segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O início dos anos de solidão: Cruz da Serra



Leont Etiel
Quando John Milk experimentou pela primeira vez a aguardente à base de manipueira de mandioca, sentiu qualquer coisa como um feitiço. Ele, que sempre estivera habituado com os vinhos brancos, tintos e verdes do Norte de Portugal, viu-se tomado por algo distinto.
Não precisamos dizer, mas lembramos, que a fabricação do referido líquido era de responsabilidade da sua costela, a morena Tayuan, a cabocla que pouco sabia, mas muito fazia, encontrada por John em puro estado de natureza, tão logo ele pôs os pés em Cruz da Serra. Já se via, pensava John, diferente das suas suspeitas iniciais, que Cruz da Serra não seria a Santa Cruz do Deserto. De toda forma, ele não teve como deixar de pensar que aquela sensação que estava a sentir - com a aguardente à base de manipueira - era parte de um ritual de feitiçaria, praticada pelos de Tayuan, como forma de prender as pessoas. Drogas nativas e bruxaria, conjecturava John, homem que recebera uma rígida educação cristã, revelamos agora, ministrada no Norte português, designadamente na cidade de Braga. Ele ficou ainda mais intrigado ao saber que os de Tayauna praticavam um ritual que consistia em - quando nascia uma criança - matar um animal nas imensas florestas de Cruz da Serra para que a referida criança fosse banhada com o sangue do animal morto.
Contudo, havia qualquer coisa que começava a prender John naquele lugar. Não há como negar que o ‘jeito lusitano de ser’, segundo as investigações gilbertofreyrianas, conforme mais tarde se soube, contribuíra para John se acostar a Tayuan e se misturar com os dela, iniciando então a mestiçagem em Cruz da Serra. Ainda sob os efeitos da droga nativa, que sabemos não ser alguma erva, como a jurema (também usada pelos de Tayuan), mas o líquido manufaturado da mandioca, John, que não devemos esquecer ser o Milk, fez planos. Com um graveto de caju, que era como os índios chamavam um pequeno pedaço de madeira da mencionada fruta, John fez riscos sobre o chão. Olhando para as curvas das serras de Cruz da Serra, também John pensava nas curvas da morena Tayuan. E assim inspirava-se para fazer a cartografia do lugar. Pá, daqui já não saio, falava de si para si.
Temos que dizer que toda essa cena, de ingestão da droga nativa, advinda da manipueira da mandioca, teve lugar durante uma refeição. Quando John imaginava que o estoque de surpresas já havia acabado, não deixou de ser surpreendido com outra novidade: finda a refeição, os de Tayuan faziam circular outro líquido, preto, que chamavam ‘morto no pau’. Com curiosidade aguçada, John quis saber o que era. Empreitada comunicativa difícil, pois, não é nem preciso dizer, mas lembramos, John Milk falava português, língua que Tayuan e os demais nativos nada entendiam e até pensavam ser uma música cantada por aquele homem branco em homenagem aos deuses do seu lugar. É evidente que essas barreiras linguísticas não foram obstáculo para que os corpos de John e Tayuan se encontrassem, pois faz tempo que não existem barreiras para o amor, visto que a sua linguagem é universal e é mediada pela gramática do olhar e do sentir. Mas, a propósito do líquido preto que circulava, finda a refeição, em tradução aproximada, dos resquícios ainda presentes em terras Xukurus, ficou-se a saber que a denominação ‘morto no pau’ era a designação nativa do produto artesanal que depois chamou-se café.  
John então, ébrio pela droga nativa advinda da manipueira da mandioca, e agora acalentado por esse outro líquido, fez riscos apressados sobre o chão e completou a cartografia de Cruz da Serra. Levantou os braços aos céus e sentiu uma imensa vontade de viver. Era o início dos anos de solidão. 

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