Caro leitor, por atenção à versão original do artigo aí abaixo, eis o seu título completo: 'Um
meditabundo risonho sobre cousas metafísicas: nota sobre humorismo, pessimismo
e a fortuna crítica de Machado de Assis. A conferir.
Por Gabriel Peters (IESP-UERJ)
Demócrito e
Heráclito eram dois filósofos. O primeiro, achando que a condição humana é vã e
ridícula, apresentava-se sempre em público a rir e motejar. Heráclito, tomado
de piedade por essa mesma humanidade, andava perfeitamente triste e de lágrimas
nos olhos (Montaigne, 1987: 333).
Eis o contraponto entre leveza cômica e
seriedade melancólica diante de um mesmo diagnóstico quanto à absurda condição
de cada ser humano, jogado em um universo indiferente ao seu destino e que
terminará por exterminá-lo. Para aplicar à relação do humano com sua situação
cósmica o par de categorias sociológicas celebrizado por Norbert Elias, podemos
dizer que a diferença entre as sensibilidades cômica e trágica está fundada
sobre posturas existenciais de “alienação” e “envolvimento”. Assim como pode se
descobrir “lançado” (Heidegger), sem qualquer chance de escolha prévia, em um
mundo que irá matá-lo, sem que seu pavor a respeito disso possa fazer qualquer
coisa para evitar esse destino último, o ser humano tem a singular capacidade
de se desengajar, ao menos parcialmente, do palco dessa tragédia e do papel que
ele próprio desempenha nela para poder rir de sua desimportância. Sob esse
ângulo, comédia e tragédia aparecem não tanto como categorias distintas de
eventos, mas como pontos de vista ou atitudes espirituais distintas em face de
uma mesma realidade. Como viu Henri Bergson, um sujeito que desse “à simpatia a
mais irrestrita expressão” sentiria “uma coloração grave” incidir “sobre todas
as coisas”, ao passo que a substituição de uma atitude empática pela postura de
um espectador indiferente ao destino dos personagens observados, como que
submetido a “uma anestesia momentânea do coração”, fará com que ele veja, de
repente, “muitos dramas transformarem-se em comédia” (Bergson, 2007: 4).
A forma mais comum da contraposição entre
“envolvimento trágico” e “alienação cômica” não é autodirigida, mas ditada pela
simples diferença de condições entre atores interessados apenas no seu próprio
umbigo. Como disse Mel Brooks: “Tragédia é quando EU corto meu dedo. Comédia é
quando VOCÊ cai num esgoto a céu aberto e morre”. Nessas circunstâncias, a
insensibilidade do coração anestesiado pode até mesmo descambar para o regozijo
aberto diante das desventuras e aflições de outros, designado pelo que os
alemães chamam de Schadenfreude.
O riso sádico que expressa prazer diante da dor
alheia não esgota, no entanto, o conjunto das instrumentalizações possíveis do
sofrimento pela comicidade. Com efeito, o foco do presente texto recai sobre
perspectivas que mobilizam um diagnóstico existencial da absurdidade da
situação humana no universo em favor de um humor autodirigido e dotado de um
papel emocionalmente anestésico. O último advérbio indica que a auto-anestesia
aqui referida não consistiria em um sacrifício da lucidez intelectual, mas, ao
contrário, em uma intensificação dessa última pela via da “alienação”
existencial cômica, com vistas à neutralização dos afetos de horror e tristeza
que adviriam de uma visão completamente “envolvida” naquela condição absurda.
O procedimento de tomar a si próprio como objeto
de comicidade, de assumir que o homo ridens é, ele próprio, homo risibilis,
poderia assim adquirir a dignidade de um “exercício espiritual” análogo ao que
os estoicos (admitidamente, uma turma bastante séria) chamavam a “visão do alto”.
Tal exercício convida o indivíduo perturbado por aflições, tais como
arrependimentos quanto ao passado ou ansiedade quanto ao futuro, a sair
imaginativamente de si próprio, lançando-se ao alto - bem no meio da via
láctea, segundo o sonho de Cipião narrado por Cícero em Da República - para, de
lá, observar a pequenez dos assuntos humanos. Desde aquele ponto de vista, as
intrigas, guerras, rituais, disputas materiais, jogos de prestígio e todas as
demais atividades nas quais os seres humanos despendem tanto tempo e energia
adquirem, subitamente, um sabor ridículo. Para alguém cujas aflições derivam da
atribuição de uma magna importância a tais atividades, o exercício é
emocionalmente libertador, revelando o que até então pareciam dramas da maior
significação como cosmicamente insignificantes e, portanto, indignos de uma dor
de cabeça.
Freud explica
Vários dos maiores pensadores da condição humana
mostraram-se aptos a conceber e a vivenciar a tragicidade e a comicidade do
bípede implume simultaneamente, explorando a delicada tensão entre as duas
atitudes sem absolutizar qualquer delas em detrimento da outra (quanto à
caracterização “bípede implume”, aliás, o cínico Diógenes já havia sublinhado
há tempos que ela vale para o ser humano assim como para um frango depenado).
Freud, por exemplo, reservava a noção de humor, em contraponto aos seus
conceitos particulares de “chiste” e do “cômico”, para designar precisamente
esta espécie de ironia alquímico-afetiva em que circunstâncias que normalmente
evocariam afetos negativos como temor, tristeza ou ressentimento são vistas sob
uma perspectiva que as torna risíveis:
Alguns minutos antes da execução do prisioneiro condenado, o carrasco
oferece a ele um último cigarro, ao que o prisioneiro responde:
- Não, obrigado, estou tentando parar.
O pai da psicanálise sublinhou que o tipo de
libertação adquirida através do humor possuía um halo de “grandeza e elevação”
ausente nas satisfações agressivas ou eróticas presentes nos “chistes” e que
derivaria da...
...afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a
ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a
sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo;
demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para
obter prazer (Freud, 1974: 190).
Como um recurso psíquico que os indivíduos
mobilizam para lidar com condições existenciais de tensão e desconforto sem
serem assoberbados por esses sentimentos, o humor poderia ser elencado entre os
mecanismos de defesa da psique, “a extensa série de métodos que a mente humana
construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer – uma série que começa com a
neurose e culmina com a loucura, incluindo a intoxicação, a auto-absorção e o
êxtase” (op.cit: 191). Freud atribui ao humor, entretanto, a dignidade especial
de neutralizar afetos angustiantes e perturbadores, bem como afirmar o
princípio do prazer contra as frustrações exigidas pela realidade, de uma forma
que não ultrapassa “os limites da saúde mental” (idem).
O médico vienense se debruçou sobre uma
modalidade de comicidade praticada por vários de seus predecessores, de
Demócrito a Machado de Assis (falo dele em um minuto). No entanto, Freud estava
bem aparelhado para trazer algo de novo à análise desse fenômeno, a saber, a
analogia entre a postura do humorista que ri da angústia insensata e a posição
de uma figura paterna que “sorri da trivialidade dos interesses e sofrimentos
que parecem tão grandes” a uma criança. Tal como os pais consolam risonhamente
a criança em seu berreiro desesperado diante de aflições que consideram
minúsculas (e.g. um pirulito não comprado), o humor é lido por Freud como um
fenômeno em que o superego, afinal a instância psíquica que interiorizou o
papel das figuras paternas, intervém para confortar um ego ansioso e aflito
afirmando que o mundo que este julga ser tão perigoso “não passa de um jogo de
crianças” (Freud, 1974: 194). Para a turma interessada em psicanalices
(lacanagens etc.), o textículo de Freud sobre o humor, de 1928 (escrito,
portanto, mais de vinte anos após seu trabalho sobre Os chistes e sua relação
com o inconsciente [1905]), possui um interesse mais geral por nuançar a
caracterização do superego, o qual aparecia, na maior parte dos seus escritos, como
um senhor duro e punitivo a vigiar implacavelmente os movimentos do ego.
Galhofa e melancolia
Em poucos documentos de cultura a junção tensa
entre humorismo e pessimismo foi tão persistentemente patenteada quanto na fase
pós-romântica do nosso Machado de Assis, inaugurada com a famosíssima mistura
entre “a pena da galhofa” e “a tinta da melancolia” nas Memórias Póstumas de
Brás Cubas (1971 [1880]). Em magníficas páginas que dedicou à “prosa
impressionista” de Machado de Assis na sua Breve História da Literatura
Brasileira (1977: 150), José Guilherme Merquior mostrou como a intensidade
desse ambíguo entrelaçamento entre a ironia humorística e o pessimismo
metafísico foi obscurecida nas interpretações do opus machadianum avançadas
tanto por seus coetâneos (e.g. José Veríssimo) quanto pela geração posterior de
leitores banhados no entusiasmo modernista. Os primeiros teriam respeitosamente
trivializado a aspereza e o poder corrosivo do pessimismo cosmológico de
Machado ao tomá-lo como uma espécie de ornamento intelectual de superfície,
colocado a serviço do desiderato mais importante que era a elegância
escrupulosa da sua escrita. A correção dessa perspectiva ficaria a cargo de
críticos literários da geração seguinte, embebidos do “ânimo eufórico, futurista,
do modernismo de combate” (Merquior, 1977: 186) que contrastava
desconfortavelmente com a ironia amarga legada pelo consagrado prosador – Mário
de Andrade não disfarçava sua antipatia, e Manuel Bandeira chamou-o de
“monstro”. Foi precisamente essa estranheza ou mesmo choque entre os ânimos
literários de um e dos outros que proveio a intérpretes como Augusto Meyer
(1958), por exemplo, a sensibilidade necessária para intuir a autenticidade, a
profundidade e o alcance do sentimento trágico da vida na obra de Machado.
Se tal redescoberta representou, por um lado, um
ganho interpretativo frente às leituras anteriores que ignoravam o fato de que
suas “rabugens de pessimismo” eram algo mais do que um exercício desapegado de
estilo, esses críticos, por seu turno, teriam forçado demais a mão ao fazer do
humor machadiano uma fachada epidérmica que mal escondia, na expressão de
Afrânio Coutinho, um “ódio radical da vida e dos homens” (Coutinho, 1959: 95),
ódio cujas raízes poderiam ser supostamente explicadas pelo recurso aos traços
mais vultosos da sua biografia, como suas “moléstias” físicas e psicológicas
(e.g. epilepsia) ou um alegado “ressentimento” remontável às origens sociais
humildes do neto de escravos.
Ora, nem tanto à comédia, nem tanto à tragédia.
Ou, melhor ainda, um generoso bocado a ambas. Segundo Merquior (1977: 186),
além de reivindicar a primazia de especulações psicobiográficas sobre o terreno
empírico mais seguro da obra literária, aquele tipo de leitura dissolvia o
balanço dialético entre humorismo e pessimismo na prosa machadiana ao
menosprezar como seu uso livre da ironia cômica modulava a intuição existencial
da tragédia, pintando-a sob o aspecto do grotesco. Em passagem com sabor
tipicamente hegeliano, o crítico literário brasileiro assevera que a galhofa
fantasista[i] de Machado não
“nega”, mas conserva e “supera” o que o próprio escritor havia chamado, no
prólogo à quarta edição do seu livro, de “um sentimento amargo e áspero”
(Assis, 1971: 512) – orientação espiritual em que ele admitidamente destoava
dos modelos inspiradores de sua prosa viajante e digressiva (Lawrence Sterne,
Xavier de Maistre, Almeida Garret). Se o humorismo machadiano possui um efeito
de contrabalanço em relação à sua visão trágica da vida, a caracterização desse
equilíbrio em termos de uma “transcendência” (Aufhebung) hegeliana deixa
entrever, ao mesmo tempo, que o “momento” pessimista de fato precede o recurso
ao humor, o qual pode muito bem representar, aqui, um estratagema para a
diluição ou neutralização do pathos grave da tragédia. Embora seja temerário
projetar essas coisas (digo, “cousas”) na dinâmica psíquica do próprio Machado,
postulando que ele defendeu-se do próprio pessimismo fazendo uso escudado da
ironia, o fato é que esse próprio percurso está dramatizado na que é, talvez, a
passagem mais filosófica de toda a sua obra: o delírio de Brás Cubas.
Um hipopótamo leva Brás à “origem dos séculos”,
onde o narrador encontra o imenso vulto feminino da Natureza ou Pandora, cuja
gigantesca face mostrava-se sepulcralmente indiferente. Lembrando ao pobre
mortal que “a voluptuosidade do nada” o esperava inapelavelmente, e
permanecendo impassível diante de sua súplica por mais alguns anos, ela o leva
subsequentemente para o alto de uma montanha onde ele pode vislumbrar a
trajetória do mundo e do humano:
“Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos
eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos
apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o
espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. (...) Os séculos desfilavam num
turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo
o que se passava diante de mim, - flagelos e delícias, - desde essa coisa que
se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando
a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Ai vinha a cobiça que
devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de
suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos
agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as
formas várias de um mal, que ora mordia víscera, ora mordia o pensamento, e
passeava eternamente suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A
dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou
ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria
diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita
de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível,
cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, -
nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou
deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria,
como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão” (1971: 522-523).
Finalmente:
...ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia,
que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de
transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, - de um riso descompassado e
idiota.
- Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, - talvez monótona –
mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque
lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o
ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me (idem).
Primeiro, o berro angustiado; depois, um estalo
risonho que anuncia uma mudança de gestalt, imbuída do sentimento de que, vista
do alto qua espetáculo, toda aquela calamidade parece cômica. A passagem de
protagonista envolvido a espectador indiferente do destino humano representa
alegoricamente a transmutação filosófica do trágico em absurdo, uma espécie de
forma-chave que engloba uma série de variações. Poder-se-ia mencionar, por
exemplo, a passagem do metafísico ao prosaico, um tipo de humor em que Woody
Allen se tornou especialista:
E se tudo for uma ilusão e nada existir? Nesse caso, não há dúvida de
que paguei demais por aquele carpete novo.
Não apenas Deus não existe, como tente encontrar um encanador num fim de
semana.
Fui reprovado no exame de Metafísica. O professor me acusou de estar olhando
para a alma do rapaz sentado ao meu lado.
Espinafrando Afrânio
Voltemos a Machado – ou melhor, aos seus
intérpretes, sem temores de cair no deplorável gênero de crítica literária da
crítica literária. O título da presente seção tem uma razão de ser (além, é
claro, da tentativa de impressionar Arnaldo Antunes): a transmutação machadiana
do trágico em grotesco foi bem notada por Sérgio Buarque (1944) em um pequeno
ensaio que fustigava a interpretação hiperpascaliana que Afrânio Coutinho
(1959) oferecera da filosofia corporificada na obra do Bruxo do Cosme Velho.
Malgrado reconhecesse en passant que a influência do agoniado pensador francês
sobre Machado, de resto assinalada pelo próprio em uma famosa carta a Joaquim
Nabuco, era certamente temperada por outras paixões de escriba, como o
Eclesiastes, Montaigne e Schopenhauer, Coutinho forçou tanto a mão nos
paralelismos com Pascal que mesmo as demais referências machadianas por ele
citadas terminaram exageradamente amoldadas a essa influência-mestra.
Com efeito, um leitor que desconhecesse a obra
de Machado de Assis, ao ler as considerações de Coutinho acerca de sua
“formação filosófica” e “atitude espiritual” (1959: 59-96), dificilmente sairia
dali com a impressão de que os textos do escritor carioca, sem deixarem de ser
de densa problematização filosófica (psicológica, sociológica etc.), podem ser
extraordinariamente divertidos – e sabemos nós o que Pascal pensava da
diversão. Sobre o nexo Pascal-Machado de Assis, afirma Sérgio Buarque de
Holanda:
Um estudo dos dois autores pode levar a descobrir sob semelhanças
superficiais e epidérmicas a diferença profunda, vital, que na realidade os
separa. Para por em relevo essa diferença seria o bastante, talvez, assinalar
que Machado não era uma natureza religiosa (1944: 48).
Fazendo justiça a Afrânio Coutinho, devemos lembrar
que o grande crítico literário escreveu um parágrafo em que reconheceu, de
passagem, a radicalidade da distinção e colocou rapidamente em questionamento
sua própria tese fundamental quanto à influência maciça de Pascal sobre
Machado:
É o caso de se perguntar mesmo, se houve essa influência tão grande de
Pascal sobre ele, por que teria permanecido insensível ao estupendo elan religioso
que se desprende das Pensées...? (...) De feito, a inspiração cristã, a
intenção apologética, o sentimento religioso das Pensées, não o tocaram, o que
é realmente espantoso (1959: 93).
O espanto de Coutinho deixa transparecer
indiretamente, além (talvez) das suas próprias inclinações espirituais, a
dimensão excessiva a que ele levou a aproximação entre os dois autores. A
quase-absolutização da influência de Pascal sobre a Weltanschauung machadiana
tem seu paralelo na tese insistentemente martelada de que o escritor carioca
teria um profundo “ódio à vida”, expressão que sacrifica precisamente o modo
como o seu recurso ao humor irônico, de caráter radical e não simplesmente
epidérmico, transformava intimamente as feições de seu pessimismo. Como diz o
pai de Chico em seu comentário ao livro de Coutinho:
Em cinco páginas (162 a 167) aparecem seis vezes repetidas as palavras
sinistras: ‘ódio à vida’. Ainda aqui há pelo menos uma simplificação excessiva
e traidora, que o exame da obra de Machado não autoriza a endossar. No simples
ódio há uma ausência de complexidade e de nuances, uma limpidez, que
dificilmente poderia explicar qualquer reação de Machado diante da vida (1945:
49).
Se a atitude espiritual que salta
das páginas do Machado pós-romântico não chega a estar embebida da mesma leveza
e serenidade que dão sabor aos Ensaios de Montaigne, de quem Machado (como o
próprio Pascal) era frequentador assíduo, Miguel Reale tem razão em dizer que
ele “compartilhou do sorriso compreensivo e profundamente humano com que o
analista dos Essais envolveu os homens e as coisas” (1982: 10) – à maneira das
figuras paternas do superego que recorrem ao humor para mitigar as angústias
infantis do ego. A leitora interessada em perseguir mais a fundo a investigação
sobre as fontes filosóficas da literatura de Machado de Assis fará bem em ler o
volume A filosofia na obra de Machado de Assis (1982), em que Reale oferece,
além de uma primorosa introdução, uma antologia de passagens machadianas para
os meditabundos sobre cousas metafísicas.
Conclusão
Esta breve visita à obra de Machado, guiada
pelas mãos bem informadas de finos intérpretes literários brasileiros (é triste
pensar que todos eles são menos lidos do que Harold Bloom), não teve a
pretensão de oferecer qualquer coisa nova em termos da exegese de temas
filosóficos no seu trabalho, mas simplesmente aproveitá-la como uma fonte
riquíssima de ensinamentos sobre as atitudes cômica, trágica e tragicômica
diante do absurdo da vida. Sua aproximação com o Demócrito descrito na epígrafe
de Montaigne[ii] talvez sirva ao
menos para colocar na pauta desse texto o valor do humor como terapia da alma
para aqueles impregnados de perplexidade face à sua (nossa) condição. Se
“filosofar é aprender a morrer”, como disse Platão[iii] no Fédon pela boca
de Sócrates, pode-se concluir, deixando implícita a segunda premissa do
argumento, que filosofar também envolve aprender a rir, sobretudo de si
próprio.
Notas
[i] Com
efeito, o conceito que Merquior julga mais adequado para classificar o gênero
literário a que pertence Memórias Póstumas de Brás Cubas é o do
“cômico-fantástico”, estilo de literatura previamente esposado por uma galeria
ilustre de autores, situados em um arco que vai desde o satirista Luciano de
Samosata no século II até Leopardi no século de novecentos, cuja influência
decisiva sobre Machado foi recuperada por Otto Maria Carpeaux (1999:477-480).
Além da combinação entre seriedade e gracejo, manifesta sobretudo no trato
humorístico das questões mais graves da existência humana (o sentido da vida, a
relação com a morte etc.), a literatura cômico-fantástica também apresenta pelo
menos outros dois caracteres mais distintivos: a) a suspensão de qualquer neutralidade
ou distância moral do narrador em relação aos personagens por ele retratados,
suspensão que, em Machado, toma a forma sobretudo do desvelo das motivações
mesquinhas que invariavelmente subjazem aos atos mais nobres ou, pelo menos,
inocentes dos seres humanos; b) a oscilação livre entre o veraz e o onírico ou
fantasmático, com a presença desse último se casando a uma predileção por
experiências psicológicas aberrantes, como o famoso delírio de Brás Cubas
(Merquior, 1977: 167).
[ii] A
exiguidade do espaço impede qualquer esforço de fornecimento das mediações e
contextualizações necessárias em termos de história das ideias. Embora o
próprio Machado jamais tenha mencionado o filósofo risonho de Abdera, o
escritor brasileiro provavelmente banhou-se de motivos do materialismo
democrítico através de sua profunda intimidade literária com o enciclopedista
francês Diderot, de quem Machado gostava que se enroscava (Gianetti, 2010: 93).
[iii] Platão,
por um acaso, era um tantinho crítico em relação à filosofia de Demócrito, a
julgar pelo relato histórico de que ele teria expressado o intuito de mandar
queimar todas as obras do atomista que pudesse reunir, intenção da qual acabou
sendo dissuadido por dois interlocutores que o convenceram da inutilidade do
gesto incendiário (Brunschwig, 2001: 259; ver também o já citado Gianetti).
Referências
Bergson, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São
Paulo, Martins Fontes, 2007.
Brunschwig, Jacques. Demócrito. In: Huisman, Denis (Org.). Dicionário de filósofos. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
Carpeaux, Otto Maria. Ensaios
reunidos. Vol.1. Rio de Janeiro,
Topbooks/UniverCidade, 1999.
Coutinho, Afrânio. A filosofia de
Machado de Assis e outros ensaios.
Rio de Janeiro, Livraria São José, 1959.
Gianetti, Eduardo. A ilusão da
alma: biografia de uma ideia fixa.
São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
Holanda, Sérgio Buarque de. Cobra
de vidro. São Paulo, Martins, 1944.
Merquior, José Guilherme. De
Anchieta a Euclides: breve história
da literatura brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1977.
Meyer,
Augusto. Machado de Assis: 1935-1958. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1958.
Montaigne, Michel Eyquem de. Ensaios. Vol.1. Brasília, UnB, 1987.
Reale,
Miguel. A filosofia na obra de
Machado de Assis & Antologia filosófica de Machado de Assis. 1982.
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