No português d'além, seria Comboio Noturno para Lisboa. Por cá, Trem Noturno. Pouco importa. O fato é que está chegando às telas um filme (triller filosófico, alguém já disse) que tem despertado distintas posições da crítica. É a adaptação do livro homônimo do suíço Pascall Mercier. Vamos lá, pitadas de existencialismo. Um solitário professor se encanta por um livro raro. Buscando os passos perdidos do seu autor, descobre um mundo de heroísmos e traições, onde a paixão amorosa não se diferencia da efervescência política. Abaixo, uma resenha.
O livro, o tem e Lisboa: ao encontro de si? |
Por Léa Maria Arão Reis
O
marketing não descansa na operação incessante de adequar a cabeça do mundo ao
consumo de massa, de qualquer produto, bom ou de má qualidade. Em geral,
através de slogans até ridículos. Trem Noturno para Lisboa está sendo
vendido no “mercado” como um thriller filosófico.
O
próprio realizador, o dinamarquês Bille August, já premiado com o Oscar de
filme estrangeiro - Pelle, o conquistador - e duas vezes Palma de Cannes pela
mesma produção e por Melhores intenções, batizou assim sua mais recente obra,
ano passado, quando terminou as filmagens e perguntaram a ele de que se tratava
esta adaptação do livro homônimo do suíço Pascal Mercier, professor de
filosofia em Berlim, com mais de dois milhões de exemplares vendidos na Europa
e chegando agora ao Brasil. Filme e livro em operação conjunta de venda e de
marketing, destinada a faturar pesado no “mercado”.
A bela
Lisboa das mil arquiteturas, gótica, neomourisca, manuelina e pombalina, art
nouveau, neoclássica, e por isto mesmo fora do tempo, é o belo cenário para a
história do velho e desinteressante professor universitário de latim e grego da
monótona cidade de Berna, na Suíça - Raimund Gregorius vivido pelo ator Jeremy
Irons. Em um arroubo inexplicável, depois de viver um encontro inquietante no
alvorecer de um frio dia de inverno, caminhando para dar uma aula, Gregorius
larga tudo e embarca em um trem que o leva a Portugal. Busca viver emoções
fortes e inéditas. Inicia assim uma “viagem ao encontro de si mesmo”, como diz
um personagem, repisando o clichê.
A
jornada o levará ao Portugal revivido de meio século atrás, fim da ditadura de
Salazar e descrito em um livro, 'O Ourives das Palavras', de autoria de certo médico já morto, Amadeu de Almeida
Prado, que por acaso lhe cai nas mãos e o perturba.
Encontros imprevistos: trilha existencialista |
Logo
no começo do filme a epígrafe é a frase, permanente, do imperador filósofo
romano Marco Aurélio, um dos mestres preferidos de Gregorius: “Pensamento e
ação são uma coisa só”. Faltava ao velho professor incorporá-la à razão
intelectual, o que vai ocorrendo ao longo do filme (e do livro) através dos
encontros mantidos durante a viagem com personagens que conviveram com Prado.
Através deles o protagonista desenha o mosaico da vida aventurosa do médico em
que a traição é o eixo.
Trem
noturno para Lisboa é bem feito, conta com bela fotografia, com um
buquê de estrelas notáveis – além de Irons, Bruno Ganz, Charlotte Rampling,
Lena Olin, Tom Courtnay, Christopher Lee que se misturam a jovens atores e
atrizes mais ou menos competentes -, sua trilha musical é correta, a direção de
arte excelente. Tudo se encaixa para resultar nesta coprodução internacional
realizada com dinheiro alemão, suíço e português.
Assim
como tantas outras, globalizadas e despersonalizadas, lambuzadas de charme e
feitas para despertar, às vezes, leve inquietação nas grandes plateias. Fórmula
perfeita para concorrer e ganhar prêmios que podem multiplicar o mega triunfo
de August, autor de outros blockbusters, objetos culturais de estrondoso sucesso como Casa dos espíritos e Mandela: a luta.
No filme, que
achata o argumento, o fim fica em aberto. O final do livro, ao contrário, é
fechado e menos comercial. Mas a jogada é de mestre: manipula o desejo do
espectador de comprar o livro e do leitor de assistir ao filme. Operação casada
quase irresistível e onde todos ganham muito dinheiro.
Trem
noturno para Lisboa vai arrastar multidões. É cinema de
entretenimento de fim de semana com certo bom gosto. Não chega ao mínimo do
“não penso, não existo, só assisto”. Pode até provocar. Quem tem coragem de
encerrar a existência medíocre, chutar a segunda-feira do dia seguinte e se
lançar no risco da grande vida? Os existencialistas refletiram melhor sobre o
assunto. Talvez Umberto Eco escrevesse também melhor – como aliás fez - para um thriller
filosófico.
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