Da pena do português Ruy Belo, uma reflexão sobre o Natal (in Obra Poética de Ruy Belo, vol 3, Lisboa: Editorial Presença, 1998) - mantenho o grafo lusitano do texto.
'Janelas de Natal': quais sentidos? |
Por Ruy Belo
Aí temos mais uma vez o Natal. Chega inexoravelmente, como o cair das folhas ou a velhice. Veio, éramos nós pequenos, vem hoje que a vida passou por nós, continuará a vir amanhã independentemente de nós. O que de nós depende é recebê-lo ou não. Transmitiram-no-lo os nossos pais, olhámo-lo originalmente com esses olhos lavados que trouxemos ao mundo, capazes ainda da grande intensidade de uma primeira visão. Que terá acontecido depois? Os dias repetiram-se, alguma coisa ruiu perto de nós. Continuará a vir o feriado nacional ou a festa da família, mas não há nada que nasça dentro de nós. E, no final do ano, nem teremos coragem de deitar pela janela fora as coisas velhas, porque ficaríamos nus. Foi Natal lá fora, nos outros, mas em nós ninguém nasceu. Talvez ombros alheios nos tenham contagiado uma certa animação por essas ruas engalanadas, um vago sentimentalismo ter-nos-á empurrado para dentro de um comboio, a caminho da família, da quinta ou da aldeia.
(...) Esqueceu-se que há uma realidade por trás de todo o movimento de gente que enche os comboios, sobrecarrega de trabalho o serviço dos Correios e requer a intervenção do Grémio dos Lojistas para decretar horas especiais de encerramento do comércio. Na alegria das crianças, no aconchego dos lares, no colorido das ruas, oculta-se um mesmo motivo a aproveitar por todo aquele que não quer virar o rosto às realidades.
(...) Mera questão de palavras? É possível que sim. No entanto, a gramática está longe de ser um instrumento tão inocente como poderia parecer à primeira vista. Por trás da gramática, está a lógica e para além dela a vida. A palavra é um bem perigoso, porque dá testemunho da realidade. É tarefa vã, mas possível e tentadora agir sobre os termos para deteriorar os conceitos e desviar a inteligência e a memória das situações que lhes deram origem. (...) Não se pode esperar que o homem humilde da rua vá à raiz da palavra
beber a vida. Urge facilitar-lhe a tarefa, desimpedir-lhe o caminho.
(...) O Natal não é mera questão de coração ou de sentimento, embora também o seja. Não se trata de um mero “símbolo eterno”, como é possível que se diga nos jornais e depois o leitor tome como verdade. Não se celebra uma cerimónia, nem tão-pouco se cumpre um simples ritual. Oxalá as crianças pudessem ver nas pessoas crescidas que hoje somos a certeza de um ideal vivido. Haveremos de brincar com as crianças?
Dá por vezes tristeza ver, entre outras coisas, os cartões de boas-festas que nos chegam. Trazem-nos as paisagens geladas do Norte, mostram-nos árvores que as nossas crianças nunca viram. Tudo isto por se imitar servilmente.
Fazer ver estas coisas equivale, parece-nos a nós, a pôr os pontos nos “is”. Urge, nestes tempos, aproximar a vida da verdade. Chamar as coisas pelo seu nome é garantir às crianças, que nesta quadra nos olham mais nos olhos, um mundo de amanhã melhor.
O espírito do Natal é este. Se o vivermos assim, ou se pelo menos tivermos o desejo sincero de examinar a forma como o temos vivido, o Natal não passará em vão.
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