O tema não é desconhecido do enfoque da ciência social, mas, nos últimos tempos, as abordagens a respeito das configurações amorosas e da sexualidade têm aumentado consideravelmente. Nessa perspectiva, tem contribuído o cientista social britânico Anthony Giddens. O texto aí abaixo, da Profa. Maria de Fátima Araújo (UNESP), originalmente intitulado 'Amor, Sexualidade e Casamento: Velhas e Novas Configurações', é paradigmático ao tratar das transformações da intimidade. Neste tema, como em outros, a superação do mero moralismo (ou falso moralismo) é um fato alvissareiro.
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Amantes - Detalhe da decoração do teto (em madeira) do Claustro da Abadia de Santo Domingo de Silos (Século XV - Burgos) |
Por Maria de Fátima Araújo
A união que associa amor, sexualidade
e casamento é uma invenção da era burguesa. O amor-sexual, amor-paixão, como
fundamento do casamento, surgiu na modernidade e, com ela, trouxe um elemento
revolucionário, pois enunciava uma nova ordem das coisas. Nesse cenário, o amor
vai percorrer uma longa trajetória até chegar à condição de força irresistível,
sempre pronta a desembocar no casamento, como capturaram as telas de Hollywood.
Passando pelo impulso dramático shakespereano, no século XVI, essa trajetória
tem seu ponto de chegada no século XVIII, no bojo da revolução burguesa e nas
idéias de liberdade individual. Em torno do novo ideal de conjugalidade
instaurado, criaram-se muitas expectativas e idealizações, entre elas a idéia
de casamento como lugar de felicidade onde o amor e a sexualidade são fundamentais.
Desde então, a instituição casamento, moldada pelas determinações econômicas,
sociais, culturais, de classe e gênero tem assumido inúmeras formas.
Hoje, os mesmos movimentos de mudança
levam os casais a reverem suas idealizações sobre o casamento, o amor e a
sexualidade. Novas formas de amar e se relacionar estão sendo construídas para
responder às exigências de uma sociedade onde os valores e as regras econômicas
e sociais estão sempre em mutação.
O Amor Romântico e o Casamento Moderno
O amor e o casamento, tal como o
conhecemos hoje, surgiu com a ordem burguesa, mas só ganhou feição a partir do
século XVIII, quando a sexualidade passou a ocupar um lugar importante dentro
do casamento. O amor, no sentido moderno de consensualidade, escolha e paixão
amorosa, não existia no casamento, sendo, em geral, vivenciado nas relações de
adultério, e a sexualidade não era vivida como lugar de prazer, sua função
específica, era a reprodução. Da antigüidade à idade média, eram os pais que
cuidavam do casamento dos filhos. O casamento não consagrava um relacionamento
amoroso. Era um negócio de família, um contrato que dois indivíduos faziam não
para o prazer, mas a conselho de suas famílias e para o bem delas. O principal
papel do casamento era servir de base a alianças cuja importância se sobrepunha
ao amor e à sexualidade. Escolha e paixão não pesavam nessas decisões, e a
sexualidade para a reprodução era parte da aliança firmada.
Trabalhos realizados por Lèvi-Straus
(1976) mostram que, nas sociedades arcaicas, a aliança também é um fator
determinante no casamento. A união se justifica muito mais pela necessidade de
reciprocidade imposta pela divisão sexual do trabalho do que pela satisfação
sexual. A aliança é uma forma de intervenção do grupo sobre bens considerados
escassos e essenciais para a sobrevivência, e baseia-se em um sistema de
trocas, cujas regras marcam a origem do casamento. A proibição do incesto é
sobretudo uma regra de reciprocidade que obriga a formação de alianças não só
através da troca de bens, como também de mulheres. Para firmar esses laços, os
grupos vão recorrer à regra da exogamia, que interdita o casamento com um
membro da família. O contrato é estabelecido entre homens e a mulher é o objeto
da troca feita por eles.
Nas sociedades ocidentais, a Igreja
teve e tem - hoje bem menos -, uma forte influência no casamento, mas nem
sempre foi assim. Vejamos um pouco dessa trajetória. Até o século V, a união
dos casais e a celebração das núpcias não tinha interferência do clero. Era um
ato privado ocorrido entre os nobres, tendo como função a transmissão da
herança, de títulos e a formação de alianças políticas. Escolha e paixão não
pesavam nessas decisões. Vainfas (1986), descreve o ritual revelando o papel de
cada uma das partes: começava com a promessa de casamento no ato da desposatio
ou pactum conjugale - precursor do noivado atual. A cerimônia, na casa da
futura esposa, reunia parentes dos noivos e testemunhas. Trocavam-se palavras e
bens. O pai da moça transferia a tutela de sua filha para o marido e este
retribuía a doação com a entrega de uma donatio puellae (garantia do contrato).
Sendo a mulher parte do patrimônio familiar, sua entrega a um homem selava a
união de duas famílias reais ou nobres. O rito nupcial propriamente dito acontecia
numa festa na casa do noivo e o momento mais importante ocorria no quarto
nupcial. Ao redor do leito se reuniam numerosas testemunhas, e o pai do rapaz
celebrava a união. Todos testemunhavam a intenção da união carnal e da
procriação. A fecundidade era indispensável ao casamento, assim como a
fidelidade absoluta da mulher, de modo que o adultério feminino implicava o
abandono ou mesmo a morte da esposa transgressora. A esterilidade, por sua vez,
levava ao repúdio, muito comum entre os nobres medievais .
Essas regras valiam para aqueles a
quem cabia perpetuar a linhagem, responder pela transmissão da herança e
exercer o poder, não se estendendo a todos os filhos. Os descendentes mais
novos podiam seguir o caminho do clero ou estabelecer outros tipos de união que
lhes permitiam satisfazer a voluptas. Segundo Duby, citado por Vainfas, essas
uniões conjugais chamadas de Friedelehe eram usadas para disciplinar
a atividade sexual dos rapazes sem comprometer definitivamente o destino da
honra.
Eram uniões quase sempre temporárias, mas não menos formais. O pretendente
pagava o preço
da virgindade
ao pai da moça e tudo se fazia com solenidade. A mulher era, neste caso, muito
mais emprestada que dada. Dessas uniões nasciam os bastardos,
herdeiros menos assegurados, mas que, por muito tempo, não foram discriminados
e, às vezes, até contemplados com títulos de terras.
A expansão do cristianismo, a partir
do século V, e a queda do Império Romano vão abrir caminho para que aos poucos
a Igreja passe a estender seu poder sobre o casamento, ao mesmo tempo que
tentava submeter reis e cavaleiros ao seu domínio. Vainfas registra que na
Gália, em torno do século VI, a benção do casal à porta do quarto era feita por
um padre. Mais tarde, essa prática vai se difundir e se aperfeiçoar com a
presença do clérigo diante do leito, a fim de incensá-lo e aspergi-lo com água
benta. Era uma intervenção modesta - num momento em que ainda se oscilava entre
a moral dos padres e a dos cavaleiros - perto do que viria a acontecer nos tempos
seguintes. Séculos mais tarde, a Igreja vai instituir o casamento como o único
espaço legítimo para uso da sexualidade, com o objetivo exclusivo da
procriação. Até aí foi um longo caminho desde o início do cristianismo, quando
parcelas da Igreja se dividiam entre aceitar e condenar o casamento. Marcados
pelo ascetismo, os ideais cristãos pregavam a virgindade, a castidade e a
continência. A renúncia aos prazeres da carne era necessária para ganhar o
reino dos céus. Entre as fontes básicas dessa pregação, diz Vainfas,
encontra-se a exortação do apóstolo Paulo aos coríntios, recomendando aos
homens que permanecessem celibatários, às viúvas que se mantivessem castas e às
solteiras que ficassem virgens.
Tais ideais de condenação absoluta do
desejo e do prazer não se sustentaram por muito tempo. A Igreja acabou
aceitando o casamento como um freio para os libertinos. Falando sobre o
casamento na Epístola aos coríntios (I Cor., VII, 1), Paulo diz: que
cada homem tenha uma mulher, e cada mulher, um homem. Melhor seria que ficassem
castos, mas se não podem se conter, casem-se. É melhor casar do que arder.
O casamento era recomendado como uma concessão
e não como um mandamento, somente para evitar a impudicia.
A sacralização do casamento pela
Igreja só aconteceu por volta do século XII e foi só no século XIII que a
normatização da moral cristã se estabeleceu, instituindo o sacramento do
matrimônio, tornando-o monogâmico e indissolúvel. A partir de então, o ritual
eclesiástico transferiu o ato matrimonial da casa, seu local tradicional, para
a Igreja, e a cerimônia passou a ser conduzida por um padre.
O casamento foi então instituído pela
Igreja como lugar legítimo para uso dos prazeres desde que voltado para o seu
fim natural: a procriação. Os teólogos instituíram regras básicas fundamentadas
em três eixos principais: 1) a imposição da relação carnal (dívida conjugal)
como algo obrigatório no casamento, sem a qual ele não teria sentido; 2)
condenação de todo e qualquer ardor na relação carnal entre os cônjuges; e 3) a
minuciosa classificação dos atos permitidos ou proibidos, tendo em vista a
função procriadora.
Segundo Flandrin (1987), para a
maioria dos historiadores, a vida sexual, tanto dos casados como dos solteiros,
foi regida pelos preceitos da moral cristã, pelo menos até o século XVIII ou
mesmo até a Revolução Francesa. Restringindo a sexualidade ao casamento e à
procriação, a moral cristã proibia qualquer método contraceptivo e considerava
pecado toda atividade sexual fora do matrimônio.
A dessacralização do poder da Igreja
se inicia com a revolução burguesa, que vai arrancar fora os véus da ilusão
religiosa. Como diz Marx no Manifesto do Partido Comunista, perde-se o halo, símbolo primordial
da experiência religiosa. Tudo que era sólido e estável evapora-se,
tudo que era sagrado é profanado, e os homens são, finalmente, obrigados a
encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas(Marx
& Engels, 1990, p.79). A vida é inteiramente dessantificada. Entra em cena a
ética protestante e o espírito do capitalismo, como bem descreve Weber (1967). O
destino do homem passa a ser regido pela nova organização social.
Uma mudança radical dos valores até
então vigentes começa a se instaurar com a nova ordem, sublevando e renovando
os modos de vida pessoal, social e familiar. O sistema daí resultante assume
como característica principal uma permanente capacidade de mudança. O mundo -
público e privado - entra num processo de constante transformação.
As grandes mudanças no casamento,
segundo Ariès (1987), se iniciam com a modernidade. A valorização do amor
individual, presente na ideologia burguesa, estabelece o casamento por amor,
amor-paixão, com predomínio do erotismo na relação conjugal. Esse novo ideal de
casamento impõe aos esposos que se amem ou que pareçam se amar e que tenham
expectativas a respeito do amor e da felicidade no matrimônio. Essa imposição
teve muitas conseqüências e contradições. Uma delas é que acabou criando uma
armadilha para os casais na medida que se acentuaram as idealizações
e conseqüentemente os conflitos resultantes da desilusão pelo não atendimento
das expectativas.
Até o século XVIII, e não só na
cultura ocidental, havia uma diferença básica entre o amor no casamento e o
amor fora do casamento. Vários textos da cultura judaica e grega mostram que o
amor não era necessário ao casamento, cuja função principal era a procriação.
Elqana (I Sam 1, 4-19) possuía duas
mulheres: uma, Ana, que ele amava (.....), mas que era estéril (......); a
outra, que ele amava menos, era fecunda e tinha filhos. Ela zombava cruelmente
de sua rival infecunda. Apesar da sua preferência, Elqana tinha o costume,
quando distribuía as carnes assadas do sacrifício, de dar várias porções à mãe
de seus filhos e apenas uma à sua bem-amada. Ana ficava magoada e chorava. E
então Eqana lhe disse com ternura: Ana, por que choras e não te
alimentas? Por que estás infeliz? Será que eu não valho para ti mais de dez
filhos? ( texto judaico citado por Ariès, 1987, p.151).
Antes da expansão do cristianismo, a
moral estóica defendia a procriação como finalidade e justificação do
casamento. Para os estóicos, um homem sábio devia amar sua mulher com
discernimento e não com paixão. Os homens deviam se apresentar às esposas como
maridos e não como amantes. A regra básica do código moral estóico defendia o
amor-reserva no casamento e o amor-paixão fora do casamento. Os cristãos se
apropriaram da moral estóica e foram mais além na condenação dos prazeres.
Expulso do casamento, o amor
proliferou nas relações ilícitas, estilizado pelos cavaleiros, poetas e
trovadores, vivido intensamente por homens e mulheres em toda parte. O amor
cortês cantado pelos trovadores era diferente do amor cavalheiresco. O amor
cavalheiresco era quase sempre ligado a um adultério carnal ou a uma proeza que
resultava no casamento. O amor cortês era um amor adúltero espiritual que nunca
implicava no casamento dos amantes. O amante dessas histórias era sempre
socialmente inferior à dama cortejada e se dispunha a qualquer sacrifício para
provar o seu amor. Era um herói disposto ao sacrifício, mas não buscava o
encontro carnal com sua amada. Fazia simplesmente uma declaração, uma confissão
de amor, fosse pelo gesto, pela amável conversa ou pelo simples olhar. A
retribuição esperada era um ato de carinho, um reconhecimento do amor, nunca a
entrega do corpo. Enquanto o amor cortês exaltava a mulher e a colocava num
plano superior ao homem, o amor cavalheiresco a colocava numa atitude passiva,
inferior ao homem e dependente de sua iniciativa. A Igreja repudiava todas
essas formas de amor por ameaçarem a pureza do amor conjugal(cf.
Vainfas, 1986, pp.55-56)
Segundo Macfarlane (1990), há muita
controvérsia sobre a origem do amor romântico. Uma das localizações mais
antigas para o seu surgimento é a Europa meridional nos séculos XI e XII.
Segundo March Bloch, citado por Macfarlane, p. 336, o amor romântico começou
com a tradição do amor cortês
do sul da França. Inicialmente, esse amor cortês
não tinha nada
a ver com o casamento, muito pelo contrário: opunha-se diretamente ao estado
legal do casamento, uma vez que a amada era quase sempre uma mulher casada, e
seu amante jamais o marido. Mas esta paixão
absorvente, constantemente frustrada, presa fácil do ciúme e alimentada por
suas próprias dificuldades foi, no entanto, uma
concepção notavelmente original, uma idéia de relacionamento amoroso em que
reconhecemos muitos elementos que hoje nos são familiares.
Trevelyan, também citado por
Macfarlane, p. 337, levanta uma questão importante: se o amor cortês está na
origem da moderna concepção de amor, como teria passado de sua posição
basicamente anticasamento para a de fundador do casamento? Ele acredita que
essa revolução aconteceu na Inglaterra, na gradual evolução da idéia e da prática
de casamento.
Segundo Trevelyan, na Idade Média eram comuns os casamentos por amor entre os
camponeses, uma vez que entre os pobres a escolha do casamento era
provavelmente pouco influenciada por motivos econômicos. Nas camadas altas da
sociedade, a situação começa a mudar a partir do século XV. Ao iniciar-se a era
de Shakespeare a literatura e o drama tratam o amor
mútuo como a base apropriada, ainda que não a única, do casamento.
O casamento por amor vai assim,
lentamente, ascendendo na escala social até a era moderna, quando se estabelece
como regra básica. A partir do século XVIII, quando o amor romântico se torna o
ideal de casamento, o erotismo expulsa a reserva tradicional, mas introduz um
outro aspecto importante: coloca à prova a duração do casamento. Como o
amor-paixão em geral não dura, o amor conjugal ligado a ele também não dura. O
divórcio então, coloca-se como uma possibilidade, não como forma de reparar o
erro, mas como a sanção normal de um sentimento que não pode nem deve durar, e
que deve dar lugar ao seguinte. Essa é uma das principais características do
casamento moderno, diz Ariès (1987). Ao contrário do amor conjugal que
aumentava com o tempo, o amor-paixão tende a acabar com o tempo. Esse é o
grande desafio que os casais modernos enfrentam nos dias de hoje e que os leva
a redefinir expectativas e idealizações sobre o casamento.
O Casamento Malthusiano
Mcfarlane (1990) denominou de
casamento malthusiano o modelo de união conjugal que tem como premissas básicas
o afeto, a amizade e o companheirismo entre os cônjuges e a procriação não é o
objetivo principal do casamento.
Malthus, clérigo inglês que viveu na
Inglaterra no século XVIII, expressou pela primeira vez sua preocupação com o
casamento quando escreveu o Ensaio sobre população
em que aponta a desigualdade da relação entre crescimento populacional e
crescimento econômico. Com base nessa preocupação, propõe um sistema de
casamento que privilegia a ética acumulativa, o desejo de ascensão social e o
individualismo possessivo, valores fundamentais da ideologia burguesa. Esse
sistema de casamento surgiu na Inglaterra na fase de ascensão do capitalismo
(séculos XVIII e XIX) para dar impulso ao desenvolvimento econômico. Para
prevenir o desequilíbrio entre o crescimento econômico e demográfico, Malthus
propôs uma avaliação dos custos e benefícios do casamento, controle da
natalidade e retardamento do casamento. Na visão malthusiana, a procriação
deixa de ser a finalidade principal do casamento, e os propósitos econômicos e
psicológicos do casal passam a ser os objetivos centrais. A ideologia do amor
romântico é usada para justificar a ausência dos filhos. Como o casal se casa
por amor, por escolha e decisão dos próprios cônjuges, o mais importante é a
relação conjugal. Embora considerando o casamento por amor como a relação mais
importante na vida de uma pessoa, Malthus o coloca como uma escolha racional
sobre a qual a condição econômica pesa na decisão e na idade de casar. Dessa
forma, a irracionalidade do amor romântico e da paixão sexual são domesticadas
dentro do casamento, não mais ameaçando a racionalidade do capitalismo.
Para Malthus, na sociedade inglesa,
uma sociedade civilizada e bem desenvolvida economicamente, pressão econômica e
social se combinam - uma mistura de temor à pobreza, à perda do status, à perda
do lazer e do prazer - e mantém os ricos afastados do casamento. O matrimônio
era visto como algo que envolvia consideráveis custos econômicos e sociais que
deveriam ser pesados contra suas vantagens. Algumas pessoas podiam até
sacrificar suas carreiras e posições na vida para casar, mas isso implicava
descer alguns degraus na escala social onde se encontravam. Casamento implica
mais despesas e responsabilidades. É evidente o conflito entre o desejo de
casar e a percepção racional dos riscos. Malthus acreditava que os indivíduos
deveriam estar física e economicamente maduros para o casamento. Condenava o
casamento antes da independência econômica.
As mudanças no casamento propostas por
Malthus eram extremamente revolucionárias para a época. Ele propunha uma
relação mais igualitária entre marido e mulher, quando na maioria das
sociedades prevalecia a dominação masculina. O casamento centrado no vínculo
conjugal, e não nos filhos ou na família, também era uma mudança radical. Ao
valorizar o afeto, a amizade e o companheirismo, o casamento se tornava um
refúgio dentro de um mundo competitivo e individualista.
Com o desenvolvimento do capitalismo,
o modelo de casamento malthusiano se espalhou pelo mundo. Sofreu, é claro, as
adaptações necessárias às diferentes culturas e níveis de desenvolvimento
econômico. Na atualidade, muitas das suas características são encontradas nos
casamentos ditos modernos, como a relação igualitária entre os
parceiros, a valorização do companheirismo e da amizade na relação conjugal e a
não-obrigatoriedade de procriação.
A Sexualidade na Era Moderna
A experiência sexual, como toda
experiência humana, é produto de um complexo conjunto de processos sociais,
culturais e históricos. A concepção moderna de sexualidade, segundo Foucault
(1988), designa uma série de fenômenos que englobam tanto os mecanismos
biológicos da reprodução como as variantes individuais e sociais do
comportamento, a instauração de regras e normas apoiadas em instituições
religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas, e também as mudanças no modo
pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, seus
deveres, prazeres, sentimentos, sensações e sonhos. Sexualidade é, pois, uma
construção social que engloba o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos
comportamentos e nas relações sociais. Ao longo da história, a atividade sexual
sempre foi objeto de preocupação moral e, como tal, submetida a dispositivos de
controle das práticas e comportamentos sexuais. Como esses dispositivos são
construídos com base nos valores e ideologias predominantes na sociedade, eles
assumem formas diferentes à medida que a sociedade muda.
Para Foucault, a sociedade que se
desenvolveu a partir do século XVII - sociedade burguesa, capitalista ou
industrial - deu início a uma época de repressão à sexualidade não como
proibição em si, mas através da incitação dos discursos. Essa sociedade não reagiu
ao sexo como uma recusa em reconhecê-lo, ao contrário, instaurou todo um
aparelho para produzir verdadeiros discursos sobre ele. Nessas sociedades, não
somente se falou muito sobre sexo e se forçou todo mundo a falar dele, como
também instituiu-se uma verdade regulada sobre a sexualidade.
Nos séculos XIX e XX, instituiu-se um
discurso disciplinador para suprimir as formas de sexualidade não relacionadas
com a reprodução e com o casamento como lugar legítimo da sexualidade. Através
desses discursos, multiplicaram-se as condenações judiciárias das perversões
menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental: da infância à
velhice foi definida uma norma de desenvolvimento sexual e cuidadosamente
caracterizados todos os desvios possíveis; organizaram-se os controles
pedagógicos e os tratamentos médicos. Até o século XVIII, o sexo lícito era
restrito às relações matrimoniais e carregado de prescrições. Romper as regras
do casamento ou procurar prazeres estranhos merecia a condenação moral e jurídica.
As práticas sexuais fora do casamento - sexualidade das crianças, homossexuais,
perversões, devaneios, obsessões, etc., eram consideradas contra
a natureza.
Os libertinos carregavam o estigma da loucura moral,
neurose genital, desequilíbrio psicológico, etc.
No século XIX, os códigos de delitos
sexuais se alteraram, e a justiça deu lugar à medicina. Aumentaram as
instâncias de controle e vigilância instauradas pela pedagogia ou pela
terapêutica. A medicina passou a interferir nos prazeres do casal, inventou
toda uma patologia orgânica, funcional ou mental, originada nas práticas
sexuais. O poder exercido pelos médicos e pedagogos voltou-se para o controle
da sexualidade infantil, interdição do incesto e caça às sexualidades
periféricas (sodomia, homossexualismo e outras perversões).
O exame médico, a investigação
psiquiátrica, o relatório pedagógico e as condutas familiares têm como objetivo
dizer não a todas as sexualidades errantes e improdutivas mas, na realidade,
funcionam como mecanismos de dupla incitação: prazer e poder. Prazer em exercer
um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela
e, por outro lado, prazer que se abrasa por ter que escapar a esse poder,
fingir-lhe, enganá-lo ou travesti-lo. Poder que se deixa invadir pelo prazer
que persegue e, diante dele, poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de
escandalizar ou de resistir. Captação e sedução; confronto e reforço
recíprocos: pais e filhos, adulto e adolescente, educador e alunos, médico e
doente e o psiquiatra com sua histérica e seus perversos, não cessaram de
desempenhar esse papel desde o século XIX. Tais apelos, esquivas, incitações
circulares não organizaram, em torno dos sexos e dos corpos, fronteiras a não
serem ultrapassadas, e, sim, as perpétuas espirais de poder e prazer (Foucault,
1988, p. 45).
Nesse domínio, a sexualidade
instituiu-se como um dispositivo de saber e poder. Tornou-se um campo de poder
nas relações entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, entre pais e
filhos, entre educadores e alunos, entre padres e leigos, entre a administração
e a população. Nas relações de poder, a sexualidade encontrou um ponto de
apoio, de articulação às mais variadas estratégias de controle.
Foucault busca as razões pelas quais a
sexualidade, longe de ser reprimida na sociedade contemporânea está, ao
contrário, sendo suscitada. O dispositivo da sexualidade deve ser pensado a
partir das técnicas de poder que lhe são contemporâneas. Para ele, três eixos
constituem a sexualidade nas sociedades modernas: a formação dos saberes que a
ela se referem; os sistemas de poder que regulam suas práticas e as formas
pelas quais os indivíduos podem e devem se reconhecer como sujeitos dessa
sexualidade.
Ao centrar a história da sexualidade
nos mecanismos da repressão, Foucault considera duas rupturas:
Uma ocorreu no decorrer do século
XVIII: nascimento das grandes proibições, valorização exclusiva da sexualidade
adulta e matrimonial, imperativos de decência, esquiva obrigatória do corpo,
contenção e pudores imperativos da linguagem. A outra ocorreu no século XX,
momento em que os mecanismos da repressão teriam começado a se afrouxar;
passar-se-ia das interdições sexuais imperiosas a uma relativa tolerância a
propósito das relações pré-nupciais ou extra-matrimoniais; a desqualificação
dos perversos teria sido atenuada e sua condenação pela lei, eliminada em
parte; ter-se-iam eliminado, em grande parte, os tabus que pesavam sobre a
sexualidade das crianças (Foucault, 1988, p. 109).
Os estudos de Foucault nos mostram,
portanto, que a sexualidade, longe de ser um fenômeno natural, é, ao contrário,
profundamente suscetível às influências sociais e culturais. É produto de
forças sociais e históricas. É a sociedade e a cultura que designam se
determinadas práticas sexuais são apropriadas ou não, morais ou imorais,
saudáveis ou doentias. A história da nossa concepção de corpo e sexualidade é a
história dos sistemas de valores fundamentais em cada sociedade.
A história da sexualidade vista como
uma construção social aponta mudanças importantes tanto no comportamento sexual
como no significado que lhe atribuímos. Por isso não se pode explicar suas
formas e variações sem examinar o contexto em que se formaram. Isso nos permite
entender, por exemplo, o significado da bissexualidade para os gregos e o
pluralismo sexual do século XX. Para os gregos que idealizavam a beleza do
corpo, não existia dois impulsos diferentes. O que permitia desejar um homem ou
uma mulher era o simples apetite sexual que a natureza lhes havia despertado
por seres humanos belos de qualquer sexo. No século XX, o
pluralismo sexual, ao se desviar do paradigma cartesiano (mentalidade
mecanicista, categorização normal/anormal), reinventa o corpo como uma forma de
organismo social que abre caminho para a aceitação da diversidade como norma
viável da cultura. Se a natureza humana é histórica, cada
indivíduo tem uma história diferente e, portanto, necessidades diferentes
(Highwater, 1992, p.155).
A Intimidade Transformada: Novas
Formas de Relacionamento Amoroso
As mudanças que vêm acontecendo no
amor, no casamento e na sexualidade ao longo da modernidade resultaram em
transformações radicais na intimidade e na vida pessoal dos indivíduos. Nesse
processo, a chamada revolução sexual e a emancipação feminina tiveram um papel
fundamental. Esse tema é objeto de análise do sociólogo Anthony Giddens em A
transformação da Intimidade(1993). Segundo ele, as novas formas
de relacionamento que resultaram dessas mudanças têm como base a igualdade e os
princípios democráticos. Para apreender essa realidade atual, Giddens lança mão
de três categorias básicas : o amor confluente, a sexualidade plástica e o
relacionamento puro.
O amor confluente
é mais real que o amor romântico, porque não se pauta pelas identificações
projetivas e fantasias de completude. Presume igualdade na relação nas trocas
afetivas e no envolvimento emocional. O amor confluente introduz a ars erotica
no cerne do relacionamento conjugal e transforma a realização do prazer sexual
recíproco em um elemento-chave na manutenção ou dissolução do relacionamento.
Desenvolve-se como um ideal em uma sociedade onde quase todos têm a
oportunidade de se tornarem sexualmente realizados. Ao contrário do amor
romântico, o amor confluente não é necessariamente monogâmico nem heterossexual.
A sexualidade plástica
é uma sexualidade descentralizada, liberta das necessidades de reprodução. Tem
origem na tendência à redução da família, iniciada no final do século XVIII, e
desenvolve-se mais tarde com a difusão da contracepção moderna e das novas
tecnologias reprodutivas. A emergência da sexualidade plástica
é fundamental para a emancipação implícita no relacionamento puro
assim como para a reivindicação da mulher ao prazer sexual.
O relacionamento puro
é um relacionamento centrado no compromisso, na confiança e na intimidade.
Implica em desenvolver uma história compartilhada em que cada um deve
proporcionar ao outro, por palavras e atos, algum tipo de garantia de que o
relacionamento deve ser mantido por um período indefinido. É um relacionamento
diferente da idéia de casamento como uma condição natural,
cuja durabilidade pode ser assumida como certa, exceto em algumas
circunstâncias extremas. Uma característica do relacionamento puro
é que ele pode ser terminado, mais ou menos à vontade, em qualquer época e por
qualquer um dos parceiros. O compromisso é necessário para que um
relacionamento tenha a probabilidade de durar, mas não evita que qualquer um
que se comprometa sem reservas corra o risco de sofrer muito no futuro, no caso
de o relacionamento vir a dissolver-se. Nesse tipo de relacionamento, o que
conta é a própria relação, e a sua continuidade depende do nível de satisfação
que cada uma das partes pode extrair da mesma.
As origens do relacionamento
puro,
diz Giddens, podem ser encontradas na ascensão do amor romântico, que criou a
possibilidade de estabelecer um vínculo emocional durável. A diferença é que,
embora o amor romântico suponha uma igualdade de envolvimento emocional entre
duas pessoas, durante muito tempo as mulheres foram mais afetadas pelos seus
ideais. Os sonhos do amor romântico conduziram muitas mulheres a uma severa
sujeição doméstica. O ethos do amor romântico teve um impacto duplo sobre a
situação das mulheres : além de ajudar a colocar as mulheres em
seu lugar
- o lar-, reforçou o compromisso com o machismo ativo e radical da sociedade moderna.
Os ideais do amor romântico começaram a se fragmentar com a emancipação sexual
e a autonomia femininas. O declínio do controle sexual dos homens sobre as mulheres
colocou possibilidades reais de transformação da intimidade. Embora a
intimidade possa ser opressiva se for encarada como uma exigência de relação
emocional, ela pode, no entanto, surgir sob uma luz completamente diferente se
considerada como uma negociação transacional de vínculos pessoais, estabelecida
por iguais. A
intimidade implica uma total democratização do domínio interpessoal, de uma
maneira plenamente compatível com a democracia na esfera pública
(Giddens, 1990, p.11).
Esse processo de democratização
das relações pessoais afeta profundamente as representações
e vivências do casamento. No contexto brasileiro, principalmente entre os
segmentos médios urbanos mais intelectualizados, o casamento tradicional regido
pela dominação masculina vem dando lugar a outra forma de casamento, onde a
mulher reivindica igualdade e há uma constante negociação no relacionamento,
conforme descrevemos em outros trabalhos (Araújo, 1993 e 1999). Nesse tipo de
casamento, a intimidade tende a se reestruturar com base em novos valores,
entre os quais amizade e companheirismo se colocam como fundamentais.
A transformação da intimidade passa
necessariamente por uma análise de gênero. Os novos estudos nesse campo
questionam a idéia predominante na literatura de que os homens têm mais
problemas com a intimidade do que as mulheres. Como diz Giddens, a intimidade é
acima de tudo uma questão de comunicação pessoal, com os outros e consigo
mesmo, em um contexto de igualdade interpessoal. Nesse cenário, as mulheres
tiveram um papel de revolucionárias emocionais da modernidade e prepararam o
caminho para expansão da intimidade Algumas disposições psicológicas têm sido a
condição e o resultado desse processo, assim como também as mudanças materiais
e sociais que permitiram às mulheres reivindicar a igualdade e propor mudanças
nas relações de gênero. Concordo com Giddens quando diz que as mulheres foram
promotoras dessas mudanças, mas vale lembrar que elas não fizeram esse trabalho
sozinhas. A construção de relações amorosas e sexuais mais democráticas e
igualitárias dentro ou fora do casamento é uma conquista de homens e mulheres.
Tal conquista tem permitido o
surgimento de outras formas de relacionamento amoroso, tanto no contexto
heterossexual quanto fora dele. Vivemos hoje no signo da pluralidade. O
casamento formal, heterossexual com fins de constituição da família, continua
sendo uma referência e um valor importante, mas convive com outras formas
relacionamento conjugal como as uniões consensuais, os casamentos sem filhos ou
sem cohabitação, e também as uniões homossexuais. Nesse processo de
transformação da intimidade, dos valores e das mentalidades, a tendência da
sociedade é tornar-se cada vez mais flexível para acolher essas novas
configurações das relações amorosas.
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Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-98932002000200009&script=sci_arttext