Tendo a Serra uma cruz, é a Macondo de cada um |
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de casas de barro e taquara, construída à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las havia que apontá-las com o dedo.
(Gabriel García Márquez, in Cem Anos de Solidão)
Prêmio Nobel de Literatura e
um dos maiores escritores de Língua Espanhola de todos os tempos, Gabriel
García Márquez inaugurou
uma nova forma de contar histórias assim que resolveu meter-se com as letras.
No entanto, é em Cem anos de solidão que se pode notar o amadurecimento
completo da técnica narrativa do autor, que mescla a dura realidade da vida na
América Central à atmosfera fantástica que aquela terra, ainda tão virgem e
selvagem, suscita nas mentes dos que só a conhecem de ouvir falar.
Em
seu ensaio Cien años de soledad - Realidad total, Mario Vargas
Llosa afirma que a obra-prima de García Márquez é um microcosmo que reflete
toda a trajetória da América colonizada, desde a chegada dos europeus até a
hecatombe da perda de tudo que foi construído através dos anos e do sumiço de
toda a humanidade.
O
patriarca José Arcádio Buendía, tal qual um Moisés, conduz seu povo através dos
pântanos caribenhos e acaba por chegar àquela que lhes será a terra prometida,
a mítica e etérea Macondo, que se inicia no mundo com nada mais vinte casas de
barro postadas em um lugar onde o mundo é tão novo que certas coisas ainda não
têm nome e precisam ser apontadas com o dedo. Ao povoado chegam os ciganos, que
trazem consigo ímãs e gelo, para serem exibidos como se fossem artefatos
mágicos, o que, de fato, são para os habitantes dessa terra que ainda têm olhos
inocentes, pois nada aconteceu ainda. Com os ciganos vêm os árabes, que
contribuem para com a magia de Macondo, e o velho Melquíades, misto de sábio e
alquimista, que guiará as empresas amalucadas do patriarca da família.
Macondo
e a família dos Buendía seguem caminhos paralelos no livro: a estirpe vai
crescendo, o povoado também. Estranhos se imiscuem na hospitalíssima casa,
guiados pela forte e enérgica matriarca Úrsula, enquanto imigrantes vão
chegando e se instalando nas terras áridas do lugar. Macondo vai se ampliando e
se tornando o mundo real, mas sem jamais perder o caráter mágico que é encarado
por todos os seus habitantes como o normal de cada dia.
Os
Buendía vão se proliferando numa árvore genealógica complexa, em que os nomes
se repetem exaustivamente, sem que o mesmo aconteça com as pessoas: cada
Buendía é um astro no microcosmo de Macondo, com uma história única e pungente
que figura no rol da grande sina da família dos fundadores: nunca entender ou
gozar completamente o amor. Cada Buendía, a seu próprio modo, ou foge
alucinadamente desse sentimento ou o busca com tanta loucura e ímpeto que o que
encontram nunca lhes é o bastante.
Em
Cem anos de solidão, Márquez reconstrói o universal através do particular, numa
perspectiva completamente diferente de tudo o que já se havia visto na
literatura até o lançamento do livro, e Macondo caminha vagarosamente, com os
Buendía em seu seio, de sua gênese até o trágico final.
___________
Fonte: http://literatura.uol.com.br/literatura/figuras-linguagem/26/artigo159340-1.asp
Nenhum comentário:
Postar um comentário