Por Jorge Herique
Salta aos olhos, tanto do leitor cultivado pelos estudos acadêmicos
quanto daquele leigo, a relevância que teve para a modernidade ocidental a
revolução promovida pelas inovações da estética romântica. Pode-se, sem
extremos esforços de imaginação, perceber, por exemplo, a herança da
subjetividade romântica na produção simbolista; os vestígios de seu ufanismo
nos textos de cunho nacionalista que lhe foram subseqüentes (os modernos da
Semana de 22, a título de crítica, retomam os românticos e fazem o mesmo que
fizeram – desta vez, por caminhos diferentes!); os laivos de seu
sentimentalismo exagerado na produção massificada de músicas populares, tão
atraentes ao gosto do povo brasileiro, que se mantém ainda muito “romântico”
até nossos dias; e não seria fora de propósito encontrar, por exemplo, no
"Surrealismo", cujo aspecto niilista enfatizava o papel do
inconsciente na atividade criadora, uma forma, talvez mais aguçada ou
degenerada, da negação do racionalismo que percebemos nos românticos. Pode-se
afirmar, contudo, que, dentre todas as suas contribuições, seu rompimento com
os modelos clássicos, sua proposta de liberdade é, sem dúvida, crucial para
arte moderna.
Pensar o artista como um ser regido por normas e modelos fixos e fixadores é,
no mínimo, um crime. Entretanto, é óbvio, que não se pode também deixar
vagar a imaginação sem o mínimo critério estético, permiti-la fazer os mais
desconcertantes devaneios e, ao cabo, chamar-lhe o produto dos delírios de
arte.
É difícil determinar o limite entre a descarga emotiva natural e a
“subjetividade objetiva” que se espera do artista das letras. Houve
poetas românticos que não conseguiram frear seus impulsos interiores e
produziram calorosos (quem sabe poéticos) desabafos. Muitos poetas de
ontem e de hoje começaram sua vida literária pela veia emotiva.
Deixaram-se levar pelas sensações e começaram a produzir textos.
Talvez a comoção seja a forma mais natural de se iniciar na vida
artística e literária.
Alguns poetas românticos, no entanto, a exemplo de Gonçalves Dias, souberam
dosar de maneira equilibrada os arroubos da emotividade e as inúmeras vantagens
que uma forma mais livre poderia possibilitar para a construção do artefato
poético.
Exemplo inconteste disso é o seu poema “Tempestade”, em que une aos aspectos
formais os temáticos ao sabor da necessidade, seguindo princípios de liberdade
formal bem definidos por ele mesmo no prefácio aos “Primeiros Cantos”:
“Muitas delas (as poesias) não têm uniformidade nas estrofes, porque menosprezo
regras de mera convenção; adotei todos os ritmos da metrificação portuguesa, e
usei deles como me pareceram quadrar melhor com o que eu pretendia exprimir
“.
O poema “Tempestade” se inicia com uma estrofe de duas sílabas.
Descreve-se, neste momento, a mudança do clima que dará início a uma
tempestade. À medida que o clima vai se tornando mais denso, mais
intenso, o número de sílabas por estrofe aumenta: a segunda com três sílabas; a
terceira com quatro, e assim por diante até o verso undecassílabo que coincide
com o momento mais intenso da tempestade descrita no poema. A densidade
do fenômeno natural é reforçada a todo o momento pela estrutura das estrofes e
pelos jogos sonoros produzidos por aliterações e assonâncias. Após o
momento mais intenso, a chuva vai diminuindo, o clima vai voltando ao que era
antes, e em harmonia com o desenvolvimento da descrição, os versos das estrofes
vão reduzindo seu número de sílabas até a estrofe dissilábica final. O
mesmo recurso funcional da forma acontece no “I – Juca Pirama”. O ritmo
heptassílabo é posto a serviço da temática textual ao longo de boa parte do
poema, figurando ora ritmos de músicas rituais indígenas (como a do momento
inicial do poema), ora criando atmosferas de luta e de profundo
sentimentalismo.
Graças a estas ‘liberdades’ a que os românticos se deram o direito, pode-se
imaginar a profundidade das inovações que a arte moderna deu ao legado cultural
que lhe foi deixado pela arte clássica. As contribuições da poesia
moderna desprenderam as palavras das amarras fixas de modelos predeterminados
para deixá-las livres a descortinar toda a gama de significações que se lhe
venham, tanto de seu aspecto semântico e sonoro quanto de seu aspecto visual e
espacial. A poesia concreta é exemplo disso. A paródia feita a um
clássico romântico “Canção do Exílio” por José Paulo Paes é prova do que a
liberdade das formas pode possibilitar ao trabalho semântico e estético do
texto:
“Lá?
Ah!
Sabiá...
Papá...
Maná...
Sofá...
Sinhá...
Cá?
Bah!”
Num poema profundamente denso e criativo, o poeta satiriza o sentimento de
exílio expresso na “Canção” e o aborda com maior intensidade poética quando
isola textualmente os dois pólos do dilema: “Lá” e “cá”. Explora o poeta
a sonoridade dos dois monossílabos opondo-os semanticamente pela própria
oposição que se estabelece entre os aspectos constritivo e oclusivo,
respectivamente, dos fonemas /l/ e /k/. A oclusão, que figura como todas
as formas de obstáculos que se podem oferecer ao “eu-lírico”, está presente no
“cá” (o exílio), enquanto o “lá” (o lar) oferece menos empecilhos à realização.
O “lá” também é mais livre, posto que é caracterizado pela interjeição
“Ah!”, que, por si, comunica tudo (veja-se a ausência de barreiras à passagem
do ar para se pronunciá-la). Enquanto o “cá”, caracterizado pela
interjeição “Bah!”, é todo obstáculos (note-se a oclusiva bilabial /b/ que
simboliza as barreiras que o “eu” enfrenta). Acrescente-se ainda o ritmo
imposto pelos versos dissilábicos do corpo do texto (melodiosos, tranqüilos,
suaves), que caracteriza exatamente o “lá”.
O salto qualitativo que a arte literária moderna deu no que diz respeito ao
trabalho semântico na palavra, à exploração estética de todas as suas
dimensões, ao uso da forma de maneira funcional, que contribuiu – acredito –
para a evolução do idioma, não seria possível sem os românticos. Seus
devaneios libertaram as palavras. Sua proposta modificou a cultura
ocidental de maneira marcante. E sua contribuição não se restringiu apenas à
poesia. O seu rompimento com as convenções clássicas se estendeu ao
drama, à prosa, à musica, à pintura e à escultura. Depois do Romantismo,
a arte ocidental é outra.
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Fonte: http://www.recantodasletras.com.br/artigos/1230410
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