sábado, 27 de dezembro de 2014

Erich Fromm encontra Freud: arte de amar e sexualidade


El amor es exclusivamente un acto de la voluntad y por lo tanto, en esencia, no importa en demasiado quién son las dos personas.
(Erich Fromm)

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Erich Fromm e Sigmund Freud

Por Ivonaldo Leite

Quando foi tomado pela ideia de eterno retorno, no caminho de Engadine, Nietzsche comoveu-se até as últimas lágrimas, assim como Jung, ao lado da jovem Sabina Spielrein, na ópera, não sustentou o choro. Em ambos os casos, variações de um mesmo sentimento de satisfação, em fronteira com o  amor, presente, por exemplo, na exclamação de Jung quando foi indagado por Sabina sobre a razão das suas lágrimas: Felicidade, exclamou ele[1].   
O amor, portanto, em suas diversas variáveis, ressalte-se, comporta dimensões que não se coadunem com “traduções” simplistas. Atento a isso, Erich Fromm desenvolveu uma apreciação crítica da abordagem freudiana sobre o referido tema, que, como é sabido, em Freud, incide fundamentalmente sobre a sexualidade. Aponta Fromm que Freud cometeu o erro de ver o amor “exclusivamente como expressão – ou uma sublimação – do instinto sexual” [2]. Mais ainda, prossegue ele: “Freud chegou a supor que a sexualidade, per se, é masculina, o que o fez ignorar a sexualidade feminina em sua especificidade. Expressou tal ideia na obra Uma Teoria Sexual, dizendo que a libido possui regularmente uma natureza masculina, trate-se da libido masculina ou feminina”[3].
Posto isto, From passa a apresentar uma definição do amor. Conforme esta, o amor não é essencialmente uma relação com uma pessoa específica; é uma atitude que determina o tipo de relação de uma pessoa com o mundo como totalidade, não com um “objeto” amoroso. Se uma pessoa, enfatiza ele, ama outra e é indiferente ao resto dos seus semelhantes, seu amor não é amor, mas sim uma relação simbiótica, ou um egoísmo ampliado. Continua o autor de A Arte de Amar:  a maioria das pessoas supõe que o amor é constituído por um objeto, não por uma capacidade; “chegam a crer que apenas o fato de se amar uma pessoa prova a intensidade do amor. Como não compreendem que o amor é uma atividade, um poder da alma, acreditam que ele pode ser concebido como um objeto”[4].  
Isto significa, enfatiza ele, que o amor, em todas as suas formas (maternal, paternal, fraternal, erótico), deve ser compreendido como sendo consubstanciado por alguns elementos básicos interligados, como, por exemplo, cuidadoresponsabilidade e conhecimento.
cuidado refere-se à atenção, à ternura, estando relacionado com a responsabilidade, no sentido de manter-se atento para responder às necessidades do/a outro/a. Mas sem que isso implique qualquer grau de possessividade, de dominação, sobre o outro. Daí decorre o imperativo da ideia de respeito ao modo como o/a outro/a é, o que, por outro lado, aciona a noção de conhecimento, pois, para se respeitar como alguém é, requer-se que se conheça esse alguém.
Dessa forma, Fromm questiona novamente o ‘pai da psicanálise’: “o que Freud paradoxalmente não tem em conta é o aspecto psicobiológico da sexualidade, a polaridade entre os sexos e o desejo de resolver essa polaridade por meio da união. Esse curioso erro provavelmente foi facilitado pelo extremo patriarcalismo de Freud”[5].  Seguindo esse encadeamento, realça que o amor genuíno não é um afeto no sentido de que alguém nos afeta, mas sim a potencialização da própria capacidade de amar e que tende ao crescimento e a felicidade da pessoa amada.
Ou seja, amar alguém é a realização e a concentração do poder de amar. A afirmação básica contida no amor dirige-se à pessoa amada como uma internalização das qualidades essencialmente humanas. E então, infere Fromm, o amor é uma arte, sendo fundamental para o seu êxito a superação do egoísmo/narcisismo, pois egoísmo e amor se opõem, na medida em que “as pessoas egoístas são incapazes de, verdadeiramente, amarem as demais pessoas”[6].  E talvez não amem nem mesmo a si próprias, visto que vivem ansiosamente preocupadas em arrancar da vida as satisfações que elas mesmas se impedem de ter.
Da ‘tese do amor como arte de amar’, temos um libelo crítico a Freud, que, assinala Fromm, desconsidera as diversas variáveis do amor e o reduz “basicamente a um fenômeno sexual”[7]. Procurando evidenciar o suposto reducionismo do ‘pai da psicanálise’, ele coloca em realce o modo como esse trata do amor fraterno: “para Freud, a experiência do amor fraterno é um produto do amor sexual, mas no qual o instinto sexual se transforma em um impulso com finalidade inibida”[8]. Para o autor de A Arte de Amar, o pensamento freudiano padeceu de uma influência de um determinado materialismo predominante no século XIX, o qual levava a crer que todos os fenômenos mentais se encontravam nos fenômenos fisiológicos. Por conseguinte, Freud considerou o amor, o ódio, a ambição, etc., como outros tantos produtos das diversas formas do instinto sexual. Não conseguiu ver que  a realidade básica está na totalidade da existência humana, isto é, em primeiro lugar, na situação humana comum a todos os seres humanos; e em segundo lugar, na prática de vida condicionada por uma estrutura específica de sociedade.
Estamos, enfim, diante de duas posições clássicas no seio da analise social em torno de algo nada irrelevante: através da abordagem do amor, a busca da fusão interpessoal para transcender as vidas individuais. As lágrimas de Jung ao lado de Sabina Spielrein. Felicidade. A leveza do ser proporcionada pela arte de amar.

  
Notas


[1] Trata-se de uma das cenas mais significativas do filme Jornada da Alma.

[2] FROM, Erich. El arte de amar: una investigación sobre la naturaleza del amor.  Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 55.

[3] Ibidem, p. 56.

[4] Ibidem, p. 67-68.

[5] Ibidem, p. 55-56.

[6] Ibidem, p. 85.

[7] Ibidem, p. 121.

[8] Ibidem, p. 121


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