Por Leandro Dias*
Historicamente a adesão inicial ao fascismo foi um fenômeno típico das
classes dominantes desesperadas e das classes médias empobrecidas e apenas
pontualmente conquistou os estratos mais baixos da sociedade, ideologicamente
dominados pelo trabalhismo social-democrata ou pelo comunismo. Nos mais
diversos cantos do mundo, dos nazistas na Alemanha e camisas-negras na Itália,
aos integralistas brasileiros e caudilhistas espanhóis seguidores de Franco, as
classes médias, empobrecidas pelas sucessivas crises do pós-guerra (1921 e
especialmente 1929), formaram o núcleo duro dos movimentos fascistas.
Esse alinhamento ao fascismo teve como fundo principal uma profunda
descrença na política, no jogo de alianças e negociatas da democracia liberal e
na sua incapacidade de solucionar as crises agudas que seguiam ao longo dos
anos 1910, 20 e 30. Enquanto as democracias liberais estavam estáveis e em
situação econômica favorável, com certo nível de emprego e renda, os movimentos
fascistas foram minguados e pontuais, muito fracos em termos de adesão se
comparados aos movimentos comunistas da mesma época. Porém, uma vez que a
democracia liberal e sua ortodoxia econômica mostraram uma gritante fraqueza e
falta de decisão diante do aprofundamento da crise econômica nos anos 1920 e
30, a população se radicalizou e clamou por mudanças e ação.
Lembremos que, quando os nazistas foram eleitos em 1932, a votação foi
bastante radical se comparada aos pleitos anteriores; 85% dos votos dos
eleitores alemães foram para partidos até então considerados mais radicais, a
saber, Socialistas (social-democracia), Comunistas e Nazistas
(nacional-socialistas), os dois primeiros à esquerda e o último à direita. Os
conservadores ortodoxos, anteriormente no poder, estavam perdidos em seu
continuísmo e indecisão, sem saber o que fazer da economia e às vezes até
piorando a situação, como foi o caso da Áustria até 1938, completamente
estagnada e sem soluções para sair da crise e do desemprego, refém da ortodoxia
de pensadores da escola austríaca, tornando-se terreno fértil para o
radicalismo nazista (que havia fracassado em 1934).
Além disso, o fascismo se apresentava como profundamente anticomunista,
o que, do ponto de vista das classes dominantes mais abastadas e classes médias
mais estáveis (proprietárias) menos afetadas pelas crises, era uma salvaguarda
ideológica, pois o “Perigo Vermelho”, isto é, o medo de que os comunistas
poderiam de fato tomar o poder, era um temor bastante real que a democracia
liberal parecia incapaz de “resolver” pelos seus tradicionais métodos,
especialmente após a crise de 1929. O fascismo desta maneira se apresentou como
último refúgio dos conservadores (sejam de classe média ou da elite) contra o
socialismo. Os intelectuais que influenciavam os setores sociais menos simpáticos
ao fascismo, o viam como um mal menor “temporário” para proteger a “boa
sociedade” das “barbáries socialistas”, como o guru liberal Ludwig von Mises
colocou, reconhecendo a fraqueza da democracia liberal face ao “problema
comunista”:
Não pode ser negado que o Fascismo e movimentos similares que miram no
estabelecimento de ditaduras estão cheios das melhores intenções e que suas
intervenções, no momento, salvaram a civilização européia. O mérito que o
Fascismo ganhou por isso viverá eternamente na história. Mas apesar de sua
política ter trazido salvação para o momento, não é do tipo que pode trazer
sucesso contínuo. Fascismo é uma mudança de emergência. Ver como algo mais que
isso, seria um erro fatal. (L. von Mises, Liberalism, 1985[1927],
Cap. 1, p. 47)
Além da descrença na política tradicional e do temor do perigo vermelho
num cenário de crise, houve ainda uma razão fundamental para as classes médias
adentrarem as fileiras do fascismo: o medo do empobrecimento e a perda do
status social.
Esse sentimento – chamado de declassemént ou declassê no
aportuguesado, algo como ”deixar de ser alguém de classe” – remetia ao medo de
se proletarizar e viver a vida miserável que os trabalhadores, maior parte da
população, viviam naquela época. Geralmente associava-se ao receio de que o
prestígio social ou o reconhecimento social por sua posição econômica
esmorecessem, mesmo para pequenos proprietários e profissionais liberais sem
títulos de nobreza (ver Norbet Elias,Os Alemães). Esse medo entra ainda
no contexto de uma evidente rejeição republicana, uma reação conservadora do etos nobiliárquico
que dominava as classes altas e parte das classes médias urbanas nos países
fascistas, à consolidação dos ideais liberais (mais igualitários) na estrutura
social de poder e de privilégios, isto é, na tradição social aristocrática. Não
foi por acaso que o fascismo foi uma força política exatamente onde os ideais
liberais jamais haviam se arraigado, como Itália, Espanha, Portugal, Alemanha e
Brasil.
Por fim, cumpre lembrar que os fascistas apelam à violência como forma
de ação política. Como disse Mussolini: “Apenas a guerra eleva à energia humana
a sua mais alta tensão e coloca o selo de nobreza nas pessoas que têm a coragem
de fazê-la” (Doutrina do Fascismo, 1932, p. 7). A perseguição sem
julgamento, campos de trabalho e autoritarismo não só vieram na prática muito
antes do genocídio e da guerra, mas também já estavam em suas palavras muito
antes de acontecerem. No discurso e na prática, a sociedade é (ou destina-se)
apenas para aqueles que o fascista identifica como adequados; há um evidente
elitismo e senso de pertencimento “correto” e “verdadeiro”, seja uma concepção
de nação ou de identidade de raça ou grupo. E essa identidade “verdadeira” será
estabelecida à força se preciso.
Mas por que estamos falando disso?
Parece crescente e cada vez mais evidente no Brasil que importantes
setores da classe média e classe alta simpatizam com ideais semelhantes
aos que formaram o caldeirão social do fascismo?
Vimos em texto recente que a sociedade brasileira, em particular a
classe média tradicional e a elite, carrega fortes sentimentos
anti-republicanos (ou anticonstitucionais), herdados de nossa sucessão de
classes dominantes sem conflito e mudança estrutural, sem qualquer alteração
substancial de sua posição material e política, perpetuando suas crenças e
cultura de Antigo Regime. Privilégios conquistados por herança ou “na amizade”,
contatos pessoais, indicações, nepotismos, fiscalização seletiva e
personalista; são todas marcas tradicionais de nossa cultura política. A lei
aqui “não pega”, do mesmo jeito que para nazistas a palavra pessoal era mais
importante que a lei. Há um paralelo assustador entre a teoria do fuhrerprinzip e
a prática da pequena autoridade coronelista, à revelia da lei escrita, presente
no Brasil.
Talvez por isso, também tenhamos, como a base social do fascismo de
antigamente, uma profunda descrença na política e nos políticos. Enojada pelo
jogo sujo da política tradicional, das trocas de favores entre empresas e políticos,
como o caso do Trensalão ou entre políticos e políticos, como os casos dos
mensalões nos mais variados partidos, a classe média tradicional brasileira se
ilude com aventuras políticas onde a política parece ausente,
como no governo militar ou na tecnocracia de governos de técnicos
administrativos neoliberais. Ambos altamente políticos, com sua agenda
definida, seus interesses de classe e poder, igualmente corruptos e escusos,
mas suficientemente mascarados em discursos apolíticos e propaganda, seja pelo
tecnicismo neoliberal ou pelo nacionalismo vazio dos protofascistas de 1964,
levando incautos e ingênuos a segui-los como “nova política” messiânica que vai
limpar tudo que havia de ruim anteriormente
Por sua vez, como terceiro ponto em comum, partes das classes médias
tradicionais e a elite têm um ódio encarnado de “comunistas”, e basta ler os
“bastiões intelectuais” da elite brasileira, como Reinaldo Azevedo, Rodrigo
Constantino ou Olavo de Carvalho ou mesmo porta-vozes do soft power do
neoconservadorismo brasileiro, como Lobão e Rachel Sherazade. É curioso que o
mais radical deles, Olavo de Carvalho, enxergue “marxismo cultural” em gente
como George Soros (mega-especulador capitalista), associando-o ao movimento
comunista internacional para subjugar o mundo cristão ocidental. Esse argumento
em essência é basicamente o mesmo de Adolf Hitler: o marxismo e o capital
financeiro internacional estão combinados para destruir a nação alemã (Mein
Kampf, 2001[1925], p. 160, 176 e 181).
A violência fascista, por sua vez, é apresentada na escalada de
repressão punitivista e repressora do Estado, apesar de – ainda – ser menos
brutal que o culto à guerra dos fascistas dos anos 1920 e 30. Antes restritos
apenas aos programas sensacionalistas de tv sobre violência urbana e aos
apologistas da ditadura como Jair Bolsonaro, o discurso violento proto-fascista
“bandido bom é bandido morto”, que clama por uma escalada de repressão
punitiva, sai do campo tradicionalmente duro da extrema direita e se alinha ao pensamento
de economistas liberais neoconservadores que consideram que “o criminoso faz um
cálculo antes de cometer seu crime, então é o caso de elevar constantemente o
preço do crime (penas intermináveis, assédio, execuções), na esperança de levar
aqueles que sentirem tentados à conclusão de que o crime já não compensa”
(Serge Hamili, 2013). Assim, a apologia repressora se alinha à lógica do
punitivismo mercantil de apologistas do mercado, mimetizando um Chile de
Pinochet onde um duríssimo estado repressor, anticomunista, está alinhado com o
discurso neoliberal mais radical.
E, ainda, somam-se a isso todo o classismo e o racismo elitista
evidentes de nossa “alta” sociedade. Da “gente diferenciada” que não pode
frequentar Higienópolis, passando pelo humor rasteiro de um Gentili, ou o
explícito e constrangedor classismo de Rachel Sherazade,
que se assemelha à “pioneira revolta” de Luiz Carlos Prates ao constatar que “qualquer
miserável pode ter um carro”, culminando com o mais vergonhoso
atraso de Rodrigo Constantino em sua recente coluna, mostrando que
nossos liberais estão mais inspirados por Arthur de Gobineau e Herbert Spencer do que Adam Smith ou Thomas Jefferson. A
elite e a classe média tradicional (que segue o etos da primeira), não têm mais
vergonha de expor sua crença no direito natural de governar e dominar os
pobres, no “mandato histórico” da aristocracia sobre a patuléia brasileira. O
darwinismo social vai deixando o submundo envergonhado da extrema direita para
entrar nos nossos televisores diariamente.
Assim, com uma profunda descrença na política tradicional e no
parlamento, somada a um anti-republicanismo dos privilégios de classe e
herança, temperados por um anticomunismo irracional sob auspícios de um
darwinismo social histórico e latente, aliado a uma escalada punitivista
alinhada à “ciência” econômica neoliberal, temos uma receita perigosa para um
neofascismo à brasileira. Porém, antes que corramos para as montanhas, falta um
elemento fundamental para que esse caldeirão social desemboque em prática
neofascista real: crise econômica profunda.
Apesar do terrorismo midiático, nossa sociedade não está em crise
econômica grave que justifique esta radicalização filo-fascista recente. Pela
primeira vez em décadas, o país vive certo otimismo econômico e, enquanto no
final dos anos 1990, um em cada cinco brasileiros estava abaixo da linha da
pobreza, hoje este número é um em cada 11. A Petrobrás não só não vai quebrar
como captou bilhões recentemente. A classe média nunca viajou, gastou no
exterior e comprou tanto quanto hoje, nem mesmo no auge insano do Real valendo
0,52 centavos de dólar. O otimismo brasileiro está muito acima da média mundial,
mesmo que abaixo das taxas dos anos anteriores.
No entanto, apesar de tudo isso, parte das antigas classes médias e
elites continuam se radicalizando à extrema direita, dando seguidos exemplos de
racismo, intolerância, elitismo, suporte ao punitivismo sanguinário das
polícias militares, aplaudindo a repressão a manifestações e indiferentes a
pobres sendo presos por serem pobres e negros em shopping centers. Isso tudo com aquela saudade da ditadura
permeando todo o discurso. Se não há o evidente declassmént, o
empobrecimento econômico, ou mesmo um medo real do mesmo, como explicar esta
radicalização protofascista?
Não é possível que apenas o tradicional anti-republicanismo, o
conservadorismo anti-esquerdista e o senso de superioridade de nossas elites e
classes médias tradicionais sejam suficientes para esta radicalização, pois
estes fatores já existiam antes e não desencadeavam tamanha excrescência
fascistóide pública.
Não.
O Brasil vive um fenômeno estranho. As classes médias tradicionais e
elite estão gradualmente se radicalizando à extrema direita muito mais por uma
sensação de declassmént do que por uma proletarização de fato,
causada por alguma crise econômica. Esta sensação vem, não do empobrecimento
das classes médias tradicionais (longe disso), mas por uma ascensão econômica
das classes historicamente subalternas. Uma ascensão visível. Seja quando
pobres compram carros com prestações a perder de vista; frequentam
universidades antes dominadas majoritariamente por ricos brancos; ou jovens
“diferenciados” e barulhentos frequentam shoppings de classe média, mesmo que
seja para olhar a “ostentação”; ou ainda famílias antes excluídas lotando
aeroportos para visitar parentes em toda parte.
Nossa elite e antiga classe média cultivaram por tanto tempo a sua
pretensa superioridade cultural e evidente superioridade econômica, seu
sangue-azul e posição social histórica; a sua situação material foi por tanto tempo
tão sem paralelo num dos mais desiguais países do mundo, que a mera percepção de
que um anteriormente pobre pode ter hábitos de consumo e culturais similares
aos dela, gera um asco e uma rejeição tremenda. Estes setores tradicionais, tão
conservadores que são, tão elitistas e mal acostumados que são, rejeitam em tal
grau as classes historicamente humilhadas e excluídas, “a gente diferenciada”
que deveria ter como destino apenas à resignação subalterna (“o seu lugar”),
que a ascensão destes “inferiores” faz aflorar todo o ranço elitista que
permanecia oculto ou disfarçado em anti-esquerdismo ou em valores familiares
conservadores. Não há mais máscara, a elite e a classe média tradicional estão
mais e mais fazendo coro com os históricos setores neofascistas, racistas e
pró-ditadura. Elas temem não o seu empobrecimento de fato, mas a perda de sua
posição social histórica e, talvez no fundo, a antiga classe média teme
constatar que sempre foi pobre em relação à elite que bajula, e enquanto havia
miseráveis a perder de vista, sua impotência política e vazio social, eram ao
menos suportáveis.
REFERÊNCIAS GERAIS:
ELIAS, Norbert. Os Alemães. Rio de Janeiro: Zahar, 1996
HAMILI, Serge. O laissez faire é libertário?. IN: Le Monde Diplomatique
Brasil, número 71, 2013.
HITLER, Adolf. Mein Kampf. São Paulo: Centauro, 1925
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Cia das Letras,1996
MISES, Ludwig von. Liberalism. Irvington.The
Foundation for Economic Education, 1985
MUSSOLINI, Benito. Doctrine of Fascism. Online
World Future Fund. 1932
POULANTZAS, Nicos. Fascismo e Ditadura. Porto:
Portucalense, 1972
SCHMIT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
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* Historiador
Fonte: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/01/fascismo-brasileira.html
Ótimo texto, professor.
ResponderExcluirMuito esclarecedor, me ajudou bastante.
Obrigado, Ione.
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