Leont Etiel
Quando John Milk
experimentou pela primeira vez a aguardente à base de manipueira de mandioca,
sentiu qualquer coisa como um feitiço. Ele, que sempre estivera habituado com
os vinhos brancos, tintos e verdes do Norte de Portugal, viu-se tomado por algo
distinto.
Não precisamos dizer, mas
lembramos, que a fabricação do referido líquido era de responsabilidade da sua
costela, a morena Tayuan, a cabocla que pouco sabia, mas muito fazia,
encontrada por John em puro estado de natureza, tão logo ele pôs os pés em
Cruz da Serra. Já se via, pensava John, diferente das suas suspeitas iniciais,
que Cruz da Serra não seria a Santa Cruz do Deserto. De toda forma, ele não
teve como deixar de pensar que aquela sensação que estava a sentir - com a
aguardente à base de manipueira - era parte de um ritual de feitiçaria,
praticada pelos de Tayuan, como forma de prender as pessoas. Drogas nativas e
bruxaria, conjecturava John, homem que recebera uma rígida educação cristã,
revelamos agora, ministrada no Norte português, designadamente na cidade de
Braga. Ele ficou ainda mais intrigado ao saber que os de Tayauna praticavam um ritual
que consistia em - quando nascia uma criança - matar um animal nas imensas
florestas de Cruz da Serra para que a referida criança fosse banhada com o
sangue do animal morto.
Contudo, havia qualquer
coisa que começava a prender John naquele lugar. Não há como negar que o ‘jeito
lusitano de ser’, segundo as investigações gilbertofreyrianas, conforme mais
tarde se soube, contribuíra para John se acostar a Tayuan e se misturar com os
dela, iniciando então a mestiçagem em Cruz da Serra. Ainda sob os efeitos da
droga nativa, que sabemos não ser alguma erva, como a jurema (também usada
pelos de Tayuan), mas o líquido manufaturado da mandioca, John, que não devemos
esquecer ser o Milk, fez planos. Com um graveto de caju, que era como os índios
chamavam um pequeno pedaço de madeira da mencionada fruta, John fez riscos sobre
o chão. Olhando para as curvas das serras de Cruz da Serra, também John pensava
nas curvas da morena Tayuan. E assim inspirava-se para fazer a cartografia do
lugar. Pá, daqui já não saio, falava de si para si.
Temos que dizer que toda
essa cena, de ingestão da droga nativa, advinda da manipueira da mandioca, teve
lugar durante uma refeição. Quando John imaginava que o estoque de surpresas já
havia acabado, não deixou de ser surpreendido com outra novidade: finda a
refeição, os de Tayuan faziam circular outro líquido, preto, que chamavam ‘morto
no pau’. Com curiosidade aguçada, John quis saber o que era. Empreitada
comunicativa difícil, pois, não é nem preciso dizer, mas lembramos, John Milk
falava português, língua que Tayuan e os demais nativos nada entendiam e até
pensavam ser uma música cantada por aquele homem branco em homenagem aos deuses
do seu lugar. É evidente que essas barreiras linguísticas não foram obstáculo
para que os corpos de John e Tayuan se encontrassem, pois faz tempo que não
existem barreiras para o amor, visto que a sua linguagem é universal e é mediada
pela gramática do olhar e do sentir. Mas, a propósito do líquido preto que
circulava, finda a refeição, em tradução aproximada, dos resquícios ainda presentes
em terras Xukurus, ficou-se a saber que a denominação ‘morto no pau’ era a designação nativa do produto artesanal que depois chamou-se café.
John então, ébrio pela
droga nativa advinda da manipueira da mandioca, e agora acalentado por esse outro
líquido, fez riscos apressados sobre o chão e completou a cartografia de Cruz
da Serra. Levantou os braços aos céus e sentiu uma imensa vontade de viver. Era
o início dos anos de solidão.
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