodologia aceitável nas humanidades? Será que os argumentos baseados na precedência, inerentes às pesquisas nas humanidades, degeneraram-se num princípio de autoridade que acha os erros de Hegel mais confiáveis que 150 anos de desenvolvimento matemático? (Não é isso uma regressão aos tempos em que, quando as observações discrepavam da doutrina de Aristóteles, se preferia esta última?) Ou será que um verdadeiro menosprezo pela lógica e pelos desenvolvimentos científicos tem sido instalado em estratos visíveis da intelectualidade, perpetuado por círculos nos meios de comunicação inclinados a modas ou não qualificados e amparado na falta generalizada de formação científica, na indiferença (próxima ao pedantismo dos próprios cientistas) e numa tradição humanista de tolerância e não comprometimento, que deixa nas mãos do tempo a depuração do que vale?
É indubitável que o trabalho de Sokal e Bricmont abre a oportunidade para um debate muito saudável e necessário, o qual, se for desenvolvido com grandeza, pode inclusive catalisar uma aproximação entre a ciência e as humanidades, em sua busca comum da compreensão da natureza e do espírito humano.