sábado, 30 de março de 2013

Da existência em si: o caminhar e o passar dos dias

Abaixo, um texto schopenhaueriano em matéria que é própria do autor: a existência. Título em língua inglesa The Emptiness of Existence, literalmente o vazio da existência

Foto: Leszek Bujnowsk

Arthur Schopenhauer 


Esse vazio encontra sua expressão em toda forma de existência, na infinitude do Tempo e Espaço em oposição à finitude do indivíduo em ambos; no fugaz presente como a única forma de existência real; na dependência e relatividade de todas coisas; em constantemente se Tornar sem Ser; em continuamente desejar sem ser satisfeito; na longa batalha que constitui a história da vida, onde todo esforço é contrariado por dificuldades, até que a vitória seja conquistada. O Tempo e a transitoriedade de todas as coisas são apenas a forma sob a qual o desejo de viver — que, como coisa-em-si, é imperecível — revelou ao Tempo a futilidade de seus esforços; é o agente pelo qual, a todo o momento, todas as coisas em nossas mãos tornam-se nada e, portanto, perdem todo seu verdadeiro valor.
O que foi não mais existe; existe exatamente tão pouco quanto aquilo que nunca foi. Mas tudo que existe, no próximo momento, já foi. Consequentemente, algo pertencente ao presente, independentemente de quão fútil possa ser, é superior a algo importante pertencente ao passado; isso porque o primeiro é uma realidade, e está para o último como algo está para nada.
Um homem, para seu assombro, repentinamente torna-se consciente de sua existência após um estado de não-existência de muitos milhares de anos; vive por um breve período e então, novamente, retorna a um estado de não-existência por um tempo igualmente longo. Isso não pode ser verdade, diz ao seu coração; e mesmo as mentes rudes, após ponderarem sobre o assunto, devem sentir algum tipo de pressentimento de que o Tempo é algo ideal em sua natureza. Essa idealidade do tempo, juntamente com a do espaço, é a chave para qualquer sistema metafísico verdadeiro, pois proporciona uma ordem de coisas distinta da que pode ser encontrada no domínio da natureza. Por essa razão Kant é tão grandioso.
De cada evento em nossa vida, é apenas por um momento que podemos dizer que este é; após isso devemos dizer para sempre que este foi. Cada noite nos empobrece, dia a dia. Provavelmente nos deixaria irritados ver este curto espaço de tempo esvaecendo, se não fôssemos secretamente conscientes, nas maiores profundezas de nosso ser, de que compartilhamos do inexaurível manancial da eternidade, e de que nele podemos sempre ter a vida renovada.
Reflexões com a natureza das acima podem, de fato, nos levar a estabelecer a crença de que gozar o presente e fazer disso o propósito da vida é a maior sabedoria; visto que somente o presente é real, todo o mais é representação do pensamento. Mas tal propósito poderia também ser denominado a maior tolice, pois aquilo que, no próximo instante, não mais existe e desaparece completamente como um sonho, jamais poderá merecer um esforço sério.

Toda a nossa existência é fundamentada tão-somente no presente — no fugaz presente. Deste modo, tem de tomar a forma de um constante movimento, sem que jamais haja qualquer possibilidade de se encontrar o descanso pelo qual estamos sempre lutando. É o mesmo que um homem correndo ladeira abaixo: cairia se tentasse parar, e apenas continuando a correr consegue manter-se sobre suas pernas; como um pólo equilibrado na ponta do dedo, ou como um planeta, o qual cairia no sol se cessasse com seu percurso. Nossa existência é marcada pelo desassossego.
Num mundo como este, onde nada é estável e nada perdura, mas é arremessado em um incansável turbilhão de mudanças, onde tudo se apressa, voa, e mantém-se em equilíbrio avançando e movendo-se continuamente, como um acrobata em uma corda — em tal mundo, a felicidade é inconcebível. Como poderia haver onde, como Platão diz, tornar-se continuamente e nunca ser é a única forma de existência? Primeiramente, nenhum homem é feliz; luta sua vida toda em busca de uma felicidade imaginária, a qual raramente alcança, e, quando alcança, é apenas para sua desilusão; e, via de regra, no fim, é um náufrago, chegando ao porto com mastros e velas faltando. Então dá no mesmo se foi feliz ou infeliz, pois sua vida nunca foi mais que um presente sempre passageiro, que agora já acabou.
Ao mesmo tempo, é algo surpreendente que, tanto no mundo de seres humanos quanto no dos animais em geral, essa variada e incansável moção é produzida e mantida por meio de dois simples impulsos — fome e o instinto sexual, ajudados talvez por um pouco de tédio, mas nada mais —, e estes, no teatro da vida, têm o poder de constituir o primum mobile de uma maquinaria tão complexa, colocando em movimento cenas tão estranhas e variadas!
Analisando os pormenores, constatamos que a matéria inorgânica apresenta um constante conflito entre forças químicas, as quais por vezes promovem a dissolução; por outro lado, a existência orgânica somente é possível através de uma contínua substituição de matéria, e não pode subsistir se não dispuser de uma eterna ajuda exterior. Portanto a vida orgânica é como o balançar de um pólo na mão; deve ser mantida em constante movimento e ter constante suprimento de matéria — da qual necessita continuamente e eternamente. Apesar disso, é apenas através da vida orgânica que a consciência é possível.
Este é o reino da existência finita, e seu oposto seria uma existência infinita, a qual não está exposta a ataques externos nem precisa de ajuda exterior; [grego: aei hosautos on] o reino da paz eterna; [grego: oute gignomenon, oute apollymenon], sem mudanças, sem tempo, sem diversidade; o conhecimento negativo do que constitui a nota fundamental da filosofia platônica. A renúncia da vontade de viver revela o caminho a um tipo de estado como esse.

As cenas de nossa vida são como imagens em um mosaico tosco; vistas de perto, não produzem efeitos — devem ser vistas à distância para ser possível discernir sua beleza. Assim, conquistar algo que desejamos significa descobrir quão vazio e inútil este algo é; estamos sempre vivendo na expectativa de coisas melhores, enquanto, ao mesmo tempo, comumente nos arrependemos e desejamos aquilo que pertence ao passado. Aceitamos o presente como algo que é apenas temporário e o consideramos como um meio para atingir nosso objetivo. Deste modo, se olharem para trás no fim de suas vidas, a maior parte das pessoas perceberá que viveram-nas ad interim [provisoriamente]: ficarão surpresas ao descobrir que aquilo que deixaram passar despercebido e sem proveito era precisamente sua vida — isto é, a vida na expectativa da qual passaram todo o seu tempo. Então se pode dizer que o homem, via de regra, é enganado pela esperança até dançar nos braços da morte!
Novamente, há a insaciabilidade de cada vontade individual; toda vez que é satisfeita um novo desejo é engendrado, e não há fim para seus desejos eternamente insaciáveis.
Isso acontece porque a Vontade, tomada em si mesma, é a soberana de todos os mundos: como tudo lhe pertence, não se satisfaz com uma parcela de qualquer coisa, mas apenas como o todo, o qual, entretanto, é infinito. Devemos elevar nossa compaixão quando consideramos quão minúscula a Vontade — essa soberana do mundo — torna-se quando toma a forma de um indivíduo; normalmente apenas o que basta para manter o corpo. Por isso o homem é tão miserável.
Na presente época, que é intelectualmente impotente e notável por sua veneração daquilo que é ruim em todas formas — um estado de coisas que é bastante condizente com a palavra cunhada “Jetztzeit” (tempo presente), tão pretensiosa quanto é cacofônica — os panteístas atrevem-se a dizer que a vida é, como dizem, “um fim-em-si”. Se nossa existência neste mundo fosse um fim-em-si, seria a mais absurda finalidade jamais determinada; mesmo nós próprios ou qualquer outro poderia tê-la imaginado.
A vida apresenta-se principalmente como uma tarefa, isto é, de subsistir de gagner sa vie [para ganhar a vida]. Se for cumprida, a vida torna-se um fardo, e então vem a segunda tarefa de fazer algo com aquilo que foi conquistado — a fim de espantar o tédio, que, como uma ave de rapina, paira sobre nós, pronto para atacar sempre que vê a vida livre da necessidade.
A primeira tarefa é conquistar algo; a segunda é banir o sentimento de que algo foi conquistado, do contrário torna-se um fardo.
Está suficientemente claro que a vida humana deve ser algum tipo de erro, com base no fato de que o homem é uma combinação de necessidades difíceis de satisfazer; ademais, se for satisfeito, tudo que obtém um estado de ausência de dor, no qual nada resta senão seu abandono ao tédio. Essa é uma prova precisa de que a existência em si mesma não tem valor, visto que o tédio é meramente o sentimento do vazio da existência. Se, por exemplo, a vida — o desejo pelo qual se constitui nosso ser — possuísse qualquer valor real e positivo, o tédio não existiria: a própria existência em si nos satisfaria, e não desejaríamos nada. Mas nossa existência não é uma coisa agradável a não ser que estejamos em busca de algo; então a distância e os obstáculos a serem superados representam nossa meta como algo que nos satisfará — uma ilusão que desvanece assim que o objetivo é atingido; ou quando estamos engajados em algo que é de natureza puramente intelectual — quando nos distanciamos do mundo a fim de podermos observá-lo pelo lado de fora, como espectadores de um teatro. Mesmo o prazer sensual em si não significa nada além de um esforço contínuo, o qual cessa tão logo quanto seu objetivo é alcançado. Sempre que não estivermos ocupados em algum desses modos, mas jogados na existência em si, nos confrontamos com seu vazio e futilidade; e isso é o que denominamos tédio. O inato e inextirpável anseio pelo que é incomum demonstra quão gratos somos pela interrupção do tedioso curso natural das coisas. Mesmo a pompa e o esplendor dos ricos em seus castelos imponentes, no fundo, não passam de uma tentativa fútil de escapar da essência existencial, a miséria.
 O fato de que a mais perfeita manifestação da vontade de viver — o organismo humano, com a sua sutil e complexa maquinaria — deve decair e finalmente render todos os seus esforços à extinção — esse é o simples meio pelo qual a Natureza, invariavelmente verdadeira e sincera, declara todo o esforço da vontade, em sua própria essência, como estéril e inútil. Se tivesse algum valor em si, algo incondicionado e absoluto, seu fim não seria a inexistência. Esta é a nota dominante da bela música de Goethe:
No alto da velha torre
Fica o herói de mente nobre.
[Hoch auf dem alten Thurme steht
Des Helden edler Geist.]
O homem é apenas um fenômeno, não a coisa-em-si — digo: o homem não é [grego: ontos on]; isso se comprova pelo fato de que a morte é uma necessidade.
E quão diferente o começo de nossas vidas é do seu fim! O primeiro é feito de ilusões de esperança e divertimento sensual, enquanto o último é perseguido pela decadência corporal e odor de morte.
O caminho que divide ambas, no que concerne nosso bem-estar e deleite da vida, é a bancarrota; os sonhos da infância, os prazeres da juventude, os problemas da meia-idade, a enfermidade e miséria frequente da velhice, as agonias de nossa última enfermidade e, finalmente, a luta com a morte — tudo isso não faz parecer que a existência é um erro cujas consequências estão se tornando gradualmente mais e mais óbvias?
Seria sábio considerar a vida como um desengaño, uma ilusão; que tudo está organizado nesse sentido: isso está suficientemente claro.
É apenas no microscópio que nossa vida parece grandiosa. É um ponto indivisível, captado e ampliado pelas poderosas lentes do Tempo e do Espaço.
Tempo é um elemento em nosso cérebro que, por meio da duração, cria uma semelhança de realidade na existência absolutamente vazia das coisas e de nós mesmos.
Quanta tolice há no homem que se arrepende e lamenta por não ter aproveitado oportunidades passadas, as quais poderiam ter-lhe assegurado esta ou aquela felicidade ou prazer! O que resta desses agora? Apenas o fantasma de uma lembrança! E é o mesmo com tudo aquilo que faz parte de nossa sorte. De modo que a forma do tempo, em si, e tudo quanto é baseado nisso, é um modo claro de provar a nós a vacuidade de todos deleites terrenos.
Nossa existência, assim como a de todos animais, não é duradoura, mas apenas temporária, meramente uma existentia fluxa, que pode ser comparada a um moinho no qual há constante mudança.
É verdade que a forma do corpo dura por um tempo, mas apenas sob a condição de que a matéria esteja sempre mudando, de que a velha matéria seja descartada e uma nova seja incorporada. É o principal empenho de todas as formas viventes assegurar um constante suprimento de matéria aproveitável. Ao mesmo tempo, estão conscientes de que sua existência é modelada de modo a durar apenas um período de tempo, como foi dito. Por essa razão tentam, quando estão abandonando a vida, deixá-la para outrem que tomará seu lugar. Essa tentativa toma a forma do instinto sexual em autoconsciência, e na consciência de outras coisas apresenta-se objetivamente — isto é, na forma do instinto genital. Esse instinto pode ser comparado ao enfileiramento de uma corrente de pérolas; um indivíduo sucedendo o outro tão rapidamente como as pérolas na corrente. Se nós, em imaginação, acelerarmos essa sucessão, veremos que a matéria está mudando constantemente em toda a fileira assim como está mudando em cada pérola, enquanto retém a mesma forma: percebemos então que temos apenas uma quasi-existência. Que são somente as Ideias que existem e criaturas-sombra daquilo que lhes corresponde — isso é a base dos ensinamentos de Platão.
A ideia de que não somos nada senão um fenômeno, em oposição à coisa-em-si, é confirmada, exemplificada e clarificada pelo fato de que a conditio sine qua non de nossa existência é um contínuo fluxo de descarto e aquisição de matéria que, como nutrição, é uma constante necessidade. De modo que nos assemelhamos a fenômenos como fumaça, fogo ou um jato de água, todos os quais desvanecem ou cessam diretamente se não houver suprimento de matéria. Pode ser dito, então, que a vontade de viver apresenta-se na forma de um fenômeno puro que termina em nada. Esse nada, entretanto, juntamente com o fenômeno, permanece dentro do limite da vontade de viver e são baseados nesse. Admito que isso é um pouco obscuro.
Se tentarmos obter uma perspectiva geral da humanidade num relance, constataremos que em todo lugar há uma constante e grandiosa luta pela vida e existência; que as forças mentais e físicas são exploradas ao limite; que há ameaças, perigos e aflições de todo gênero.
Considerando o preço pago por isto tudo — existência e a própria vida —, veremos que houve um intervalo quando a existência era livre de sofrimento, um intervalo que, entretanto, foi imediatamente sucedido pelo tédio, o qual, por sua vez, foi rapidamente sucedido por novos anseios.
O tédio ser imediatamente sucedido por novos anseios é um fato também verdadeiro à mais sábia ordem de animais, pois a vidanão tem valor verdadeiro e genuíno em si mesma, mas é mantida em movimento por meio de meras necessidades e ilusões. Tão logo quanto não houver necessidades e ilusões tornamo-nos conscientes da absoluta futilidade e vacuidade da existência.
Se deixarmos de contemplar o curso mundo como um todo e, em particular, a efêmera e cômica existência de homens enquanto sucedem um ao outro rapidamente para observar a vida em seus pequenos detalhes: quão ridícula é a visão!
Impressiona-nos do mesmo modo como uma gota d’água, uma simples gota fervilhando de infusoria, é vista por um microscópio, ou um pedaço de queijo cheio de carunchos invisíveis a olho nu. Sua atividade e luta uns contra os outros em um espaço tão pequeno nos entretém grandemente. Acontece o mesmo no pequeno lapso da vida — uma grande e séria atividade produz um efeito irrisório.

Nenhum homem jamais se sentiu perfeitamente feliz no presente; se acontecesse, isso o entorpeceria.

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